Governo Trump, eleições de 2020 e crise na política norte-americana: O contexto político institucional (parte 1)
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Acompanhe o seminário do INCT-INEU sobre os EUA
realizado em 7 e 8 dez. 2020
Todos os anos, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) encerra suas atividades promovendo um debate sobre os Estados Unidos, objeto de análise dos cerca de 90 pesquisadores doutores e/ou docentes da rede, em seus 12 anos de existência, uma referência nas discussões sobre a potência mundial.
Neste 2020, por conta da pandemia de covid-19, as discussões aconteceram no seminário virtual O Governo Trump, as eleições e a crise na política norte-americana, em 7 e 8 de dezembro, abarcando os impactos da era Trump em vários âmbitos da política doméstica e externa norte-americana; as crises econômica, social e de saúde que assolam o país; e, naturalmente, as eleições presidenciais e as perspectivas que se abrem com a derrota de Donald Trump, e a vitória de Joe Biden.
Permeado, portanto, por este novo panorama político, o seminário iniciou com uma abordagem ampla do contexto político institucional norte-americano, em mesa mediada por Tullo Vigevani (UNESP), com participação de Sebastião Velasco e Cruz (UNICAMP) – ambos, aliás, à frente da coordenação do INCT-INEU –, Tatiana Teixeira (INCT-INEU) e Camila Feix Vidal (UFSC).
Juntos, eles trouxeram as peculiaridades do sistema eleitoral norte-americano, debatendo, em particular, o porquê da manutenção do Colégio Eleitoral, a fragilidade organizacional do sistema político nos Estados Unidos e, também, o fenômeno recente do fortalecimento da pauta progressista dentro do Partido Democrata.
O arcaísmo do Colégio Eleitoral
Diferentemente do que ocorre no Brasil, onde o número de votos equivale ao número de eleitores, a escolha do presidente norte-americano nos Estados Unidos acontece por intermediação de um colegiado de 538 representantes 2 senadores, que pode acatar, ou não, a escolha da maioria. O arcaísmo desse sistema, em vigor desde 1787, foi problematizado pela pesquisadora Tatiana Teixeira, também editora do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU).
Teixeira conta que o Colégio Eleitoral já recebeu mais de mil propostas de reforma, ou de extinção. Aliás, ele quase foi suprimido em 1969/1970, em meio à luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. “A Câmara de Representantes aprovou a eleição direta, mas a proposta, em meio a processos de obstrução por parte dos estados do Sul, acabou morrendo no Senado”, detalha.
Trabalhando com discursos contrários e favoráveis ao Colégio Eleitoral, ela aponta a fragilidade dos argumentos de defesa – “trata-se de único arranjo possível entre Sul e Norte” / “o sistema funciona há muitos anos” –, apresentando a crítica dos que analisam o Colégio Eleitoral como “anomalia histórica, de baixa legitimidade, pensado em outra conjuntura e em condições totalmente distintas das que vivemos hoje”.
Teixeira traz os estudos de Robert Dahl (How Democratic Is the American Constitution?, (Yale University Press, 2003) e Alexander Keyssar (Why Do We Still Have the Electoral College?, Harvard University Press, 2020), que analisam as consequências do Colégio Eleitoral, apontando-o como instrumento de perpetuação do racismo estrutural e dos privilégios da elite branca norte-americana. Keyssar inclusive defende que “a reforma ou abolição do Colégio Eleitoral ameaça uma estrutura política que mantém homens brancos no poder às custas da população negra e de grupos historicamente marginalizados”.
Ele contraria, assim, “o senso comum de que o que contribui para a permanência do Colégio Eleitoral não é a pressão dos estados menores, mas sim dos estados do Sul”, aponta Teixeira. (Confira aqui os 20 minutos da fala de Tatiana Teixeira)
Trump e os republicanos
Coordenador do INCT-INEU, o cientista político Sebastião Velasco e Cruz (Unicamp), que já vinha analisando as relações entre Trump e o Partido Republicano, em Trump: primeiro tempo. Partidos, políticas, eleições e perspectivas (Unesp, 2019), trouxe uma análise focada nas características institucionais do sistema partidário norte-americano, mostrando a fragilidade organizacional desses partidos.
