Tensão entre alas oponentes é novo desafio para democratas
Crédito da ilustração: Rebecca Zisser/Axios
Por Isabelle C. Somma de Castro*
A vitória de Joe Biden na eleição presidencial está longe de aplacar as grandes divisões internas que têm marcado o Partido Democrata nos últimos anos. Como as expectativas de uma onda azul, que aumentaria o número de representantes da legenda no Congresso, não se realizaram, a tensão se aprofundou ainda mais. E a busca pelos responsáveis pelo fracasso no Legislativo já começou.
É bom lembrar que a discórdia não é recente e se arrasta pelo menos desde as primárias democratas para presidente em 2016. Naquele ano, a candidatura de Bernie Sanders provocou grande mobilização e entusiasmo no eleitorado, movido essencialmente pelo discurso progressista. Hillary Clinton, por sua vez, era mais uma figura que representava a corrente mainstream do partido, que dominava os postos de liderança e, principalmente, a máquina da legenda. Hillary levou a melhor diante do senador de Vermont, mas perdeu a eleição para Donald Trump. O problema é que, como muitos desconfiavam, a vitória sobre Sanders teve lá seus meandros. Donna Brazile, chefe interina do Comitê Nacional Democrata, revelou em 2017 que o partido realmente agiu de modo a beneficiar a ex-secretária de Estado, minando a candidatura de Sanders.
Depois desse episódio, é claro que os ânimos não aquiesceram entre os progressistas. Além disso, a vitória de Trump parece ter colaborado para o movimento crescer ainda mais. Um indicativo é que o Democratic Socialists of America, um dos grupos mais progressistas do Partido Democrata e fiador de Sanders, bateu seu recorde de novos afiliados, especialmente entre 18 e 35 anos. Entre 9 de novembro de 2017 e 1o de julho de 2018, o DSA recebeu a inscrição de 13.000 interessados, dez vezes mais do que o melhor ano do grupo.
O movimento não parou por aí. Vários grupos progressistas se organizaram para arrecadar fundos a fim de fomentar candidaturas que atendessem à demanda desse espectro político. A onda ajudou o partido a retomar a maioria da Câmara de Representantes nas eleições de meio mandato presidencial em 2018. A vitória mais simbólica do grupo foi a de Alexandria Ocasio-Cortez, no distrito 14 de Nova York. AOC, como é conhecida, conseguiu a façanha de desbancar nas primárias do partido Joseph Crowley, um político influente na máquina democrata e congressista há cinco mandatos, levantando a bandeira do DSA. A vitória contra o oponente republicano foi bem mais fácil.
Outras três candidatas democratas com bandeiras progressistas ganharam assentos em outras regiões dos Estados Unidos nas eleições de 2018: Ayanna Pressley, em Massachusets; Ilhan Omar, em Minnesota; e Rashida Tlaib, em Michigan. Juntamente com AOC, elas formaram um grupo que ficou informalmente conhecido como The Squad. Todas são mulheres não-brancas, têm menos de 50 e defendem uma agenda voltada para uma economia verde (Green New Deal) e direitos trabalhistas, pautas que pouco empolgam a liderança democrata. Outras como Cori Bush, líder dos protestos em Ferguson, Missouri, não tiveram a mesma sorte em 2018.
Nova tentativa
Em 2020, mais uma vez, a mensagem de Sanders, agora se apresentando claramente como socialista, mobilizou muitos eleitores, e o senador, mais uma vez, quase chegou lá. Contudo, o discurso conservador de que os democratas precisavam de um candidato “moderado” para ter chances contra Donald Trump prevaleceu. Escolhido Joe Biden, os progressistas desta vez aquiesceram e trabalharam para eleger o anti-Trump. Com a vitória consolidada, ninguém tinha dúvidas de que as tensões voltariam cedo, ou tarde.
E voltaram bem rápido. Após a abertura das urnas, ficou claro que o partido perderia assentos na Câmara. Foi um golpe para os democratas que, apesar de manterem a maioria, contavam com um aumento no número de assentos no Congresso. Em relação ao Senado, havia esperança de se obter uma maioria simples, que não se concretizou – o resultado final ainda está indefinido, pois depende da eleição em janeiro das duas vagas da Geórgia. A frustração no Legislativo fomentou o tiroteio verbal entre ambos os lados.
AOC, a estrela dos progressistas, que foi reeleita com mais de 70% do votos em seu distrito, logo passou a defender a ala progressista da acusação de que suas pautas teriam sido prejudiciais para o sucesso nas urnas. A congressista foi incisiva ao afirmar que muitos membros do partido não se adequaram aos novos tempos, ignorando a importância das redes sociais, principalmente durante a pandemia. Além disso, não teriam “batido em muitas portas”, ou seja, feito o tradicional corpo a corpo. A congressista de Nova York disse ainda que todos os candidatos que nessas eleições apoiaram o Medicare for All, plano de saúde abrangente, em distritos muito disputados ganharam. Portanto, segundo ela, o problema eram os “sitting ducks”, que pouco trabalharam para se eleger.
Conor Lamb, membro do outro espectro da ala ideológica da legenda, foi rápido em contra-atacar a colega de bancada. Segundo o congressista, que teve dificuldades em se reeleger em um distrito bastante disputado da Pensilvânia, a defesa de pautas como o Medicare for All, o banimento do fracking (retirada de combustível fóssil do xisto) e a diminuição do investimento na polícia por membros do Partido Democrata é prejudicial para se obter a vitória em zonas eleitorais como a dele e em subúrbios. Lamb afirmou ainda que a ala progressista defende políticas que são “inviáveis e extremamente impopulares”.
Há alguns fatos que contribuem para a discussão, bem lembrados por Ralph Nader, que já foi candidato independente à Presidência dos EUA. Em muitos distritos, é o partido que decide para onde vão os gastos de campanha. Os democratas têm escolhido anúncios na TV, que geram comissões de 15% para quem os faz. Segundo Nader, esses anúncios foram tépidos e não geraram nenhum resultado. Outro fato é que, apesar de terem arrecadado quase duas vezes mais fundos do que os republicanos, os democratas tiveram um desempenho pífio, mesmo para a Presidência.
É possível supor, portanto, que teria faltado uma mensagem que abrangesse a defesa clara de uma agenda que muda a vida das pessoas, como o Medicare for All, que tem o apoio de 70% dos americanos, o pacote de estímulo aprovado em maio pelos próprios democratas, entre outros temas identificados com pautas progressistas. Nader conclui responsabilizando os líderes do partido pelo fracasso: afinal, são eles que decidem os rumos nas eleições.
Ainda é cedo para concluir se um dos lados tem razão, ou ambos, ou nenhum. Mas dois fatos parecem certos: Biden vai ter trabalho para passar suas pautas sem uma maioria também no Senado e ainda vai encontrar muito mais dificuldades se não conseguir unir seu próprio partido.
* Isabelle C. Somma de Castro é bolsista Fapesp de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri-USP). Faz parte do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira e Relações Internacionais (GTF/Unila) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Foi Visiting Scholar 2018-2019 no Arnold A. Saltzman Institute of War and Peace Studies, Universidade de Columbia, com bolsa Fapesp. Contato: isasomma@hotmail.com.
** Recebido em 11 nov. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.