Eleições

‘Terra de ninguém’? Os direitos de voto nas eleições americanas de 2020

Crédito da imagem: Stockbyte/Gettty/Wavebreakmedia/Rawpixel.com/Shutterstock/Katie Martin/The Atlantic

Panorama EUA_OPEU_Os direitos de voto nas eleições americanas de 2020 v10 n7 Nov 2020

Por Celly Cook Inatomi*

Imagine um professor universitário norte-americano, especialista e pesquisador de questões eleitorais. Há anos, ele vem pesquisando grandes fraudes no sistema eleitoral dos Estados Unidos, dizendo encontrar dados estarrecedores sobre estrangeiros exercendo ilegalmente o direito de voto. Ele publica artigos relatando esses resultados, chamando atenção de republicanos defensores de leis mais rígidas para o registro eleitoral. Seu trabalho os habilita a dizer que as grandes fraudes eleitorais não são teorias da conspiração, contrariando, assim, diversas pesquisas nacionais que apontam que o sistema eleitoral americano é confiável.

Imagine, então, que esse professor é chamado para integrar comissões de investigação nacional e também é convidado para participar como especialista de importantes processos judiciais, dando embasamento científico para as leis restritivas do exercício de voto. Ao testemunhar em um desses processos, ele expõe um de seus principais métodos de pesquisa, que consiste basicamente em identificar nas listas suspeitas de registro eleitoral sobrenomes que “soam estrangeiros”. E, quando ele é questionado a esse respeito, imagine que ocorra a seguinte situação:

Interrogador: Apenas hipoteticamente, professor, se o senhor se deparasse com o nome Carlos Murguia, você codificaria como estrangeiro, ou não estrangeiro?

Professor: Desculpa, você poderia, por favor, soletrar o nome?

Interrogador: Claro. Carlos, C-A-R-L-O-S, Murguia, M-U-R-G-U-I-A.

Professor: Provavelmente.

Interrogador: Provavelmente o quê?

Professor: Provavelmente eu codificaria como estrangeiro.

Interrogador: Ok. O senhor sabia que Carlos Murguia é um juiz de uma corte distrital dos Estados Unidos, que inclusive trabalha nesta corte onde estamos hoje?

Professor: Eu não sabia.

 O ‘fraudulento esquadrão da fraude’

Difícil imaginar uma situação tão constrangedora quanto a descrita acima? Pois ela ocorreu concreta e exatamente da maneira descrita, como mostrou Richard L. Hasen em seu livro Election Meltdown: Dirty Tricks, Distrust, and the Threat to American Democracy, lançado este ano pela Yale University Press.

Hasen relata que, em março de 2018, Jesse T. Richman, professor de ciência política da Old Dominion University, foi convidado por Kris Kobach (secretário de Estado do Kansas), para compor o grupo de especialistas a testemunhar no importante caso Fish v. Kobach, na Corte Distrital Federal daquele estado. Sua função, assim como a dos demais especialistas, era a de fornecer evidências científicas de que estaria ocorrendo uma grande e devastadora fraude eleitoral no Kansas, ao passo que milhares de estrangeiros estariam votando ilegalmente. Essas evidências ajudariam a justificar a lei estadual tema da controvérsia judicial e que havia suspendido o registro eleitoral de cerca de 30 mil pessoas em todo estado. Foi nessa ocasião que Richman se expôs da maneira vergonhosa relatada acima.

Anos antes dessa situação, contudo, o professor Richman já tinha exposto outros métodos de pesquisa tão ou mais questionáveis do que o que apresentou durante o julgamento. Em 2014, em coautoria com Guisham A. Chattha e David C. Earnest, Richman publicou um relatório, denunciando que a fraude eleitoral em favor dos democratas era de tal magnitude que poderia ter sido responsável pela vitória de Barack Obama nas eleições presidenciais de 2008. Neste estudo, o professor e seus colegas apontaram que 32 mil estrangeiros tinham se registrado para votar no estado do Kansas, além de tantas outras fraudes em outros estados.