Ele explica que o sistema político norte-americano é composto por partidos “muito antigos, dotados de organismos de direção (comitês nacionais), com enorme presença na sociedade”. Ao contrário do Brasil, nos Estados Unidos, as famílias se identificam com a tradição republicana, ou democrata. E esses partidos fazem parte da vida das pessoas, por meio de uma série de associações. Apesar disso, aponta Velasco e Cruz, os partidos políticos norte-americanos são “organizacionalmente porosos e frágeis”.
A vitória de Trump nas primárias republicanas é prova disso. O bilionário, e um completo outsider do mundo político, tornou-se presidente da República e contou com apoio dos republicanos ao longo de todo mandato, inclusive, eles o livraram do impeachment no Senado, lembra Velasco.
Ao contrário do que vemos no Brasil, onde vigora um regime de filiação partidária, nos Estados Unidos inexiste uma política de recrutamento de militantes. Lá, “ninguém é incluído, ou excluído”. Os eleitores simplesmente se autodeclaram democratas, republicanos, ou independentes, quando fazem seu registro para votar. E essa autodeclaração os credencia a participar das eleições primárias quando fechadas, porque das primárias abertas qualquer um pode participar.
Outra característica do sistema eleitoral norte-americano é a forte centralização das campanhas na figura do candidato. Cabe a ele, e com total liberdade, organizar suas equipes, levantar fundos, elaborar plataformas etc. Essa fragilidade organizacional, avalia Velasco, implica diretamente o relacionamento do candidato eleito no plano nacional com seus partidos. Nas eleições primárias, “quando ele se torna candidato oficial do partido, ele o remodela para associá-lo à sua campanha. E depois, na Presidência, conta com os meios e modos para reconstruir o partido conforme sua estratégia de governo”.
Trump não buscou consolidar o partido na sociedade, como forma hegemônica de longo prazo. Sua estratégia foi vertical, ou seja, ele tentou mobilizar os recursos disponíveis da sua base de apoio. “Trump não fala para o conjunto da sociedade, mas para os seus”, criando uma “relação diferenciada com seus eleitores, e uma subordinação inédita do partido à vontade do presidente”. Daí a incógnita: o que irá acontecer com o Partido Republicano e com o próprio Donald Trump?
Velasco e Cruz traz ainda outra preocupação em relação à campanha de deslegitimação do resultado eleitoral, protagonizada por Trump. Em sua avaliação, não se trata de uma patológica negação do real, como demonstra a adesão popular à campanha manifesta no comício de Trump na Geórgia, em 5 de dezembro; e o nada desprezível aporte de US$ 210 milhões (arrecadado em menos de um mês) para a campanha de contestação dos resultados eleitorais. (Confira aqui os 20 minutos da fala de Sebastião Velasco e Cruz)
Crescimento da pauta progressista no Partido Democrata
Se, por um lado, permanece a incógnita Trump e o Partido Republicano, a reação ao trumpismo levou ao fortalecimento da agenda progressista no Partido Democrata, ainda que Joe Biden, autêntico representante do establishment partidário, tenha sido o candidato eleito, avalia a professora Camila Feix Vidal (UFSC).
Em sua abordagem, ela observa o Partido Democrata enquanto um “grande guarda-chuva ideológico em que diferentes grupos, coalizões e facções disputam espaço”. No âmbito dessas disputas, ela localiza os conservadores New Democrats e The Blue Dog Coalition; a pauta trabalhista e em defesa da agenda keynesiana dos Blue Collar Workers; e os progressistas The Democratic Socialists (Bernie Sanders) e The Squad (Ayanna Pressley, Alexandria Ocasio-Cortez, Rashida Tlaib, Ilhan Omar) representativo em termos de raça, classe e gênero.
“Reagindo contra o trumpismo e contra o establishment dentro do Partido Democrata, os grupos progressistas vêm operando de modo coeso e pressionando por pautas representativas de demandas sociais, trabalhistas, ambientais, bem como a defesa da saúde e da educação superior públicas”, observa Camila. Ela destaca que, ao longo de sua história, o Partido Democrata estabeleceu uma série de coalizões, desde o New Deal, com Franklin Roosevelt (1940-1960); passando pela aliança Liberal Labour (1960-1980) do movimento trabalhista; pelo New Democrats (1990-2000), de Bill Clinton.
