Taiwan, China e os limites da ‘ambiguidade estratégica’ dos EUA
Crédito da imagem: gabinete da Presidência de Taiwan via Reuters)
Por Robson Coelho Cardoch Valdez*
As visitas do secretário de Saúde dos EUA, Alex Azar, em agosto; e do subsecretário de Estado para Assuntos Econômicos, Keith Krach, em setembro, foram as primeiras visitas de alto nível de autoridades norte-americanas a Taiwan desde o rompimento das relações oficiais entre Washington e Taipei em 1979. Em maio, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, já havia enviado mensagem de congratulações à presidente Tsai Ing-Weng pelo início de seu segundo mandato no Executivo de Taiwan.
O simbolismo dessas visitas e as manifestações de altas autoridades norte-americanas provocaram reações imediatas de Beijing, no sentido de condenar o aprofundamento das relações entre taiwaneses e norte-americanos. Dada a sensibilidade da agenda taiwanesa para a segurança da região, a questão que se impõe é: O que esperar dessa deterioração nas relações EUA-Taiwan-China?
O confronto comercial dos últimos anos entre EUA e China e suas repercussões por todo globo se misturam às estratégias de defesa de seus interesses na região do Pacífico. Nesse sentido, as condenações meramente protocolares dos Estados Unidos e da comunidade internacional em resposta à nova lei de segurança nacional que Beijing implementou em Hong Kong aumentam as incertezas sobre o futuro de Taiwan. Consequentemente, especulações sobre o comprometimento dos EUA com a defesa de Taiwan frente a uma possível materialização do desejo do Partido Comunista Chinês (PCC) de reunificar a ilha à China Continental têm ocorrido com frequência.
Por fim, a dificuldade do presidente Donald Trump em reverter seus resultados negativos nas pesquisas da corrida eleitoral americana sugere que as recentes movimentações da Marinha norte-americana no Mar do Sul da China seguem o script da estratégia eleitoral do Partido Republicano de tratar a China como a grande inimiga dos Estados Unidos.
Retomada histórica de pontos centrais da questão taiwanesa
Com a derrota da China na Primeira Guerra Sino-Japonesa, e sob o Tratado de Shimonoseki (1895), a dinastia Qing se viu forçada a ceder Taiwan e as ilhas Liandong e Pescadores ao império Japonês. A partir de então, Taiwan passou a ser administrada como uma colônia japonesa até o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Com o estabelecimento da República da China, logo após a queda da dinastia Qing, em 1912, o país atravessou um período de 16 anos de conturbada disputa pelo exercício do poder político e passou a ser governado pelo Partido Nacionalista (Kuomintang) sob a liderança de Sun Yat Set. Com a morte de Sun Ya Set, em 1925, Chiang-kai-Shek se consolidou no poder até 1949.
Após a rendição do Japão no fim da Segunda Guerra Mundial, o Kuomintang reassumiu a soberania da República da China sobre Taiwan. A retomada da guerra civil chinesa resultou, porém, na derrota dos nacionalistas pelos comunistas e forçou o exílio dos nacionalistas em Taiwan, de onde o Kuomintang passou a disputar com o Partido Comunista Chinês o reconhecimento internacional como único governo legítimo de toda China.
Os Estados Unidos reconheceram a República da China (Taiwan) como governo legítimo de toda China desde o estabelecimento da república em 1913 até 1978. Dado o contexto geopolítico do final dos anos 1960, os Estados Unidos iniciam sua aproximação com a República Popular da China (RPC). Nesse sentido, em 1972, o presidente Richard Nixon apresentou o que viria a se consolidar como a política norte-americana de “uma China”.