Como eles descobriram isso? Eles usaram como base os dados de uma pesquisa nacional de opinião pública, Cooperative Congressional Election Study (CCES), que apontava que, entre 2006 e 2014, dos 14 estrangeiros autodeclarados no Kansas que responderam à pesquisa, quatro disseram que votaram nas eleições de 2008. Os autores, então, simplesmente (para não dizer escandalosamente), aplicaram a taxa de 4/14 do CCES para os 114 mil estrangeiros adultos no estado, encontrando assim o número de 32 mil estrangeiros eleitores.

Segundo Richard Hasen, que ficou espantado com o fato de esse relatório ter sido publicado, contestações a ele não faltaram. Na época, inclusive, uma carta foi assinada por 200 cientistas políticos de todo país, criticando o artigo e a metodologia utilizada. Stephen Ansolabehere, renomado professor de ciência política de Harvard e um dos fundadores do CCES, juntamente com Samantha Luks e Brian F. Schaffner, disseram que o estudo de Richman usou muito mal os dados disponibilizados pela pesquisa e que a correta interpretação mostrou uma taxa quase próxima de zero de estrangeiros que votaram. E, segundo a extensa base de dados News21, que congrega processos criminais e condenações eleitorais por todo país, as acusações de votos de estrangeiros foram apenas de 2,8% dos casos entre os anos de 2000 e 2012, 56 casos em mais de 2000. E, desses 56 casos, apenas dois resultaram em condenação.

Nenhuma dessas informações fez diferença para Kris Kobach, que tinha Jesse Richman como um dos seus melhores especialistas em fraude eleitoral, convidando-o assim para compor o grupo de especialistas no caso judicial de 2018.

Além de Richman, Kobach também convidou Hans von Spakovsky, da Heritage Foundation, para participar como especialista no caso. Embora fosse graduado em Direito e se identificasse como especialista em administração eleitoral e em fraude de votos, von Spakovsky admitiu não ter sequer escrito estudos revisados por pares sobre administração eleitoral e disse ainda que não tinha ideia se os métodos por ele utilizados obedeciam aos padrões aceitos nas ciências sociais. Apesar de se dizer especialista, não conseguia identificar mais ninguém no país que ele considerasse de fato um especialista em fraude eleitoral, especialmente em questões de votos ilegais de estrangeiros. Também não conseguiu demonstrar as grandes fraudes eleitorais que há anos dizia ocorrer nos EUA, sendo desmentido por investigações públicas posteriores, diversos estudos e bancos de dados como o News21.

Donald Trump and Kris Kobach
Kris Kobach e o presidente Trump (Crédito da imagem: Jabin Botsford/The Washington Post via Getty Images)

Em 2017, Von Spakovsky havia integrado a malograda “Comissão Consultiva Presidencial sobre Integridade Eleitoral”. Essa Comissão havia sido montada por Donald Trump no início de seu governo, em meio à febre discursiva por ele criada de que as eleições de 2016 haviam sido fraudadas. Segundo Hasen, embora Mike Pence tivesse sido nomeado para presidir a Comissão, quem fazia isso concretamente era Kris Kobach, que dirigia os encontros e ditava a agenda. E, diferentemente de todos os comitês já criados, o de Trump se mostrou bastante problemático desde o início. Se antes as comissões eram compostas de forma equilibrada por membros de ambos os partidos e com representantes políticos e especialistas eleitorais reconhecidos, a Comissão de Trump funcionou quase como uma comissão secreta. Além de ter mais republicanos do que democratas, os integrantes de ambos os lados eram absolutamente desconhecidos nacionalmente no campo administrativo eleitoral.

O desequilíbrio bipartidário e a falta de especialistas competentes eram, porém, mais um projeto do que propriamente um defeito da Comissão. Hasen relata que, antes mesmo de Trump nomear qualquer membro, Von Spakovsky chegou a enviar um e-mail para Jeff Sessions, então secretário de Justiça de Trump, sublinhando a necessidade de excluir democratas, acadêmicos e também “republicanos mainstream” da Comissão. E, posteriormente, documentos oficiais mostraram que Von Spakovsky e outros membros trumpistas se comunicavam com Kobach sem o conhecimento dos membros democratas, excluindo-os da discussão sobre as medidas a serem aplicadas.

