O rompante democrático da Suprema Corte dos EUA
Crédito: Evan Vcucci/AP
Por Celly Cook Inatomi*
Desde que Donald Trump começou sua batalha para questionar o resultado da eleição, fazendo alegações nunca comprovadas de fraude eleitoral e ameaçando levar a questão até o Judiciário (como já tem acontecido), debates surgiram sobre se seria correto utilizar o termo “golpe” para descrever o que Trump tenta fazer.
Partindo de uma concepção de golpe que se refere à derrubada ilegítima de um governo em exercício, geralmente por meio da violência, ou da ameaça de violência, grande parte dos acadêmicos norte-americanos tem dito para a imprensa que o termo “golpe” não deve ser usado para descrever as últimas ações de Trump. Embora todos digam que é preciso ficar de olho em suas ações, esses acadêmicos apontam que as instituições democráticas nos Estados Unidos estão muito bem estabelecidas e que o país não tem histórico de golpes para ter de se preocupar com isso. Argumentam que essas coisas acontecem apenas em países economicamente frágeis e sem histórico robusto de democracia, tais como os países da América Latina e a Turquia, por exemplo.
Para esses acadêmicos, as ações de Trump, portanto, são descritas não como golpe, mas como ações mais brandas, ou por eles abrandadas, tais como: “travessuras”, “esforços desajeitados de manchar o resultado das eleições”, “tentativa rebuscada de reverter sua derrota eleitoral nas cortes”, “golpe publicitário”, “uma manobra legal extraordinária”, “tentativas de derrubar os resultados de uma eleição livre e justa para permanecer no poder”, “tentativa de roubo da eleição”, “sua última cartada”, “jogo de trapaça” e “ações desesperadas, mas ainda legais”. Golpe não, pois a terminologia acadêmica não permitiria.
Crédito: Foto Ilustração de Emily Scherer/Getty Images
Contudo, existe uma minoria de jornalistas e acadêmicos que tem defendido que as ações de Trump podem, sim, serem descritas como tentativas de golpe, claramente não nos termos clássicos estabelecidos pelas ciências sociais, mas em termos contemporâneos e sem muita definição conceitual, em que governos autoritários se estabelecem no poder sem o uso de qualquer violência explícita. Dizem, por exemplo, que um golpe é uma reivindicação de poder feita ilegitimamente, muitas vezes, mas nem sempre com o uso da força, às vezes ilegalmente, e às vezes dentro de limites constitucionais.
Eu tendo a concordar com a opinião de que o foco não deveria se centrar em um debate sobre a terminologia adequada, como defende Zeynep Tufekci, embora ele parta do princípio de que as ações de Trump podem ser consideradas uma tentativa de golpe. Para ele, seria preciso olhar para o entorno das ações de Trump e entender a profundidade e o alcance sociais de suas reivindicações, que parecem ir além de uma simples bravata, ou rompante de loucura. Tendo a concordar com essa opinião, ao passo que enquadrar as ações de Trump em “golpe” e “não golpe” obscurece muitas das questões sociais e políticas importantes pelas quais os Estados Unidos têm passado nos últimos anos.
Uma Suprema Corte democrática e antidemocrática
Já era esperado que Donald Trump buscasse as cortes para reverter sua perda eleitoral. Muitos jornalistas e estudiosos apontaram para esse fator, ligando-o inclusive ao empacotamento das cortes que Trump fez de modo nunca antes visto na história americana. O que Trump e muitos políticos republicanos não esperavam, mas que estudiosos do comportamento judicial já sabiam, é que até mesmo seus juízes possuem interesses próprios, podendo se voltar contra quem os indicou. No entanto, as coisas não são tão simples de descrever.
Ambos indicados pelo presidente Donald Trump (centro), os juízes da Suprema Corte Neil Gorsuch (à esq.) e Brett Kavanaugh (Crédito: Jasper Colt, USA Today)
Recentemente, a Suprema Corte deu duas decisões que soaram como o golpe final nas tentativas de Donald Trump de reverter o resultado eleitoral e permanecer no poder. A primeira decisão, de duas linhas, e sem mostrar dissidências entre os juízes, negou uma ação do Partido Republicano da Pensilvânia, que queria anular a vitória de Joe Biden. A segunda decisão, que teve Donald figurando como parte no processo, foi dada nesta última sexta-feira, negando um pedido do Texas em favor de Trump, e que requeria a anulação das eleições em diversos estados, inclusive na Geórgia, que já chegou a realizar duas recontagens e continuou a comprovar a derrota de Trump.
Muitos têm descrito essas decisões da Suprema Corte, bem como de outras cortes federais menores, como provas incontestáveis de que as instituições democráticas estão funcionando, e que existem republicanos conservadores responsáveis, inclusive entre os juízes de Trump. E, de fato, isso é um fator a se comemorar, pois o pior não aconteceu.