Líder comunista chinês Mao Tsé-tung cumprimenta o presidente dos EUA, Richard Nixon, durante visita do americano a Beijing, em 21 fev. 1972 (Crédito: Keystone/Getty Images)
Assim, a assistência militar que os norte-americanos oferecem a Taiwan é, hoje, um dos pontos mais sensíveis nos cálculos geopolíticos para os tomadores de decisão em Beijing, Washington e Taipei. É importante ressaltar que a essência do antigo Acordo de Defesa Mútua entre EUA e Taiwan foi incorporada ao Taiwan Relations Act (TRA) que passou a pautar as relações não oficiais entre Washington e Taipei.
Em resumo, o TRA estabelece que qualquer abordagem não pacífica para questão taiwanesa será considerada uma “ameaça à paz e à segurança da região do Pacífico Ocidental e de grave preocupação para os Estados Unidos”. Nesse sentido, os EUA “fornecerão a Taiwan armas de caráter defensivo e manterão a capacidade dos Estados Unidos de resistir a qualquer recurso à força, ou a outras formas de coerção que colocariam em risco a segurança, ou o sistema social, ou econômico, do povo de Taiwan”.
Posição dos Estados Unidos
Além das premissas básicas que vêm pautando a relação China-EUA-Taiwan, a política norte-americana de “Uma China” instrumentaliza a cooperação militar com Taipei para evitar que a RPC lance mão de uma investida bélica que vise à projeção de sua soberania sobre o território taiwanês.
Dessa forma, o volume de venda de armas dos EUA para Taiwan está diretamente relacionado à tensão entre os governos de Beijing e Taipei. Como foi visto, a política norte-americana atua como uma variável indeterminada nos cálculos geopolíticos chineses e taiwaneses na medida em que os norte-americanos não se posicionam de forma clara sobre seu comprometimento com a defesa de Taiwan. O último relatório do Serviço de Pesquisa do Congresso (CRS, na sigla em inglês) lembra que “O TRA não exige que os Estados Unidos defendam Taiwan, mas afirma que os EUA mantenham uma política para manter sua capacidade de fazê-lo, criando ‘Ambiguidade Estratégica’ em relação ao papel dos EUA no caso de conflito entre a RPC e Taiwan”.
Ao mesmo tempo em que a China busca minar a estratégia taiwanesa de conquistar o reconhecimento de outros países, os Estados Unidos têm atuado para que Taipei consolide suas relações oficiais que mantém com 15 países (Belize, Eswaitini – antiga Suazilândia, Guatemala, Haiti, Santa Sé, Honduras, Ilhas Marshall, Nauru, Nicarágua, Palau, Paraguai, São Cristóvão e Neves, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas e Tuvalu). Nesse contexto, a administração Trump tem apoiado a política taiwanesa de suporte ao desenvolvimento junto a esses países.
Cabe destacar que Beijing vem acompanhando cada demonstração norte-americana de aprofundamento de suas relações não oficiais com Taiwan. As últimas visitas dos secretários de Estado norte-americanos a Taiwan e as recentes declarações de apoio de Mike Pompeo à atual presidente de Taiwan por sua reeleição e pelo início de seu segundo mandato foram prontamente repreendidas por Beijing. De acordo com o CRS, a RPC “instou os Estados Unidos a interromperem as interações oficiais e os movimentos que visam a melhorar as relações substantivas com Taiwan”.
A geopolítica do mar do sul da China
Posição da China
Para além dos já tradicionais pontos de coexistência pacífica que norteiam a inserção internacional chinesa, sua análise deve considerar, também, as narrativas do “Século de Humilhação” (1839-1949) no imaginário do povo chinês. Ainda que o estabelecimento da RPC seja oficialmente retratado como fim desse período, a reunificação de Taiwan à China continental permanece como a última questão não resolvida desse período em que o país perdeu expressivas partes de seu território para potências estrangeiras.