Desde o início, a Comissão enfrentou problemas para atuar, inclusive por conta de republicanos contrários aos procedimentos aplicados por Kris Kobach – e que eram sugeridos por especialistas como Von Spakovsky. A solicitação de registros eleitorais de cada estado, incluindo nomes, endereços, datas de nascimento e números de seguro social, assustou muitos estados e políticos de ambos os partidos. Democratas desconfiavam que o objetivo da Comissão era apenas o de criar justificativas para leis de supressão de votos, e republicanos apontavam que a Comissão estava violando leis de privacidade e o princípio de soberania dos estados em questões eleitorais. Cidadãos simpáticos ao Partido Republicano no Colorado, por exemplo, começaram a cancelar seus registros eleitorais depois que o estado concordou com os requerimentos da Comissão, porque eles não queriam que o governo federal tivesse acesso aos seus dados pessoais.

A Comissão também passou a ser questionada nas cortes. Como relata Hasen, organizações como a Common Cause, por exemplo, processaram a Comissão por violar a lei de privacidade, que proíbe a coleta de informações pessoais confidenciais pelo governo em determinadas circunstâncias. E o secretário de Estado do Maine, Matthew Dunlap, um dos membros democratas da Comissão, processou-a por violar uma lei federal sobre transparência e justiça nas operações de aconselhamento presidencial. Dunlap venceu o caso e pôde finalmente ter acesso aos documentos da Comissão, que acontecia “em segredo” entre os membros trumpistas.

Sem apresentar qualquer relatório com evidências das chamadas “grandes fraudes eleitorais”, e não conseguindo, portanto, justificar cientificamente a necessidade de leis mais rígidas para o registro eleitoral, a Comissão acabou sendo dissolvida por Trump em janeiro de 2018. Sem surpresas, e sem mencionar obviamente as resistências republicanas, o presidente acabou acusando os democratas de não colaborarem com os trabalhos da Comissão, e que isso estaria causando aos cidadãos contribuintes custos desnecessários em função das batalhas jurídicas que se abriram.

Chamada por Hasen como o “fraudulento esquadrão da fraude”, a Comissão acabou se configurando como um grande divisor de águas na história moderna do mito da fraude eleitoral. O discurso que pessoas como Kris Kobach, Hans von Spakovsky e Jesse Richman sustentavam há anos sobre as grandes fraudes eleitorais, bem como sobre milhões de estrangeiros votando ilegalmente no país, entre outras histórias, encontrou claras barreiras no plano das investigações nacionais e das pesquisas acadêmicas, que apontavam e continuam apontando que a fraude de votos é algo extremamente raro e que as reclamações com relação a ela servem como um pretexto para passar leis que restringem o direito das pessoas de votar.

O voto por correio e o autoritarismo de Trump

O problema central é, contudo, que as histórias sobre fraude eleitoral parecem ter colapsado apenas no campo acadêmico/intelectual. No campo político, elas se fortaleceram ainda mais. Para piorar, a soma dessas histórias com os impactos da pandemia nas eleições tem gestado um cenário perfeito para a retórica incendiária e autoritária de Donald Trump sobre fraude eleitoral, ainda que suas mentiras sejam constantemente esclarecidas e desmentidas. Alguns autores e pesquisadores têm previsto, inclusive, que o período pós-eleição será um cenário de “terra de ninguém”, ou de caos constitucional sem saída fácil e imediata, cenário que tem sido construído por Trump de forma bastante contundente e premeditada.

Com a pandemia, muitos procedimentos eleitorais tiveram de ser alterados para evitar aglomerações nos locais de votação, e o voto por correio tem sido a alternativa mais buscada para garantir a segurança e também os direitos de voto dos cidadãos. Segundo pesquisa feita pelo jornal The Washington Post em 50 estados do país, 198 milhões de eleitores qualificados (que representam 84% de todo eleitorado), terão a opção de votar por correio. Com o uso mais ampliado desse recurso, outros procedimentos a ele relacionados também precisaram ser alterados.

Image: Last day of early voting in Florida
Ponto de coleta de cédulas, biblioteca pública C. Blythe Andrews Jr., em East Tampa, Flórida, 16 ago. 2020 (Crédito da imagem: Octavio Jones/Reuters)

Para garantir que haja tempo hábil para a operacionalização e a contagem dos votos, muitos locais têm tentado adiantar e/ou estender os prazos de recebimento e tratamento desses votos pelos operadores eleitorais. Outros locais também têm buscado desburocratizar alguns requerimentos que exigem, por exemplo, a coleta de assinatura de duas testemunhas para poder votar a distância. Outras localidades têm enviado as cédulas de votação para os eleitores independentemente de seu requerimento, para acelerar um processo que, em função das circunstâncias, poderá demorar mais tempo do que o previsto.

