O excepcionalismo americano no mundo Trump
Fonte: Twitter da Casa Branca, governo Trump
Por Alines Gomes de Albuquerque*
A participação dos EUA na política internacional desde meados do século XX se caracteriza, fortemente, por um envolvimento em conflitos pautado não apenas por interesses materiais, mas também pela crença em seu caráter especial perante o restante do mundo. Sob a alcunha de Excepcionalismo Americano, ou Destino Manifesto, tais elementos se apresentam em discursos presidenciais e se somam às suas conquistas materiais.
Mesmo aqueles presidentes mais peculiares mantêm em suas falas essa parte do imaginário histórico e social construído de maneira lenta e cuidadosa, essa crença inabalável de que os Estados Unidos são uma nação única no mundo. Tais ideias aparecem, mesmo sem serem nomeadas, em ações dos EUA, ao intervirem em questões políticas de outros países, por exemplo. Essa crença no papel dos EUA reflete também a tradição da dicotomia entre seu país e os outros. Eventualmente, usada para colocar seu país com um papel paternalista sob outros países, ou outras vezes utilizada para colocar os EUA como inimigo justo daquilo que representava o “mal”, essa dicotomia também é parte da tradição de política externa estadunidense.
A presença de um ator “diferente” (um país, ideologia, imigrantes, ou pessoas com crenças e histórias divergentes da maioria dominante no recorte analisado, por exemplo) é usada para legitimar políticas em diferentes contextos e para exaltar a imagem e as ações dos EUA como positivas.
‘Make America Great Again’, a atualização da crença
Apesar de considerado um desvio da tradição do país, talvez por seu histórico incomum na política, talvez por sua retórica um tanto hostil, o presidente Donald Trump dá continuidade a diversas tradições e práticas da política externa do país. A ênfase da grandeza dos EUA e suas instituições políticas e culturais foi uma dessas.
Seus discursos e ações são caracterizados pela crença no papel excepcional dos EUA frente ao restante do mundo. Com a campanha marcada por frases como “America First” e “Make America Great Again”, Trump foi eleito em 2016 com um discurso que destacava a necessidade de se voltar a atenção para o bem-estar dos cidadãos comuns dos EUA. Em sua fala, o então candidato e depois presidente também preconizava que o país deveria reduzir o envolvimento com questões internacionais. Seu discurso mostra a outra face dessa tradição da crença na excepcionalidade estadunidense e representa, também, uma atualização dessa herança política para o contexto atual, direcionado a uma parcela da população americana.
State of the Union e Assembleia Geral da ONU: tribunas voltadas para o público doméstico e externo (Fonte: CNN)
Aqui serão mostrados alguns exemplos de falas do presidente Trump que contêm tais elementos, como é o caso de seus discursos proferidos no Estado da União (State of the Union) de 2018, 2019 e 2020, e na Assembleia Geral da ONU de 2017, 2018, 2019 e 2020.
Para Trump, um possível declínio da força estadunidense aconteceria em razão das condições externas, seja na forma de um inimigo externo (que, nesse caso, poderia ser enfrentado), seja pelo envolvimento intenso de seu país em questões internacionais consideradas menos importantes para o presidente, ou por interferência externa nos valores tradicionais do país. Os valores inerentes dos EUA não permitiriam esse declínio. Por se tratar de um contexto de reeleição, os elementos podem ser traduzidos na intervenção de potências do porte da China, na dimensão internacional, e o problema da imigração, no nível doméstico.
A postura mais unilateral do presidente pode ser interpretada como um reflexo dessa noção do excepcionalismo. De acordo com as ideias tradicionais contidas neste conceito, os EUA teriam vantagem geográfica, graças ao seu isolamento, comparado às potências europeias na época de sua independência. Isso contribuiria para sua grandeza, pois o país se envolveria menos em questões de outras nações.
Alguns exemplos dessa postura são a retirada dos EUA do Acordo de Paris para o Clima de 2015 no ano de 2017, a saída do Conselho de Direitos Humanos da ONU e do acordo nuclear com Irã, ambas em 2018, além de criticar outras questões multilaterais, como a falta de investimentos de outros membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na própria instituição, ou criticando o Japão pelo que Trump classificou como dependência do Tratado de Cooperação e Segurança Mútua para se defender.