Nesse sentido, a edição da Lei Antissecessão de 2005, que sintetiza o posicionamento oficial do país sobre a questão taiwanesa, parece ser o instrumento norteador para que o Partido Comunista Chinês acerte as contas com o passado de humilhações do país. De acordo com essa lei:1) Beijing entende que a questão taiwanesa é pauta exclusiva de sua agenda doméstica e que Taiwan faz parte da China; 2) Beijing não permitirá a independência de Taiwan; e, por fim, 3) Beijing poderá “empregar meios não pacíficos e outras medidas necessárias para proteger a soberania e integridade territorial da China.”
A abordagem chinesa para a futura reunificação de Taiwan à China Continental parte, também, do Consenso de 1992, o qual permite que tanto Taiwan quanto a RPC tenham sua própria interpretação do que venha a ser “Uma China”. Enquanto para a RPC “Uma China” se refere à RPC, para Taiwan, trata-se da República da China (ROC, em inglês). O Consenso de 1992 tem sido percebido como a base fundamental das relações entre Taipei e Beijing. Nesse sentido, Beijing tem buscado implementar um processo de unificação com base no princípio de “um país, dois sistemas”, utilizado em suas relações com Macau e Hong Kong.
Ademais, as recentes declarações das autoridades chinesas sobre o tema têm ido ao encontro do que estabelece a lei antissecessão. Recentemente, o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, em evento comemorativo do 71º aniversário da RPC, enfatizou a necessidade de se defender o princípio de “Uma só China” e de se opor a qualquer atividade separatista pela “independência de Taiwan”. Da mesma forma, o presidente Xi Jinping, em evento comemorativo do 40º Aniversário da Mensagem aos Compatriotas em Taiwan realizado em janeiro de 2019, reforçou que a questão de Taiwan é um assunto que diz respeito exclusivamente ao povo chinês, assim como não hesitará em usar força para prevenir qualquer movimento independentista.
Posição de Taiwan
De 1949 a 2000, Taiwan foi governada pelo KMT. O país passou por reformas democráticas graduais a partir de meados dos anos 1980 quando ainda era governando sob Lei Marcial, sendo que sua primeira eleição presidencial livre aconteceu em 1996, onde o KMT venceu o recém-criado Partido Progressista Democrático (DPP em inglês). Nas eleições do ano 2000, o candidato Chen Shui-bian do DPP derrotou o candidato do KMT e foi reeleito em 2004. Permaneceu no poder até 2008, marcando o fim da hegemonia política do KMT, que durou 55 anos. O KMT retornou ao poder na eleição presidencial de 2008 com o candidato Ma Ying-jeou, que se reelegeu para mais um mandato no período 2012-2016.
Em 2016, a candidata Tsai Ing-Wen traz o DPP novamente ao poder, conseguindo se reeleger nas últimas eleições de maio de 2020. Atualmente, além dos dois principais partidos, KMT e DPP, a disputa política doméstica tem contado com a participação do Primeiro Partido Popular (PFP, sigla em inglês) e do União Solidária de Taiwan (TSU, sigla em inglês). De forma simplificada, o DPP e TSU se aliam em uma postura mais centrada em Taiwan, enquanto o KMT e o PFP defendem uma agenda menos conflitiva com Beijing.
As diferenças entre o DPP e o KMT para a questão taiwanesa recaem sobre as visões distintas a respeito do “Consenso de 1992”. Enquanto o KMT defende negociações com Beijing com base nos princípios estabelecidos no Consenso de 1992, o DPP se recusa a aceitar esse entendimento.
Diferentemente de seu antecessor, que acredita que o Consenso de 1992 tem sido fundamental para a manutenção do status quo de Taiwan por meio de uma política de “ambiguidade estratégica” junto à RPC, a atual presidente Tsai Ing-Wen não endossa o “Consenso de 1992”. Em sua opinião, o Consenso de 1992 é um fato histórico, incompatível com a conjuntura regional e internacional dos últimos anos.