Essas mudanças (ou tentativas de mudança) não têm sido feitas sem resistência, porém, especialmente de estados e/ou políticos republicanos que não aceitam mudar as regras eleitorais por causa da pandemia, defendendo, contrariamente, leis que dificultam cada vez mais o registro eleitoral. Trump tem liderado essa defesa, alegando que a eleição de 2020 será a mais fraudada da história dos Estados Unidos, em especial em função do uso do voto por correio. Segundo ele, o voto por correio é um procedimento fraudulento que é utilizado por democratas há anos para trapacear nas eleições.

E o fato de o voto por correio necessitar de mudanças em diversos outros procedimentos tem dado a Trump e a republicanos a pauta de histórias a serem inventadas, aumentadas e espalhadas por todo país – tanto para justificar legal e procedimentalmente a retirada massiva de direitos de voto, quanto para levar o sistema eleitoral a uma inflexão nunca antes vista na história americana.

Hasen relata que eles chegaram, inclusive, a fazer uma simulação de como se daria o voto pelos correios, para verificar todos os pontos do processo que poderiam apresentar problemas. Isso seria um cuidado necessário e importante, caso fosse feito para melhorar os procedimentos do voto a distância, com o objetivo de preservar o direito de voto das pessoas. A simulação foi feita, contudo, apenas para auxiliar Trump e os republicanos a questionarem o resultado das urnas no pós-eleição.

A história da fraude do voto por correio os ajuda a chegar aonde realmente querem: questionar a lisura das eleições populares para, com o uso das prerrogativas do Colégio Eleitoral, substituir os votos dos cidadãos pela nomeação feita pelos senadores. Por isso não se importam em dizer abertamente que o voto por correio é um procedimento fraudulento, mesmo que ele seja utilizado há anos e de forma quase que integral, e sem relatos de fraude, por estados republicanos.

Richard Hasen tem apontado que, de fato, das diversas histórias de fraude eleitoral que são inventadas, as que têm mais probabilidade de serem utilizadas de forma oportunista são as histórias de voto por correio, dada a diversidade de procedimentos e etapas do processo que podem se tornar alvo de questionamentos. O autor afirma que, se o voto por correio é utilizado de forma massiva, como será o caso agora, aumentam-se claramente as chances de erros administrativos e operacionais, que já ocorriam antes em números inexpressivos, mas que agora podem ocorrer em escala um pouco maior. E isso poderia justificar investimentos para um melhor monitoramento das eleições pelos já competentes sistemas estaduais de acompanhamento eleitoral. Nem Trump e nem seus apoiadores republicanos querem, no entanto, destinar recursos para melhorar o processo de tratamento e de apuração dos votos por correio, colocando-se resolutamente contrários a eles.

Outro fator bastante interessante e que demonstra o uso oportunista e autoritário da história da fraude do voto por correio é a recusa de Trump e de muitos estados republicanos a aceitarem a presença dos observadores eleitorais internacionais.

Como é sabido, os Estados Unidos apoiam com frequência a monitoração internacional de eleições em outros países, por meio da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). E, desde 2002, alguns estados americanos têm permitido a presença de observadores eleitorais internacionais, como é o caso de Califórnia, Missouri, Novo México e Washington; enquanto outros têm leis que permitem pedir ajuda a monitores internacionais, como é o caso do Havaí, Dakota do Norte, Dakota do Sul e Virgínia. Grande parte dos estados não permite a presença de observadores internacionais, porém, tomando a prática como terminantemente proibida – caso dos estados do Alabama, Alaska, Arizona, Connecticut, Flórida, Louisiana, Mississippi, Ohio, Oklahoma, Tennessee e Texas. Todos os outros estados não se manifestam acerca das missões internacionais.

