Internacional

Ciência volta à Casa Branca: pandemia e os desafios do governo Biden

Presidente eleito Joe Biden em pronunciamento sobre coronavírus, em 9 nov. 2020 (Crédito: Saul Loeb/AFP/Getty Images)

Por Edna Aparecida da Silva*

A primeira iniciativa do presidente eleito dos EUA Joe Biden foi a indicação dos membros do conselho científico para a formulação de sua estratégia de combate à pandemia da covid-19 e de distribuição da vacina. Assim, a ciência volta à Casa Branca, anunciando a ruptura com o negacionismo do governo Trump e o compromisso de Biden com a presença da comunidade científica em posições importantes da formulação de políticas da administração democrata.

No mesmo dia, a parceria Pfizer/BioNtench publicou a notícia ansiosamente aguardada por Trump e que teria sido um trunfo para sua reeleição: uma vacina para a covid-19. Segundo as empresas, a vacina tem 90% de eficácia. A autorização de seu uso emergencial já foi feita junto à Food and Drugs Administration (FDA, a agência que regula o setor de alimentos e medicamentos nos EUA). Na sequência, veio anúncio similar da Moderna, o que, sem surpresa, provocou a reação de Trump: “Desta vez, da Moderna, com 95% de eficácia. Para aqueles grandes ‘historiadores’, lembre-se de que essas grandes descobertas, que acabarão com a Peste da China, aconteceram sob minha supervisão”.

Com isso, Trump reivindica o legado das vacinas para seu governo, já que as mais promissoras – Pfizer, Moderna, AztraZeneca, entre outras – participaram do programa de financiamento e aceleração da vacina conduzido como projeto especial da Casa Branca, a Operation Warp Speed, desde abril de 2020. O programa desencadeou uma corrida pela vacina, favorecendo o acesso dessas corporações a outras fontes de financiamento público e parcerias.

Importante observar que a comunidade científica, autoridades regulatórias e a FDA, ao lado das empresas de biotecnologia, tiveram papel decisivo na resistência à politização da vacina por Trump. Mais do que resistir, a FDA alterou as diretrizes que impediram uma homologação antes das eleições, levando ao naufrágio da estratégia de Trump de obter uma autorização emergencial de uma vacina antes de 3 de novembro.

As pressões de Trump para a aprovação de uso emergencial, por parte da FDA, geraram um ambiente de desconfiança em relação à vacina. O mesmo já havia acontecido no caso da hidroxicloroquina, com a politização crescente que preocupava a opinião pública. Isso colocou em dúvida a segurança e a eficácia da vacina e afetou os interesses das corporações. Pesquisas de opinião indicavam que a população norte-americana não tomaria uma vacina aprovada antes das eleições.

Donald Trump

“Os National Institutes of Health desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento de vacinas, mas foram excluídos de muitas das decisões governamentais cruciais. E a Food and Drug Administration tem sido vergonhosamente politizada, parecendo responder à pressão da administração em vez de responder a evidências científicas. Nossos líderes atuais minaram a confiança na ciência e no governo, causando danos que certamente durarão mais que eles. Em vez de confiar na experiência, o governo se voltou para ‘líderes de opinião’ desinformados e charlatões que obscurecem a verdade e facilitam a promulgação de mentiras descaradas”, afirma o periódico, em uma crítica que sintetizou a ruptura da comunidade científica com Trump.

O artigo destacava ainda que os Estados Unidos entraram nesta crise com enormes vantagens, como capacidade de fabricação, sistema de pesquisa biomédica, experiência em saúde pública, política de saúde e biologia básica que poderiam ter sido engajadas na busca de novas terapias e medidas preventivas. “E muito dessa expertise nacional reside em instituições governamentais. Mesmo assim, nossos líderes preferiram ignorar e até denegrir os especialistas”, completa o texto.

Cortes orçamentários e ataques à ciência

Essas críticas estão relacionadas à trajetória da administração Trump para minar a pesquisa científica federal e o papel da ciência na formulação de políticas governamentais. Isso ocorreu nas áreas em que a pesquisa contradizia suas visões, ou que obstaculizavam sua agenda de desregulação, especificamente informações e estudos relacionados às mudanças climáticas. Desde o início, o governo seguiu a prática sistemática de censura de informações, cortes orçamentários, troca de pessoal de agências federais, desmonte dos conselhos científicos e limitação de revisão externa independente das bases científicas de suas ações desregulatórias.