Os EUA, para Trump, teriam total capacidade de seguirem sozinhos, devendo estender ajuda e manter relações apenas com países que não ousassem desafiar Washington, ou em casos de necessidade de retaliação.
A convicção do presidente na excepcionalidade dos EUA aparece diversas vezes em seus pronunciamentos ao longo de seu mandato. Nos seus discursos do Estado da União, a fala anual que resume o ano que passou e apresenta os planos para o futuro, Trump destaca o caráter especial do país e de seus cidadãos. São falas repletas de referências históricas a grandes feitos dos EUA, usadas para reforçar essa imagem quando comparadas com as ações realizadas pelo país ao longo do ano que o discurso faz referência.
Esse excepcionalismo fica evidente em pronunciamento da Assembleia Geral da ONU em 2017, no qual ele discursa sobre as características únicas da Constituição de seu país e sobre como o sacrifício de diversos cidadãos ajudou a preservar a grande história do país. No discurso à Assembleia da ONU de 2018, Trump faz referência a James Monroe, proponente de uma política externa, que depois ganharia seu nome, que rejeitava a intervenção de outras potências no hemisfério. Desse modo, Trump saúda a tradição, enquanto coloca seu país como exemplo a ser seguido. “Vocês deveriam fazer o mesmo para sua proteção”, sugere o presidente ao explanar como o país fortaleceu as próprias leis para sua segurança.
No mesmo discurso, o republicano também destaca as crenças dos EUA, afirmando que “o país acredita na liberdade, no autogoverno e nas leis”, e argumenta que a cultura de seu país, “baseada em família, fé e independência, seria o pilar dessa liberdade”.
Na fala de 2019, Trump coloca seu país na posição de agente para a paz, preparado para conversar e trabalhar para esse objetivo. Com um tom que lembra os discursos do presidente George W. Bush durante a Guerra ao Terror, Trump afirma que “os EUA têm o duradouro objetivo de buscar paz e harmonia”. Ele relembra a história de seu país, como os valores fundamentais dos EUA subsistem há séculos e como aqueles que fundaram o país já alertavam contra a tirania. Ainda, descreve seu país como um protetor da democracia e da liberdade, alertando contra os perigos a esses direitos.
O então presidente George W. Bush se dirige à nação após os ataques do 11/9 (Crédito: Mark Wilson)
Seu discurso é lotado de patriotismo e de ênfase nas características excepcionais dos EUA. Isso fica claro na referência que ele faz, nesse mesmo discurso, aos Pais Fundadores que, segundo o presidente, criaram um sistema para restringir medidas tirânicas e deixaram a manutenção desse sistema nas mãos do povo orgulhoso e independente dos EUA. Em 2020, durante a pandemia da covid-19, o discurso de Trump destacou o papel de seu país como exemplo para a proteção de direitos de todos os grupos no mundo. E Trump insiste, ao classificar os EUA como um pilar para a liberdade e a segurança a ser seguido em todo mundo.
Histórico uso dos inimigos para garantir coesão social
Ao mesmo tempo em que os discursos de Trump seguem a tradição de destacar as ações excepcionais dos EUA, eles também elegem forças malignas a serem combatidas. Trump condena aqueles que ameaçam a glória predestinada dos EUA, ao mesmo tempo em que adota uma fala universalista, colocando em todos os países “do bem” a responsabilidade de combater aqueles que os EUA consideram como inimigos.
Em seu discurso de 2018 do Estado da União, o presidente destaca a resiliência e a força única do povo estadunidense, afirmando que o “American Way” estaria sendo redescoberto sob seu governo. O presidente também reclamou dos acordos injustos com seu país e que qualquer acordo dos EUA deve priorizar os interesses nacionais. No mesmo palanque, discursando para seu eleitorado no ano seguinte, Trump enfatiza a necessidade de cooperação doméstica para a melhoria da vida local e para derrotar os inimigos externos.