Uma pesquisa realizada na Internet pela organização The Conversation US juntamente com o International Public Opinion Lab da Western Kentucky University mostrou que mais de 70% dos cidadãos concordam com a presença dos observadores eleitorais internacionais nas eleições de 2020, com o apoio de 77,2% entre eleitores democratas, e 65,3%, entre eleitores republicanos. E também foi mostrado que os entrevistados preocupados com a pandemia eram mais propensos a apoiar os observadores eleitorais, independentemente da filiação partidária. Outras pesquisas expuseram ainda o alto nível de preocupação dos americanos com essas eleições, com uma grande porcentagem acreditando que podem ser fraudadas.

Assim, apesar de Trump e seus apoiadores construírem uma narrativa incendiária sobre fraudes nos votos por correio, alarmando a população, eles não permitem nem os investimentos para melhorar a monitoração desses votos (garantindo o direito dos cidadãos), nem o acompanhamento dos observadores eleitorais internacionais. Simplesmente ignoram o contexto da pandemia, incentivando seus eleitores a irem às urnas e dificultando o voto para aqueles que não podem comparecer aos locais de votação. Eles preferem, ainda, incitar seus grupos de fiéis a monitorarem as eleições por eles mesmos, de forma independente, sem organização e sem qualquer autorização oficial dos quadros administrativos eleitorais estaduais, como se qualquer pessoa pudesse entrar nos locais de votação e averiguar livremente os trabalhos que estão sendo feitos.

Desde o início dos anos 1980, os republicanos foram proibidos de enviar policiais fora de serviço para os locais de votação, por conta dos conflitos raciais que a presença desses policiais causaram. Hoje, essa proibição caiu por terra, e as eleições de 2020 podem voltar a ter as eleições com esse tipo de “monitoramento”. Por conta disso, aliás, especialistas e estudiosos temem que ocorram conflitos nas ruas durante e após o dia 3 de novembro, instalando um cenário de caos que ninguém sabe como, quando e quem poderá lhe colocar um fim.

Armed pro-trump militia members during a demonstartion on the day of the Kentucky Derby in Louisville, Ky., September 5, 2020.

Milícias armadas pró-Trump em passeata em Louisville, Kentucky, 5 set. 2020 (Crédito da imagem: Alex Lourie/Redux)

Além disso, Trump não apenas ameaça não aceitar o resultado das eleições, caso perca, dizendo repetidamente que são eleições fraudadas, como também pede para que a população confie apenas nas informações dadas por ele e por seus “guardiões”, destruindo a confiança pública nas instituições eleitorais, na imprensa oficial e nas pesquisas nacionais e acadêmicas. Uma centralização bastante interessante (autoritária) para quem diz prezar tanto pela liberdade. Acontecesse isso em qualquer país da América do Sul, por exemplo, teríamos não apenas comissões internacionais monitorando as eleições, como também uma pressão internacional bastante contundente para a derrubada de tal presidente autoritário.

O que tem feito a Suprema Corte para defender os direitos de voto em meio ao caos?

Como desgraça nunca vem sozinha, a pandemia tem feito muito mais do que “apenas” potencializar as mentiras de Trump sobre fraude eleitoral: ela tem revelado, como defende Richard Hasen e David Schultz, todas as fragilidades da proteção constitucional do direito de voto, que são agravadas pelas decisões da Suprema Corte conservadora. Quando não têm defendido inteiramente as restrições estaduais ao direito de voto, as cortes têm feito muito pouco para defender esse direito básico mesmo em meio a uma pandemia, portando-se de forma abertamente partidária.

A Suprema Corte tem dado a chancela jurídica necessária para o que já pode ser considerado o que alguns chamam de “o segundo maior expurgo eleitoral ocorrido na história dos Estados Unidos”. E, nessa esteira, caso Trump pretenda questionar o resultado nas urnas no Judiciário – o que é tido como certo –, ele poderá encontrar guarida para o seu autoritarismo.

É certo que o caráter profundamente fragmentado do sistema eleitoral americano tem se mostrado extremamente problemático no contexto da pandemia, dado que as mudanças necessárias nos procedimentos acabam passando por diferentes processos administrativos e tendo de responder a diferentes normativas estaduais. Não é à toa que já existem cerca de 160 ações judiciais eleitorais nas cortes americanas somente em função de questões relacionadas à pandemia, colocando em xeque tanto as medidas locais, ou estaduais, tomadas, quanto a prerrogativa das autoridades que as tomaram. O aumento das ações judiciais de modo geral são efeitos claros não apenas da descentralização eleitoral extremada, mas também, e sobretudo, das decisões tomadas pela maioria conservadora da Suprema Corte, que vem autorizando há anos uma série de medidas estaduais republicanas bastante prejudiciais para os direitos de voto.

