A disputa entre EUA e China pela liderança tecnológica do 5G
Crédito: Christian Adams
Este artigo é uma parceria do OPEU com o NEAI (Ippri/Unesp)
Por Marcelo Artioli*
Por que as tecnologias de 5G estão no centro da disputa?
Quase todas as nossas atividades cotidianas hoje deixam rastros digitais: quando compramos alimentos no supermercado, medicamentos por meio de algum aplicativo, ou ainda, quando nos comunicamos com nossos familiares, ou amigos, nas redes sociais. Na era das tecnologias digitais e da Internet, os dados se tornaram a matéria-prima mais importante, alimentando algoritmos e outros mecanismos de Inteligência Artificial, os quais, por sua vez, processam informações para gerar conhecimento, ou padrões, que sustentam muitas das decisões de empresas e/ou governos, assim como atividades sociais gerais.
Nesse contexto, capacidade talvez seja a principal fonte de poder para a acumulação, assim como para que Estados, sobretudo as grandes potências, moldem as estruturas pelas quais atores estatais e não-estatais interagem entre si. Isso porque as novas tecnologias de processamento de dados colocaram os sistemas empresariais — especialmente as big-techs norte-americanas (e.g. Google, Facebook e Amazon), e algumas chinesas (como Tencent e Alibaba) — em posição de analisar e combinar grandes quantidades de informações que fornecem conhecimento sobre os indivíduos além da imaginação de qualquer pessoa.
Efetivamente, a questão informacional (a capacidade de coleta, análise e processamento de dados) tem importância central para os Estados, tanto no campo da segurança e defesa nacional quanto para as estratégias comerciais e de disputa econômica. Por um lado, no plano militar-estratégico, o poder informacional é fundamental para as diferentes modalidades de conflitos contemporâneas, em especial para a guerra cibernética. Essa categoria de confronto se apresenta tanto como uma extensão da estratégia militar e do conflito para o ambiente em rede, quanto como uma disputa entre os Estados com o objetivo de alavancar seus sistemas de informação para fins de poder político, econômico e social.
Em termos econômicos, a tendência recente se fundamenta na aplicação de tecnologias digitais (baseadas na Internet) aos processos produtivos e ao comércio de bens e serviços. A ascensão e a consolidação da lógica econômica baseada na comercialização de dados e na rentabilização de tecnologias capazes de aprimorar sua capacidade de coleta, armazenamento e processamento foram possíveis somente graças às inovações promissoras e aos novos modos de organização da cadeia de valor, especialmente nos nichos de tecnologia de quinta geração — ou 5G (i.e. sistemas de comunicação móvel e sem fio) –, de computação quântica e Inteligência Artificial.
A disputa pela supremacia tecnológica (Crédito da ilustração: Golden Cosmos)
Ainda que a aplicação tecnológica aos processos produtivos não esteja em sua fase mais madura, os dispositivos atrelados a esses nichos reivindicam estruturar sistemas ciberfísicos (CPS), monitorando processos, criando cópias virtuais da realidade e tomando decisões descentralizadas. Mais precisamente, esses sistemas se comunicarão e vão cooperar entre si através da Internet das Coisas (IoT) e da Internet dos Serviços (IoS).
Se é verdade que, por um lado, a IoT remete à ideia de uma rede mundial de objetos interconectados e unicamente endereçáveis, baseada em protocolos de comunicação padrão, por outro, a IoS diz respeito aos participantes, infraestrutura, modelos de negócio e serviços em si, que são possibilitados pelo uso da Internet. Essas duas dimensões, oferecidas e combinadas em serviços com valor agregado por vários fornecedores e comunicados para usuários e consumidores, permitirão o fornecimento de processos organizacionais tanto de gestão interna como de caráter externo à empresa, podendo ser utilizados pelos participantes das cadeias de produção.
Pensada nesse sentido, a importância da tecnologia 5G repousa, portanto, para além das mudanças radicais que tais tecnologias prometem realizar, primeiro, no caráter estrutural que o domínio de certos padrões (técnicos) implica para o poder de mercado e para questões militares. Isso porque a próxima geração de redes 5G poderá ser tão rápida que permitirá conectar tudo através da Internet-de-Tudo (ou Internet-of-Everything). Se o clamor revolucionário for realmente cumprido, as redes 5G serão a base técnica para o surgimento de um vasto arranjo de novas tecnologias que provavelmente estarão conectadas de forma direta à Inteligência Artificial, à computação quântica, aos semicondutores e – para o temor de muitos – às armas autônomas (e.g. drones).
Por esse ângulo, o significado manifesto da disputa — ou “guerra de padrões” — entre Estados Unidos e China pela liderança na fronteira do desenvolvimento das tecnologias 5G é sobre o poder de moldar e determinar as estruturas da economia política global dentro da qual outros Estados, suas instituições políticas, suas empresas econômicas e (não menos importante) seus cientistas e outros profissionais precisam operar no mundo.