Por fim, é importante ressaltar que, apesar de o DPP ter sofrido importante derrota nas eleições locais em 2018, acredita-se que a implementação da nova lei de segurança nacional de Beijing para Hong Kong e os protestos dos hongkongers tenham tido um efeito positivo para a reeleição da presidente Tsai Ing-Wen na disputa eleitoral em janeiro de 2020.
Incertezas sobre Taiwan e a tensão no Mar do Sul da China
Hoje, o foco central das tensões entre Taiwan e a RPC está dado: a presidente Tsai Ing-Weng não endossa o entendimento do Consenso de 1992 e tampouco aceita o mesmo tratamento dado a Macau e Hong Kong sob o princípio “Um País, Dois Sistemas”. O posicionamento do atual governo taiwanês se afasta do modelo que vinha protelando o acerto de contas nas relações Beijing-Taipei no âmbito daquilo que ficou estigmatizado no imaginário do povo chinês como o último resquício do “século de humilhações”.
O ambiente menos conflitivo entre Beijing e Taipei decorria, também, da política de “ambiguidade estratégica” que os Estados Unidos vinham instrumentalizando para lidar com a questão taiwanesa. Nesse caso, a incerteza em relação ao comprometimento dos EUA com a defesa de Taiwan em uma eventual agressão chinesa à integridade territorial de Taiwan agia como uma variável moderadora nos planos militares em Beijing.
Contudo, a suavidade como os chineses foram tratados pelos Estados Unidos na recente questão de Hong Kong pode ser um sinal de esgotamento da “ambiguidade estratégica” norte-americana. Esse fato tem gerado preocupações de que isso encoraje Beijing a implementar uma abordagem mais ousada em relação a Taiwan. Esses temores se baseiam, também, no episódio em que os norte-americanos e a comunidade internacional teriam falhado em não adotar uma postura mais firme quando a Rússia invadiu a Geórgia, em 2008, sob o pretexto de defender minorias russas nas províncias da Ossétia do Sul e da Abecásia. Essa abordagem branda que não resultou em envio de tropas americanas, ou da Otan, em defesa da Geórgia pode ter sido levada em consideração pelo governo russo quando, em 2014, suas tropas invadiram a Ucrânia e anexaram a Crimeia.
Por fim, ainda que a recente movimentação do destróier ‘Ronald Reagan’ no Mar do Sul da China, passando pelo Estreito de Taiwan, seja a 10ª desse tipo na região este ano, exercícios militares sempre elevam a tensão na região. É preciso considerar, porém, que ela acontece a pouco mais de duas semanas da disputa eleitoral americana em que Donald Trump tenta reverter sua situação de desvantagem nas últimas pesquisas eleitorais.
De qualquer forma, os chineses emitiram uma nota, criticando a presença naval norte-americana apontando-a como um elemento desestabilizador na região. O Mar do Sul da China é uma região estratégica para a exploração de petróleo, gás natural, assim como para a navegação mundial. Enquanto China, Indonésia, Filipinas, Malásia, Brunei e Vietnã disputam a soberania sobre ilhas, recifes, e bancos de areia que se distribuem ao longo dessa importante rota comercial, os EUA alegam que se trata apenas de águas internacionais de livre-navegação.
Considerando-se, então o atual status das relações RPC-Taiwan, resta observar se os Estados Unidos abandonarão sua política de mais de quatro décadas de “ambiguidade estratégica” para lidar com a questão taiwanesa. De todo modo, qualquer que seja a estratégia norte-americana, os EUA terão de lidar com uma China pacientemente decidida a acertar as contas com o último resquício daquele século chinês de humilhações.
* Robson Coelho Cardoch Valdez é pós-doutorando em Relações Internacionais IREL/UnB, doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS) e pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos/IREL-UnB. Autor dos livros Política Externa e a Inserção Internacional do BNDES no Governo Lula (Appris, 2019) e Subindo a Escada – a internacionalização de empresas nacionais no Governo Lula (Appris, 2019). Contato: robsonvaldez@hotmail.com.
** Recebido em 21 set. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.