Como revelam os dados do Silence Science Tracker, do Sabin Center for Climate Change Law, entre 2017 e 2019, a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) perdeu cerca de 700 cientistas, e apenas metade foi realocada. Mais de 1.600 cientistas deixaram o governo entre 2017 e 2019, o que representa cerca de 1,5% da força de trabalho científica federal. Além disso, conforme mencionado acima, informações e dados que confrontassem a agenda de Trump foram censurados e suprimidos de documentos oficiais, sites, agências e documentos oficiais. Prática que foi repetida no Brasil em relação aos órgãos de monitoramento da Amazônia, indicando um padrão de ação da extrema direita para avançar a agenda de desregulação ambiental e paralisar as agencias ambientais.

Coal miners waiting for Scott Pruitt to arrive for a press event in Sycamore, Pa.
Crédito: Justin Merriman/Getty Images)

Nos EUA, um exemplo foi a atuação do Departamento do Interior no caso de autorização de atividade mineradora que afetava espécies ameaçadas na Virgínia Ocidental, em maio de 2019. A justificativa para a suspensão de um estudo sobre os impactos da mineração de carvão na saúde dos residentes próximos, como exigia as regulações ambientais, segundo notas do Gabinete, era que “A ciência era uma coisa democrata”, conforme exposto em matéria publicada pelo jornal The Washington Post. Essa associação entre ciência e liberais democratas já estava no campo de conflitos relativo ao tema da mudança climática e foi acentuada por Trump com a pandemia.

Além disso, Trump fez cortes no orçamento federal de 2018 em gastos com pesquisas médicas e científicas, programas de saúde pública e prevenção de doenças e seguro saúde para americanos de baixa renda e seus filhos. Como mostram os dados do artigo de Roger Collier “Massive Cuts to Science and Medicine in Trump Budget”, os cortes no orçamento federal do Instituto Nacional de Saúde (NIH, na sigla em inglês) atingiram o Instituto Nacional do Câncer (US$ 1 bilhão), o Instituto Nacional do Coração, Pulmão e Sangue (US$ 575 milhões) e o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (US$ 838 milhões).

Os Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDCs) tiveram, por sua vez, uma diminuição de 17%, o que representou um corte de US$ 1,2 bilhão, que atingiu as pessoas com graves condições de saúde, como diabetes, problemas cardíacos e derrames. Vale lembrar que esses problemas estão associados com a obesidade, que, nos EUA, de acordo com dados do CDC, em 2017-2018 atingiu 42% da população. Um número que revela a fragilidade do quadro geral de saúde pública no contexto da pandemia.

Esse corte representou o menor orçamento em 20 anos e também atingiu fundos para a Fundação Nacional de Ciência e a EPA. Esta última tem papel de liderança e de indução de ações de proteção ambiental, além de dispor de um mandato de “justiça ambiental”, o qual, segundo a Ordem Executiva 12.898, de 1994, refere-se às ações federais para lidar com as minorias e com as populações de baixa renda, afetados pela exposição aos danos ambientais.

Já em 2017 os cientistas se mobilizaram contra as medidas de Trump, com a Marcha para a Ciência, em protesto contra os cortes do orçamento federal para ciência e pesquisa e contra a posição do governo sobre as questões climáticas. A manifestação ocorreu em várias dos EUA, como Washington e Nova York, e em países como Brasil, Holanda, Suíça, Áustria, França, Alemanha e Austrália.

Protesters gathered with signs on Boston Common for the March For Science on Saturday. (Jesse Costa/WBUR)
Manifestantes na Marcha pela Ciência, em Boston, em 22 abr. 2017 (Crédito: Jesse Costa/WBUR)

O negacionismo, anticientificismo e anti-intelectualismo, ao lado do antiglobalismo com críticas à Organização Mundial da Saúde (OMS) e à China, ganharam novo impulso no contexto da pandemia. Como mostra a análise de Webb, Kurtz e Rosenthal, a recusa de evidências científicas e de seu papel nas políticas públicas, bem como a posição de confronto com os cientistas na administração federal, faziam parte do processo de erosão de regulação baseada na ciência sob o governo Trump.