O Partido Democrata “parece se aproximar de suas origens rooseveltianas”, a partir de coalizões que operam tanto no âmbito de suas forças internas, quanto externo, por exemplo, com a interferência de movimentos como o Sunrise Mouvement (Green New Deal), Black Lives Matter, Ocuppy Democrats, entre outros que, “mesmo considerados outsiders do partido”, operaram como elo entre partido e movimento popular, com grande papel na construção da agenda política e do apoio dos candidatos democratas”. E mais: “pela primeira vez, os eleitores democratas identificam-se mais como liberais do que como moderados, ou conservadores”, avalia. (Confira aqui os 20 minutos da fala de Camila Feix Vidal)
12 anos de INCT-INEU
Nesse 2020, o INCT-INEU comemora 12 anos de existência, como afirmou Velasco e Cruz durante abertura do evento que contou com a abertura de Héctor Luís Saint-Pierre, coordenador-executivo do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI-UNESP).
Sobre estes anos, Saint-Pierre destacou a consolidação de uma visão estratégica, tanto do Programa San Tiago Dantas (de 2003), quanto do INCT-INEU, em torno de uma “ética científica”, ou de uma “política epistemológica” que consiste “em pensar a Ciência não como atividade solitária, mas como atividade solidária”. Ele também apontou a visão estratégica do coletivo, afinal, “estamos em um mundo severamente interdependente e assimétrico, e o vértice dessa assimetria é os Estados Unidos”.
Organizado em rede, ao longo desses 12 anos, o INCT-INEU se constituiu em ampla equipe multidisciplinar de pesquisadores que atuam em 17 Universidades brasileiras (além da UNICAMP, que é a instituição sede atualmente, as instituições, por ordem alfabética, são: PUC-RJ, PUC-SP, UERJ, UEPB, UFGD, UFGO, UFPB, UFPE, UFRGS, UFSC, UFU, UNB, UNESP, UNIFESP, UNILA, USP), e um centro de pesquisa de grande tradição nas Ciências Sociais brasileiras, o CEDEC.
Inicialmente idealizado para desenvolver estudos sobre as relações exteriores dos Estados Unidos, pouco a pouco, a rede incorporou temas relativos a instituições e processos (econômicos, socioculturais e políticos) domésticos. Hoje, suas pesquisas abrangem as áreas de Política Econômica Internacional dos Estados Unidos, Grande Estratégia e Política de Segurança dos Estados Unidos, O Papel dos Estados Unidos nas Estruturas de Governança Global Instituições, Processos e Políticas Governamentais nos Estados Unidos, Relações América Latina e Estados Unidos e Relações Brasil e Estados Unidos.
Para assistir à íntegra do seminário, acesse o Canal do YouTube do INCT-INEU. Para assistir às intervenções pontuais, clique no nome do expositor abaixo:
Abertura
Héctor Luís Saint-Pierre – Coordenador-Executivo do IPPRI-UNESP
Contexto Político Institucional
Sebastião Velasco (Unicamp-INCT-INEU)
Mediador: Tullo Vigevani (UNESP)
Governo Trump: discursos e práticas. E agora? (1)
Wiliam Laureano (PPGRI-UNESP-UNICAMP-PUC-SP) e Gabriel Dauer (San Tiago Dantas)
Leonardo Ramos (PUC-MG) e Filipe Mendonça (UFU)
Neusa Bojikian (INCT-INEU) e Rúbia Marcussi Pontes (Unicamp)
Mediador: Thiago Lima (UFPB)
Governo Trump: discursos e práticas. E agora? (2)
Mediador: Marcos Cordeiro (UNESP)
2020: eleições em tempos difíceis
Celly Cook Inatomi (INCT-INEU)
Débora Figueiredo Mendonça do Prado (UFU)
Mediador: Frederico Almeida (UNICAMP)
Eleições 2020: balanço e perspectivas
Rafael R. Ioris (University of Denver)
Inderjeet Parmar (University of London)
Mediadora: Flávia de Campos Mello (PUC-SP)
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* Tatiana Carlotti é assessora de imprensa do INCT-INEU e do OPEU. Contato: tcarlotti@gmail.com.
** Matéria originalmente publicada no site da Carta Maior, em 16 dez. 2020.