Nesses discursos, referências a ameaças ao modo de vida dos EUA e ao seu destino são comuns. A já conhecida crítica do presidente à questão da imigração aparece no discurso de 2020, quando Trump denuncia aqueles que abrigam migrantes irregulares, apresentando-os como uma ameaça à sociedade estadunidense, mas também com elogios ao trabalho de cidadãos e órgãos voltados para preservar a estrutura legal, como o trabalho do Departamento de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos.
A dicotomia fica mais forte quando a crítica é direcionada a países. Condenando territórios como Coreia do Norte e Irã, pela ameaça à segurança do mundo, e China, pela ameaça a seu mercado, Trump enfatiza o caráter superior da riqueza política e cultural de seu país. Países como Irã são ameaças pelo terrorismo e seriam o oposto de tudo que os EUA representam nesse discurso: liberdade, paz e patriotismo. Países como a China ameaçariam o estadunidense comum, na visão de Trump, ao roubar seus empregos, devido a políticas injustas aplicadas ao país. Além disso, a China estaria se aproveitando da boa vontade dos EUA, segundo discurso da União de 2019 e 2020 e o discurso à ONU de 2017 e 2018.
Em comício em Caracas, em 14 de ago. 2017, o presidente Nicolás Maduro discursa contra Donald Trump, cujo governo aumentou as pressões contra a Venezuela (Crédito: Reuters/Ueslei Marcelino)
O republicano também se lança contra governos com ideologias diferentes, criticando Nicolás Maduro na Venezuela e o socialismo em geral no discurso de 2019 e de 2020. Todas essas ameaças que Trump eliminaria trariam, segundo ele, a liderança dos EUA de volta à cena mundial. Os EUA são um grande país que estava em declínio por seu envolvimento desnecessário com questões de outros países, envolvimento esse que colocaria em perigo a capacidade dos EUA de avançar fazendo uso de seu pleno potencial.
Em seu discurso de 2017, Trump classifica tanto a Coreia do Norte como o Irã como grandes inimigos, apresentando suas ações como ameaças contínuas à paz e à humanidade e prontamente se colocando como preparado para detê-los. “Não teremos escolha a não ser destruir totalmente a Coreia do Norte”, disse o presidente no mesmo discurso.
Em discurso de 2019, Trump aponta para Maduro e Cuba como vilões. Maduro estaria destruindo a Venezuela sob comando de Cuba, e os Estados Unidos estariam prontos para ajudar os cidadãos venezuelanos, os quais, nas palavras de Trump, estariam “presos nesse pesadelo”. Trump afirma que os EUA sonham com o dia em que a Venezuela voltará a ser uma terra democrática e coloca o país como uma vítima dos grandes perigos conhecidos como socialismo e comunismo. Trump classifica ambos como ideologias assassinas e totalitárias e que seriam tudo aquilo que é contrário aos EUA.
A fala se intensificou em 2020. Após o ano de 2019, marcado pelo intenso debate comercial entre China e EUA, Trump coloca a China como responsável pela pandemia da covid-19 no discurso de 2020 à ONU. Nele, argumenta que os EUA são vítima de perseguição em questões ambientais, enquanto a China tem seus delitos ignorados.
Trump pode ser interpretado muitas vezes como o desvio da tradição da política dos EUA. Mas há elementos em seus discursos que apontam claramente a continuidade de uma tradição: a da crença na excepcionalidade dos Estados Unidos perante o mundo e a classificação de seu país como dono de um papel de “herói” contra os vilões do mundo. Como Trump fala em seu discurso de 2020, “Os Estados Unidos são uma terra de heróis, a república mais incrível construída na história da humanidade”.
A política do presidente reforça essa tradição, mostrando como seu país tem tanto a capacidade de seguir sozinho como de beneficiar aqueles que estiverem dispostos a negociar de acordo com seus termos. A originalidade de Trump reside, talvez, no tom hostil adotado, que encontraria aceitação por parte do público dentro dos Estados Unidos no contexto atual.
* Aline Gomes de Albuquerque é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (PPGRI/UEPB) e foi bolsista do INCT-INEU. Contato pelo Twitter e pelo LinkedIn.
** Recebido em 25 out. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.