Internacional

EUA lidera bloco conservador internacional contra aborto, uma pauta feminista histórica

Ativistas pró-escolha e antiaborto, em passeata em Washington, D.C. em 18 jan. 2019 (Crédito: Saul Loeb/AFP/Getty Images)

Por Renata Peixoto de Oliveira*

O ano de 2001 foi decisivo para estabelecer uma nova ordem internacional, após os atentados do 11 de Setembro, bem como o ano de 2011 foi fundamental para sinalizar um novo período, marcado por levantes populares, dinâmicas contenciosas em diferentes países e pelo ascenso de forças conservadoras. Um marco para estas mudanças foi a chegada de um novo político, como Donald Trump, à Casa Branca. Isto levou o país a reforçar alguns vínculos, estabelecer novos aliados e novos inimigos.

Um dos aspectos que mais notórios, neste novo momento político estadunidense, é a mudança de posicionamento e de discurso político sobre temas que já foram muito caros aos Estados Unidos e marcaram a atuação do país junto a diferentes organismos internacionais. Chama atenção o atual posicionamento de Washington em relação a tópicos que antes integravam uma pauta em torno da defesa dos direitos humanos – e que foram sendo enquadrados em uma dimensão moral e ética –, em especial, a questão dos direitos reprodutivos.

A despenalização do aborto nos Estados Unidos

Os EUA despenalizaram o aborto em 1973, em um processo que denotou uma vitória histórica dos movimentos feministas, em meio à segunda onda feminista. Isto aconteceu a partir do caso Roe contra Wade, quando a Suprema Corte decidiu que a não concessão do direito ao aborto viola o direito constitucional à privacidade, garantido sob a cláusula do devido processo legal da 14ª Emenda Constitucional. O caso abriu importantes precedentes, e hoje o país (ainda) conta com clínicas especializadas para o procedimento do aborto.

O presidente Trump é contrário a este argumento que fundamentou a decisão da Suprema Corte à época e que sinalizou, pela primeira vez, a despenalização do aborto no país. Uma Suprema Corte contando com maioria conservadora atenderá, nesse sentido, aos interesses de governos republicanos.

Movimentos feministas, direitos reprodutivos e era Trump

Nos últimos anos, os movimentos de mulheres e o movimento feminista foram importantes contrapontos ao avanço conservador e em favor dos direitos humanos e do Estado democrático de direito em diversas partes do mundo. Isto não foi diferente nos EUA, já que, desde a eleição de Trump, a marcha das mulheres se tornou uma das maiores expressões contra sua administração e contra seu posicionamento político diante de temas como o direito ao aborto.

A adesão ao aborto legal diminuiu no país. Isso pode ser reflexo de posições mais radicais em torno do tema, mas também o êxito de políticas de planejamento familiar, ou de aspectos culturais, como o desejo de ter menos filhos. Além disso, mulheres com dificuldades de acesso às clínicas credenciadas podem ter recorrido a outras formas de realizar o procedimento.

Na esfera doméstica, as restrições sobre os direitos das mulheres, em especial, ao aborto legal, é sentido tanto pelo posicionamento do governo federal quanto da maior parte dos estados. Dos 50 estados da federação, 43 impõem restrições à prática do aborto legal. De maioria republicana, os estados sulistas se opõem, em geral, de forma mais decisiva contra o aborto legal, seja por meio das ações dos governos locais, seja pela atuação de grupos ativistas. Quanto ao número de clínicas, observa-se que o Meio-Oeste e as planícies também apresentam, assim como alguns estados sulistas, um número muito reduzido. O acesso e as condições a este direito reprodutivo dependem do estado da federação em que a mulher reside.

Imagem 1: Distribuição de clínicas de aborto pelo território estadunidense (2014)

Abortion Clinics Per State 2014 BI Graphics
Fonte: Skye Gould/Business Insider

Além da escassez de clínicas e de sua distribuição desigual pelo território nacional, estes estabelecimentos vêm-se reduzindo drasticamente nos últimos anos, já que muitos foram fechados. Entre 2012 e 2019, por exemplo, o fechamento foi de 32%, com pelo menos 250 restrições impostas a esta prática na sessão legislativa de 2018-2019. Muitas delas foram prontamente promulgadas em alguns estados.

De um modo geral, os ultraconservadores e a administração Trump tiveram uma importante e recente conquista, a qual terá um forte e duradouro impacto sobre este tema, independentemente de quem vença as eleições de 3 de novembro de 2020. A nomeação da juíza conservadora Amy Coney Barrett para a vaga da progressista Ruth Bader Ginsburg, falecida recentemente, será decisiva para o posicionamento da Suprema Corte sobre este tema, entre outros, já que, a partir de agora, as forças conservadoras são maioria na Casa.

Católica fervorosa e pertencente a um grupo de renovação carismática chamado “people of praise”, Amy Barrett é mãe de sete filhos e tem-se mostrado favorável a várias das polêmicas políticas implementadas pelo governo trumpista, como as políticas migratórias restritivas, mostrando-se, também, favorável à ampliação do direito de porte e posse de armas e contrária ao “Obamacare”. A juíza também é abertamente contrária ao casamento igualitário e ao direito ao aborto.

Liderando o bloco conservador em uma nova cruzada moralizante

Neste contexto, o que é significativo mesmo é a mudança de posicionamento de Washington na esfera internacional, a partir de Trump. Antes, cabe lembrar que, em meio à pandemia da covid-19 e apesar da condição de recordista mundial de casos de contágio (mais de 9,1 milhões) e de óbitos (mais de 230 mil) pelo novo coronavírus, os Estados Unidos encaminharam sua retirada da Organização Mundial da Saúde (OMS). Os EUA passaram a criticar a Declaração de Pequim (1995) junto à Comissão sobre Assuntos da Mulher na ONU, um documento que é fruto da IV Conferência Internacional sobre a Mulher.

Internacionalmente, o Brasil sob o comando de Jair Bolsonaro se tornou o principal aliado dos EUA neste tema. O país já havia causado polêmica em 2019, quando, na condição de membro do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas vetou o termo “gênero” em uma resolução sobre discriminação de gênero. Ao lado do Brasil, alguns países islâmicos sinalizaram a mesma postura, o que gerou espanto, incredulidade e reações contrárias por parte de algumas delegações. No ano seguinte, o Brasil cumpriu o papel de articulador da Declaração de Genebra, promovida pelos Estados Unidos, e que deu passos decisivos em 2020, contrariando os consensos estabelecidos no pós-1945 com a construção do sistema ONU.

O dia 22 de outubro de 2020 marcou um importante passo das forças conservadoras mundiais lideradas pelo governo Donald Trump. Assinada em Washington, a Declaração de Genebra contou com papel decisivo de países como Egito, Hungria, Indonésia e Uganda e Brasil. Desde a eleição de Trump em 2016, a potência mundial está chancelando não apenas a guinada à direita, vislumbrada pela ascensão de forças políticas alinhadas a setores ultraconservadores, como também apoia regimes autoritários que se perpetuam no poder em diferentes partes do mundo. Tudo isso sob a justificativa da defesa de valores religiosos e do modelo de família tradicional. Alguns duros golpes ao argumento de que os Estados Unidos são a terra da liberdade.

 

* Renata Peixoto de Oliveira é doutora em ciência política pela UFMG e docente da UNILA, pesquisadora do INCT-INEU e membra do Comitê Executivo pela Equidade de Gênero e Diversidade (CEEGED) da UNILA. Contato: renata.oliveira@unila.edu.br.

** Recebido em 31 out. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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