Ameaça à supremacia tecnológica dos Estados Unidos
Nos últimos 20 anos, a trajetória de crescimento da China no cenário mundial foi formidável. Narrada por muitos como “pacífica”, a ascensão do gigante asiático alterou o equilíbrio de poder na economia e no sistema de comércio global ao transformar o país em um dos polos de dinamismo da economia mundial e, também, ao tornar a China a principal cadeia produtiva do mundo, exercendo enorme impacto de ponta a ponta, tanto na demanda (de commodities) como na oferta (de bens industriais).
Nos setores de ponta, a Huawei Technologies Co. Ltd é o exemplo da mudança da inovação de caráter incremental para a modalidade radical. No início de 2020, junto a outras corporações do sistema empresarial chinês, como a ZTE, a China Academy of Telecommunications Technology e a Guangdong Oppo Mobile Telecommunications Corp., a Huawei detinha 36% de todas as patentes essenciais do padrão 5G, mais que o dobro de sua parte de patentes em relação ao 4G.
A capacidade tecnológica e o potencial chinês é hoje uma realidade. As patentes chinesas de tecnologias 5G cobrem grande parte dos dispositivos associados a tudo: desde componentes para aparelhos de telefonia móvel até estações base e componentes para carros autônomos. Isso significa dizer que, se a liderança tecnológica da China for consolidada, empresas de telecomunicações em todo mundo — incluindo aquelas que operam em locais onde os equipamentos da Huawei podem estar fora dos limites — terão de pagar royalties à empresa para licenciar essa tecnologia quando chegar a hora de colocar as redes 5G em operação. Portanto, a Huawei detém grande fatia do mercado mundial de equipamentos de telecomunicações 5G, e sua estação base se tornou um padrão do setor.
Se, em parâmetros econômicos, industriais e principalmente tecnológicos, a China é vista como uma ameaça ao sistema empresarial norte-americano, do ponto de vista estratégico-militar, consequentemente, a questão dos equipamentos de telecomunicações, como os equipamentos de torre de celular, é crucial.
No atual modelo digital, tais dispositivos são amplamente isolados dos sistemas centrais que lidam com grande parte do tráfego de voz e de dados de uma rede. No entanto, no mundo da IoT e do 5G, o hardware de torre de celular assumirá tarefas do núcleo (ver figura 1). Segundo a narrativa dos Estados Unidos, tal hardware poderia ser utilizado para interromper as centrais (provedoras de serviços de Internet e de infraestrutura crítica) por meio de ataques cibernéticos.
Figura 1 – Rede 5G
Fonte: Fildes, 2020
A ofensiva dos EUA pela liderança do 5G
Ainda na campanha eleitoral de 2016, Donald Trump havia prometido uma guinada radical no tratamento em relação à China. Assim que assumiu o poder, o presidente estadunidense passou a jogar pesado com os chineses, questionando o padrão de relacionamento entre Estados Unidos e China, marcado, desde os anos 1970, pela “Política de Uma China”, estreitando ainda mais relações com Taiwan e nomeando um “falcão” norte-americano, Peter Navarro, para diretor de Política Comercial e Industrial.
Em outubro de 2018, na escalada das tensões, uma denúncia publicada na Revista Businessweek, afirmou que uma empresa dos Estados Unidos, a Supermicro, estava instalando microchips espiões da China em placas-mãe utilizadas em computadores e servidores de empresas como Apple e Amazon. Mais tarde, em maio de 2019, mirando um suposto roubo de propriedade intelectual americana e ameaça à segurança nacional, o governo Trump adotou medidas contra os chineses que incluíram, além de tarifas, a proibição de que empresas de telecomunicações norte-americanas instalassem equipamentos estrangeiros, a redução de vistos para pesquisadores e restrições a investimentos do país asiático nos Estados Unidos.
Embora inicialmente sobressaísse a retórica do presidente Trump sobre a questão comercial — associava-se a balança comercial desfavorável à perda de empregos e de competitividade dos norte-americanos—, o centro da disputa foi muito além das commodities convencionais: as tecnologias de quinta geração, ou 5G.
À mesma época, a administração Trump já havia iniciado campanha junto a aliados estrangeiros, especialmente pelas excursões do secretário de Estado, Mike Pompeo, à Europa, com o intuito de convencer provedores de Internet e redes wireless a evitarem o uso de equipamentos de telecomunicações da Huawei em redes governamentais e comerciais. O argumento era simples: o de que aliados ocidentais, como a Alemanha, perderiam acesso a dados cruciais de Inteligência das redes de segurança dos Estados Unidos. Embora tenha figurado como um ultimato, no início de 2020, União Europeia e Reino Unido, aliados históricos dos norte-americanos, decidiram conceder acesso limitado à chinesa Huawei em sua futura rede 5G.
Para além da Europa, a ação dos Estados Unidos contra o avanço da China na construção de redes de telefonia, data centers e sistemas de tecnologia da informação (TI) se estendeu para governos na Ásia, na África e, mais recentemente, na América Latina, em especial para o Brasil. No início de fevereiro de 2020, o procurador-geral dos Estados Unidos, William Barr, afirmou que os Estados Unidos e seus aliados deveriam considerar combater o poder da gigante chinesa de eletrônicos Huawei Technologies Co., interessando-se financeiramente pelos concorrentes Nokia Corp. e Ericsson AB.
