Eleições

As eleições nos EUA e o futuro do trumpismo

Crédito: Mark Peterson/Redux

Por Thiago Lima e Filipe Mendonça*

A eleição de Trump em 2016 é normalmente avaliada como uma reação de parte significativa da sociedade estadunidense à globalização neoliberal e a seus efeitos distributivos indesejáveis. Embora Trump não tenha obtido maioria dos votos populares naquele pleito, o volume de eleitores insatisfeitos com os empregos, salários e oportunidades de prosperidade foi suficiente para garantir vitória no colégio eleitoral com 304 votos, incluindo tradicionais espaços democratas como Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.

O magnata, autointitulado outsider, foi eleito com um discurso abertamente xenófobo, protecionista, misógino e antimultilateralista – respostas a uma inserção internacional alegadamente capitaneada pelos democratas e que beneficiaria apenas populações de grandes centros urbanos, vinculados ao setor financeiro e de hábitos cosmopolitas.

Para muitos, Trump seria a expressão de um voto de protesto, com pitadas de aventura, acidente e manipulação eleitoral por meio de Fake News e com propaganda política personalizada pelas novas técnicas disponíveis nas redes sociais.

Contudo, seu desempenho eleitoral em 2020 demonstra que Trump não foi apenas isso. Passados quatro anos de sua gestão, está claro que há um modo de governar que pode ser sintetizado no termo trumpismo, e que conta com forte apoio. Independentemente do resultado desta corrida eleitoral, nos parece correto dizer que o trumpismo não se trata mais de movimento outsider, e sim de chancela a uma visão de mundo no seio da sociedade estadunidense.

Esta visão de mundo, amplamente apoiada por eleitores e eleitoras, em sua maioria brancos e religiosos, pode ser compreendida também como uma crise civilizacional aguda na capital do Ocidente. Os antiglobalistas, tal qual Ernesto Araújo, costumam dizer que Trump representa um novo fôlego para a civilização ocidental, vilipendiada e em declínio. Paradoxalmente, porém, alguns elementos que serviram para distinguir o Ocidente de outras civilizações e afirmar sua suposta superioridade, do século XVIII para cá, são abertamente rejeitados pelo trumpismo. São eles: a cidadania e a ciência.

A noção de cidadania, no Ocidente, tem raízes nas Revoluções Francesa e Americana, que passam a estabelecer a noção de Direito dos indivíduos como elementos constitutivos e legitimadores do poder político. O Estado, que é a estrutura institucional responsável por proteger o cidadão, recebe como missão precípua a proteção da vida. Escravidão, opressão das mulheres e colonialismo foram políticas que, entre outras, conviveram contraditoriamente com o desenvolvimento da noção de cidadania. Esta, no princípio, era basicamente reservada aos homens brancos e dotados de propriedade privada. Contudo, na trajetória histórica do Ocidente, a cidadania foi sendo alargada e aprofundada para cobrir direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais das pessoas.

A ciência, por outro lado, era a responsável pelo “desencantamento do mundo”, nas palavras de Max Weber. A ciência como método permitia encontrar soluções para os problemas concretos na engenhosidade e na experiência conduzidas por pessoas de carne e osso, não mais por revelações divinas, ou desígnios sagrados. Isso não significou que o Ocidente tenha se tornado ateu, ou agnóstico, mas sim que as políticas públicas mais importantes (a defesa militar, a administração da economia, a saúde pública, entre outras) passaram a ser determinadas cada vez mais por métodos positivistas, isto é, por um tipo de conhecimento que era validado por experimentos observáveis e replicáveis.

Trump, por sua vez, despreza a cidadania ao acenar para grupos supremacistas, ao objetivar as mulheres, ao segregar minorias, ao criminalizar refugiados e ao atacar regras escritas e não escritas do jogo político estadunidense. Ao mesmo tempo, Trump despreza a ciência ao ignorar as boas práticas no combate à pandemia, ao solapar a formulação de políticas públicas com base em evidência, ao negar a catástrofe climática que se avizinha e ao incentivar um tipo de anti-intelectualismo típico de líderes negacionistas e autoritários.

As centenas de milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas nos Estados Unidos demonstram o desprezo à proteção da vida, que é o elemento mais fundamental da cidadania. A experiência de outros países, ricos e pobres, mostra que sim, seria possível impedir que a principal economia do mundo, a principal fonte de ciência do mundo, fosse o território da maior quantidade de vítimas letais da pandemia.

Portanto, mesmo que Trump saia derrotado deste pleito em 2020, o trumpismo permanecerá como uma das principais, se não a principal, força política nos Estados Unidos. Isso porque o trumpismo captura fissuras profundas no tecido social estadunidense, marcado por gaps geracionais, desinformação, ansiedades de todo o tipo e pressão econômica. O trumpismo permanecerá como forma poderosa de se fazer política: uma política que ignora os ritos, atropela a estrutura partidária e tensiona os limites da democracia estadunidense.

Ademais, o Partido Republicano permanecerá controlando o Senado, além de possuir força suficiente na Câmara dos Deputados para inviabilizar, naquilo que cabe ao Poder Legislativo, um eventual governo de Joe Biden. Na Suprema Corte, a nomeação da juíza conservadora Amy Coney Barrett desestabilizou ainda mais o equilíbrio daquele tribunal superior, marca que deverá persistir por muito tempo.

Biden, caso vença, não repactuará o país. Já o trumpismo, que surge em 2016 e se consolida em 2020, deverá chegar em 2024 remodelado. Seguirá demonstrando que a crise a que assistimos hoje na sociedade estadunidense será duradoura e cada vez mais profunda. Uma crise civilizacional na “capital do Ocidente” e que, talvez, só não esteja ainda mais enraizada por causa dos efeitos negativos da pandemia na economia dos Estados Unidos e por causa da recente queda de popularidade do presidente Trump diante de mais de 235 mil mortos pela covid-19.

 

* Thiago Lima é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e Filipe Mendonça é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Ambos são pesquisadores do INCT-INEU.

** Publicado originalmente no blog Gestão, Política & Sociedade, do Estadão, em 6 nov. 2020. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

 

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