Segundo Mark Tushnet, não se deve subestimar a capacidade criativa do contorcionismo jurídico feito pelos juízes conservadores da Suprema Corte. E alguns estudiosos têm levado esse conselho a sério, como é o caso de Ken I. Kersch e o já tão citado Richard Hasen. No campo dos direitos civis, Kersch tem mostrado a profundidade filosófica do contorcionismo constitucional que juízes conservadores têm feito para adequar fundamentalismos diversos com seus entendimentos específicos sobre liberdade. No campo dos direitos eleitorais, no entanto, longe de se ter grandes e complicadas construções argumentativas, Richard Hasen tem mostrado o quão rasos têm sido os argumentos conservadores, deixando explícito o partidarismo da Corte e sua desatenção com a defesa dos direitos de voto dos cidadãos.

Dentre esses argumentos, Hasen observou a existência de três ferramentas doutrinárias centrais utilizadas há anos pelos juízes conservadores e que vêm aprofundando o desvio partidário da Corte em prol dos republicanos – e, para piorar, em detrimento dos direitos de voto. A primeira ferramenta é a que Hasen chamou de “(falsa) ingenuidade”, aplicada geralmente para descartar argumentos de caráter científico sobre o sistema eleitoral americano. A segunda é a “presunção de boa-fé legislativa”, utilizada para descartar as contestações de leis estaduais restritivas do direito de voto. E a terceira é a que Hasen denominou de “animus laundering”, ou “limpeza de hostilidades”, mobilizada pelos juízes para remover a vertente discriminatória de determinadas ações políticas. Todas as três ferramentas, cada uma a sua forma, tem ajudado a esvaziar o importante Voting Rights Act de 1965.

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Observado pelo reverendo Martin Luther King Jr. e por outras lideranças do movimento pelos direitos civis, o presidente Lyndon B. Johnson assina a Voting Rights Act, 6 ago. 1965 (Crédito: Casa Branca/National Archives)

Em casos como Gill v. Whitford (2018) e Rucho v. Common Cause (2019), fica bastante evidente a utilização da “(falsa) ingenuidade” e da “presunção da boa-fé legislativa”. Liderando o voto da maioria conservadora na Corte, o juiz John Roberts descartou o uso de evidências científicas para discutir a questão do redistritamento eleitoral, dizendo ser impossível entender os índices matemáticos trazidos pelos peticionários para demonstrar que o redistritamento feito pelos republicanos era inconstitucional. Para Roberts, além de serem difíceis de entender, as demonstrações matemáticas são como coisas esotéricas, “um monte de bobagens”, pois elas lidam com as expectativas de votos, que, na sua visão, são coisas impossíveis de se prever.

Além disso, ele também ignorou por completo as evidências científicas reunidas pelos peticionários que mostravam como a tecnologia computadorizada estava conseguindo manter exemplos de gerrymandering efetivos e duráveis em diversos estados. E, para piorar, em Rucho v. Common Cause, Roberts disse que as cortes federais não podem interferir no gerrymandering partidário, declarando-o como constitucional.

Segundo Roberts, o gerrymandering partidário não é um gerrymandering racial, este sim proibido pela Constituição. Para ele, exigir que a Suprema Corte impeça esse fenômeno “natural” da vida política americana é que seria exigir da Corte um posicionamento partidário. Para ele, não existe o questionamento, se o partidarismo excessivo nos redistritamentos leva a resultados injustos. Deve-se apenas presumir que não há má-fé alguma no fato de um estado querer diluir o poder do partido opositor no contexto do redistritamento.

Conforme o autor, essas decisões não apenas permitiram a continuação dos redistritamentos partidários, como também têm fechado os olhos para o fato de que muitos deles podem se constituir em redistritamentos raciais, dada a alta identificação partidária de grupos minoritários com o Partido Democrata. Além disso, toda a linguagem utilizada nessas decisões tem dado esperanças a litigantes que pressionam por um direito constitucional de um sistema eleitoral partidário, como é o caso de peticionários no estado de Michigan que estão desafiando comissões não-partidárias de redistritamento eleitoral.