Suas declarações de que a pandemia era insignificante e mais um embuste dos democratas contra os republicanos, no contexto das tensões do processo de impeachment no início do ano, tiveram grande impacto na polarização social e no questionamento das orientações sanitárias. Nos EUA, como no Brasil, a recusa do uso de máscaras adquiriu dimensão simbólica como expressão do negacionismo, assim como a insistência em prescrever medicamentos, como foi o caso da cloroquina, e pressões sobre os órgãos regulatórios.

Em resumo, a atitude e os discursos de Trump, assim como seu arremedo no Brasil, procuravam dar validade às suas próprias opiniões em detrimento do conhecimento científico. No plano das políticas públicas, saúde e meio ambiente, tiveram o claro objetivo de fazer avançar interesses de grupos econômicos e eleitorais, com profundo impacto social, na medida em que deu equivalência entre opiniões e orientações baseadas em evidências, fragilizando as recomendações das autoridades científicas para a contenção da pandemia.

Virada democrata

Este cenário dá a medida da importância política e simbólica da iniciativa de Biden. Ao apresentar as linhas de atuação, na tentativa de superar a polarização da sociedade americana em torno da pandemia, aponta ao mesmo tempo, a responsabilidade de Trump pela gravidade da situação do país. Entre as prioridades do presidente democrata estão o combate à covid-19 e a padronização das ações do governo federal, a formulação de política pública orientada pela ciência e o retorno dos EUA à OMS e ao Acordo de Paris sobre o clima, indicando sua disposição de retomada do multilateralismo.

A saída de Trump da OMS, em julho de 2020, depois de uma trajetória de críticas e de acusações sobre a influência da China na organização desde janeiro deste ano, retirou recursos importantes que teriam contribuído nos esforços globais de contenção da pandemia.

Contrariamente às percepções que mitigam a centralidade da pandemia na política dos EUA, o discurso de Biden mostra que ela foi um elemento central no conjunto das variáveis que afetaram os resultados eleitorais: a crise econômica e o desemprego produzidos pela crise sanitária; e os protestos antirracistas que estimularam a campanha pela voto afro-americano, grupo mais afetado pela mortalidade da covid-19 nos EUA. E seguirá como uma questão estruturante do campo de tensões políticas que desafiam o governo democrata.(Getty Images/AFP File Photo)

Protestos contra a violência policial e o racismo, Washington, D.C., em 6 jun. 2020 (Crédito: R. Schmidt/Getty Images/AFP)

Esses desafios terão implicações para as respostas ao enfrentamento da covid-19 nos EUA e para a retomada de sua liderança global, como a unificação e o pacto nacional. Além da agenda política da transição, o novo presidente terá de lidar com a polarização da sociedade expressa nas urnas, com a força política do trumpismo e dos republicanos no Senado (caso obtenham maioria) e com as tensões internas do Partido Democrata. Isto porque a maioria democrata na Câmara dos Representantes é estreita, o que certamente exigirá composições entre as alas conservadora e progressista do Partido Democrata.

Os votos do chamado The Squad, formado por Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Ayanna Pressley e Rashida Tlaib, contarão para compor maioria nas votações da Câmara dos Representantes, assim como de Bernie Sanders, que já apresentou sua agenda para os 100 dias de governo. A resposta a questões como sistema de saúde e alguma forma de resposta à agenda de bem-estar social nos EUA estarão entre os temas sensíveis do governo Biden.

Assim, em face dos limites da política interna, Biden terá na política externa uma margem mais ampla para avançar seu programa. Está claro que a pandemia e as mudanças climáticas terão prioridade na sua agenda e que, apesar das turras de Trump, a transição de poder nos EUA está consumada. Isso exigirá reposicionamento de seus aliados incondicionais, como no caso do Brasil.

Por fim, a experiência americana mostra que houve uma avaliação da gestão federal da pandemia nas eleições, com profundos impactos nas escolhas dos eleitores. Os movimentos que se articularam na sociedade estadunidense para estimular a participação eleitoral, uma das maiores da história americana, e a derrota de Trump nos estados em que houve alta mortalidade de covid-19, como entre os indígenas no Arizona e afro-americanos no estado de Michigan, são exemplos de evidências do impacto político da pandemia.

 

* Edna Aparecida da Silva é professora da FFC/UNESP e pesquisadora do INCT-INEU. Contato: ednasilva@ineu.org.br.

** Recebido em 17 nov. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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