Mas, se formos avaliar com mais calma as últimas ações da Suprema Corte no campo eleitoral, sua decisão em não aceitar a ação movida pelos republicanos de Trump não vai em direção contrária ao que ela já vinha decidindo de modo conservador, escolhendo não interferir em questões eleitorais estaduais, mesmo quando os estados estavam claramente prejudicando os direitos de voto de sua população, seja por questões de redistritamento eleitoral, seja por questões de leis estaduais que dificultavam o registro eleitoral, seja por questões de políticas estaduais e locais que não facilitaram os procedimentos eleitorais diante da pandemia.
Segundo Richard L. Hasen, especialista em direito eleitoral e que tem acompanhado a atuação do Poder Judiciário nessas questões, a atuação da Suprema Corte nos últimos tempos se mostrou bastante partidária, em favor dos republicanos, acarretando um sério esvaziamento da Lei de Direitos de Voto de 1965, que colocava uma série de condições para os estados aprovarem mudanças nas regras eleitorais por conta do racismo. Essas condições caíram por terra com algumas decisões que a Suprema Corte veio tomando, que, linhas gerais, estabeleceu o entendimento de que o racismo é um passado já morto e que é preciso confiar na boa-fé dos legisladores estaduais ao fazerem suas leis eleitorais, seja sobre redistritamento, seja sobre registro eleitoral.
A Suprema Corte, portanto, já deu contribuições consideravelmente importantes para a destruição de princípios democráticos, deixando aos estados e somente a eles a conformação de seu processo eleitoral, mesmo que este prejudique os direitos de voto da população. É claro que a não interferência da Suprema Corte agora impede um mal ainda maior, que é o sequestro completo da democracia eleitoral. Contudo, isso não absolve o passado recente e as decisões que vêm sendo tomadas por essa Corte, ou os “males menores” que ela vem perpetrando no campo dos direitos de voto.
O que está acontecendo é um daqueles momentos em que é preciso olhar com calma e cuidado para o que a Suprema Corte vem decidindo de modo geral, e o que representa exatamente essa sua ação “responsável”, ou “democrática”, de agora.
Gabriele Holtermann)
Eu tenho um palpite de que os juízes conservadores da Suprema Corte e das cortes federais de apelação não se “queimariam” nessa altura do campeonato, em que o movimento conservador alcançou um Judiciário com a composição que ele tem hoje. Vejo isso como uma forma estratégica de os juízes continuarem a dar andamento à sua agenda conservadora, ainda que com Trump fora da Presidência, pois o movimento conservador não começou com Trump, nem irá acabar com o fim de seu mandato. Trump foi essencial para que eles alcançassem postos-chave no Judiciário, mas o movimento conservador é muito maior e muito mais duradouro que Trump, pois sobreviveu aos períodos mais adversos aos ideais conservadores nos Estados Unidos.
O que é suficiente para garantir uma democracia?
Alguns questionam se as ações que Trump tentou no Judiciário até o momento são ilegais. Como eu disse anteriormente, as ações de Trump no Judiciário já eram esperadas, e elas não são ilegais nos termos da lei. É uma opção ou, como muitos falam, é um direito dele poder contestar, por mais que seu pedido não tenha fundamento legal (no sentido de a Suprema Corte não decidir questões eleitorais entre estados), nem factual (no sentido de ele nunca ter conseguido provar em juízo a existência das grandes fraudes eleitorais que ele afirma que existem).
Isso não nos impede de dizer, porém, que o que ele fez até agora é errado, ou algo que o termo acadêmico e restrito de “golpe” não nos permite descrever com exatidão. E isso também não nos impede de reconhecer suas ações, como já são normalmente reconhecidas, como antidemocráticas, ao passo que, mesmo perdendo na mais alta corte do país, ele foi bem-sucedido ao instalar na sociedade uma desconfiança com relação ao seu processo eleitoral.
Eu iria mais no caminho de pensar que as estratégias de Trump ultrapassam os limites das normas não escritas da democracia, ou seja, aquilo que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt descrevem como primordiais para a manutenção de um regime democrático saudável. Trump e muitos republicanos teriam claramente violado essas normas não escritas, esticando as cordas que limitam o regime democrático até o ponto máximo de tensão.
Crédito: Ilustração Michelle Thompson/The Guardian
* Celly Cook Inatomi é pesquisadora do INCT-INEU e pesquisadora colaboradora da Unicamp. Especialista em relações entre política, direito e judiciário, é autora de As análises políticas sobre o Poder Judiciário: Lições da ciência política norte-americana (Editora Unicamp, 2020). Contato: celoca05@yahoo.com.br.
** Recebido em 10 dez. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.