E, por fim, essas decisões colocam em xeque, como descreveu a juíza Elena Kagan em seu voto dissidente, a soberania da população na escolha de seus representantes, ao passo que o princípio da proporcionalidade de cadeiras no Congresso passa a estar cada vez mais submetido à tecnologia computadorizada, que vem trabalhando para um partido específico.

Em outros casos, como NAMUDNO v. Holder (2009) e o importantíssimo Shelby County v. Holder (2013), as decisões da Suprema Corte têm tido impactos ainda mais deletérios para os direitos de voto. Na questão da constitucionalidade de leis estaduais que dificultavam o exercício de voto por grupos minoritários, os juízes conservadores da Corte, novamente liderados por Roberts, praticamente esvaziaram de sentido a Voting Rights Act de 1965. Esta lei exigia que os estados com passado racista e segregacionista tivessem suas mudanças legislativas eleitorais avaliadas e aprovadas pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

O que fizeram os juízes conservadores em 2013? Derrubaram essa ordem legal, apontando que “as coisas mudaram no sul”; que as taxas de participação e de registro eleitoral se aproximam da paridade; que as violações de leis federais são cada vez mais raras; e que os candidatos de grupos minoritários ocupam cargos em níveis bastante altos. Novamente, deve-se presumir a boa-fé do legislativo estadual, invertendo o argumento do ônus da prova nos casos de discriminação racial, e também se deve limpar as hostilidades do passado, garantindo o que Roberts chamou de “igual soberania” dos estados.

Na ocasião, a juíza Ruth Ginsburg, que foi voto dissidente, apontou que a razão de as coisas parecerem melhorar no sul era justamente por conta das dificuldades colocadas pelo Voting Righs Act de 1965, que até então impedia que leis estaduais discriminatórias entrassem em vigor. Para ela, descartar a avaliação do Departamento de Justiça quando o órgão vinha funcionando e trabalhando para evitar a discriminação no direito de voto é como “jogar fora seu guarda-chuva em uma tempestade somente porque você não está se molhando”.

Essa decisão incitou muitos estados controlados por republicanos a promulgarem leis de identificação eleitoral cada vez mais duras e a realizarem verdadeiros expurgos em listas de registro eleitoral, como fizeram o Texas, com base em alegações infundadas de fraude eleitoral, e o Kansas, no caso comentado no início deste texto. Segundo Hasen, aliás, a Suprema Corte já tinha sustentado em uma decisão de 2008, Crawford v. Marion City Election Board, que um estado não precisa oferecer evidências de fraude para aprovar uma lei restringindo os direitos de voto, mas que os ativistas pelos direitos de voto devem demonstrar concreta e seriamente o quão prejudicial são essas leis para determinados grupos na sociedade.

Assim, provar que as leis de identificação eleitoral suprimem a participação continua sendo difícil para os ativistas de direitos políticos, e os efeitos dessas leis ainda são difíceis de medir. Embora um estudo recente e bastante importante tenha demonstrado que essas leis têm tido poucos efeitos no comparecimento eleitoral, ele também mostra que isso se deve, em grande medida, mais ao fato de os democratas se mobilizarem de todas as maneiras possíveis e imagináveis para contornar os efeitos dessas leis – questionando-as na Justiça e destinando recursos para garantir que seus apoiadores possam votar – do que propriamente por uma defesa incondicional dos direitos de voto pelo governo nacional e pela mais alta corte do país.

A questão que a Suprema Corte parece não querer entender é que nenhum cidadão, ou grupo de cidadãos, deveria enfrentar qualquer tipo de fardo para conseguir votar, e ainda precisar de grandes organizações para garantir seus direitos mais básicos. Caso não houvesse essa disposição do Partido Democrata para garantir que os cidadãos possam ter seu direito de voto, o que aconteceria?

Em outro caso, para terminar, e dessa vez diretamente relacionado à pandemia, é possível observar que a Suprema Corte tem aprofundando ainda mais seu papel partidário e sua irresponsabilidade diante da defesa dos direitos de voto. Em Republican National Committee v. Democratic National Committee (de abril de 2020), a Corte decidiu que um juiz federal não deveria ter estendido o prazo para os votos ausentes por conta da pandemia no estado de Wisconsin.

A maioria conservadora apontou que se tratava de uma decisão meramente técnica, alegando que as regras eleitorais não devem ser alteradas em períodos muito próximos das eleições. Na decisão, os juízes sequer citaram os prejuízos trazidos pela pandemia aos direitos de voto dos eleitores, embora tivessem votado a decisão de forma remota em razões de segurança. Além disso, também criticaram os peticionários por não produzirem evidências de que os eleitores enfrentariam dificuldades para votar, mais uma vez pressupondo a “boa-fé” estadual.

Na ocasião, o voto dissidente de Ruth Ginsburg procurou trazer a pandemia de volta para pensar as questões eleitorais e o direito de voto. Além de falar na crise de saúde pública pela qual o país estava passando, fato que a Corte deveria levar em consideração, Ginsburg apontou que a decisão da maioria conservadora iria resultar em uma privação massiva de direitos de voto, sobretudo, para os eleitores cujos pedidos de voto ausente não pudessem ser contados a tempo. Para ela, a preocupação com a extensão dos prazos não era nada em comparação com o risco de dezenas de milhares de eleitores serem privados de seus direitos. Não se tratava, portanto, de uma questão meramente técnica, mas de uma questão de extrema importância para os direitos de voto dos cidadãos.

Após essa decisão, as cortes menores se dividiram. Algumas mostraram muito mais compreensão sobre os impactos da pandemia sobre os direitos de voto, e também apresentaram muito mais disposição para fazer algo a respeito. Mas tantas outras não viram a pandemia como um motivo para modificar as regras eleitorais. E a simples existência desses últimos casos, segundo Hasen, é extremamente preocupante, porque, mais uma vez, eles demonstram a situação de fragilidade em que se encontram os direitos de voto, tanto em função da extrema fragmentação do sistema eleitoral, quanto em função das decisões judiciais da Suprema Corte, que potencializam essa fragmentação e não protegem de fato os direitos de voto.

Por esses exemplos relatados e tantos outros analisados por Hasen, ele argumenta que é difícil depositar na Suprema Corte a esperança pela defesa dos direitos de voto. Ele e Schultz têm defendido, inclusive, não apenas o fortalecimento das cortes estaduais – dada a existência de pelo menos algumas cortes favoráveis à proteção dos direitos de voto (ao contrário da Suprema Corte, onde a causa é certamente perdida) – como também o aumento das pressões por uma emenda constitucional que fortaleça as proteções constitucionais ao direito de voto e que centralize algumas regras centrais do sistema eleitoral americano.

 “Terra de ninguém”?

Por mais que o cenário eleitoral se apresente como um verdadeiro pandemônio, não sendo possível saber como ele será finalizado, em que condições e por quem, de uma coisa se pode ter certeza: no campo da garantia dos direitos básicos de cidadania, dos direitos de voto, os donos da terra são bastante conhecidos e têm ditado de maneira descarada os papéis que cabe a cada um desempenhar, colocando os democratas em um papel precário de defesa de direitos que estão sendo constitucionalmente atacados, não apenas pelo governo federal e por republicanos com suas mentiras, como também pela mais alta corte do país, com seu cinismo e arrogância.

Como apontou Hasen, se existe um lado no espectro político partidário querendo retirar direitos de voto, este lado é o republicano. E a Suprema Corte tem cumprido com excelência seu papel na destruição da democracia.

Se os direitos de voto estavam desprotegidos e sofrendo ataques desde muito antes de a pandemia começar, tudo indica que esse é um processo que não vai terminar tão cedo, dada as décadas de Suprema Corte conservadora que o país ainda tem pela frente. E, como bem argumentou Barton Gellman, em um excelente texto prevendo os acontecimentos pós-eleitorais, existem variações do pesadelo com o qual os democratas terão de lidar durante a cruzada conservadora de destruição de direitos. Aprender a lidar com as mentiras que se tornam verdades é apenas o começo.

 

* Celly Cook Inatomi é doutora em Ciência Política pela Unicamp, pesquisadora do INCT-INEU e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Mobilização do Direito no IFCH/Unicamp. Contato: celoca05@yahoo.com.br.

** Recebido em 19 out. 2020. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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