As pressões norte-americanas foram, no entanto, apenas parcialmente bem-sucedidas, pois as vantagens industriais da China perduram. Ainda assim, os resultados imediatos da aplicação das tarifas trouxeram os chineses para a mesa de negociações. Em 15 de janeiro de 2020, Estados Unidos e China assinaram a primeira fase de um acordo para pôr fim à guerra comercial. Documento divulgado pelo United States Trade Representative (USTR) apontou que os chineses terão de se comprometer a tomar uma série de medidas, como não pressionar mais empresas americanas a fornecerem suas tecnologias como moeda de troca para terem acesso ao mercado do país asiático. Além disso, foi previsto que a China deveria acabar com barreiras a serviços financeiros, os quais abrangem limitações ao capital estrangeiro dentro do país asiático, como serviços bancários, de seguros, de valores mobiliários e de classificação de crédito.
A despeito dos esforços, as ações norte-americanas parecem ter falhado, sobretudo, pela série de declarações confusas que partem de vários setores do Estado. Em meados de 2019, por exemplo, o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, afirmou que o governo norte-americano poderia aliviar as restrições dos EUA à Huawei, se houvesse progresso na disputa comercial com a China – mas que, sem um acordo, Washington manteria as tarifas de forma a reduzir seu déficit. No final de 2018, o presidente Donald Trump já havia dito que interviria com o Departamento de Justiça dos EUA no caso contra uma executiva dessa empresa, se isso ajudasse a garantir um acordo comercial com Pequim.
A declaração parecia colocar em xeque a lisura do próprio sistema de justiça dos Estados Unidos. Nenhuma dessas falas esclarece, porém, qual é a estratégia norte-americana (ou se há de fato alguma). Além disso, e talvez mais importante, os obstáculos aos EUA parecem resultar de certo consenso global contrário às ações agressivas da administração Trump em relação à presença das tecnologias chinesas em redes ocidentais.
Crise global da covid-19 e perspectivas para 5G em um mundo multipolar
Com efeito, os Estados Unidos não deixaram de jogar duro com a China e parecem ter dobrado a aposta no que chamam de hardball. Em meados de 2020, já no contexto de crise de saúde global, para além de culpar a China pela pandemia e anunciar a saída norte-americana da Organização Mundial da Saúde (OMS), a administração Trump comemorou o possível fortalecimento de uma “frente” contra a tecnologia chinesa, o que reverberou e fortaleceu iniciativas como a InterParliamentary Alliance on China (IPAC). Tal iniciativa reuniu parlamentares de países europeus, asiáticos e da Oceania de partidos como Trabalhistas e Conservadores da Grã-Bretanha, Democratas-Cristãos e Verdes da Alemanha e, nos EUA, Democratas e Republicanos.
Segundo seus formuladores, a frente visa a monitorar desenvolvimentos relevantes, ajudar os legisladores a construir respostas apropriadas e coordenadas e ajudar a criar uma abordagem proativa e estratégica em questões relacionadas à República Popular da China, dentre as quais, salvaguardar a ordem baseada em regras internacionais, defesa dos direitos humanos, promoção da justiça comercial, reforçar a segurança, proteger a integridade nacional.
No cômputo geral, ainda que a administração Trump tenha tido sucesso em forçar um acordo com os chineses – e, aparentemente, os falcões norte-americanos tenham certa obsessão com a questão comercial –, tais aspectos estão conectados de forma indireta às capacidades dos Estados Unidos em tecnologias high tech. Isso porque as vantagens da China resultam, em grande medida, não de uma conduta ilegal – ainda que as ações chinesas criem um campo de disputa desigual –, mas do peso do país em termos de investimento global e em participação nas cadeias produtivas globais.
Daí a ofensiva do governo Trump de buscar limitar a ubiquidade dos produtos chineses em tecnologias 5G e suprimir agressivamente a produção de microchips pela indústria de semicondutores que abastece a Huawei. Essa estratégia ganhou reforço pela redução da atividade econômica causada pela crise da covid-19.
Além de poder levar a um grave problema econômico sem precedentes na história, a crise de saúde global atua como catalisadora da tensão já existente nas relações bilaterais. A pandemia também criou um espaço para que empresas multinacionais aliadas aos EUA transfiram a produção para fora da China, ao fornecer um verniz de legitimidade ao discurso de reconversão industrial em relação ao enfrentamento da crise e à produção de bens industriais hospitalares, como os ventiladores médicos. É possível que, se bem-sucedida, essa narrativa estimule um ponto de virada para o cenário industrial asiático.
Na pandemia, China investe na diplomacia das máscaras (Crédito: Aly Song/Reuters)
Apesar da crise da covid-19 e da redução de grande parte de sua atividade econômica, a China sustentou a produção de sua indústria high-tech, especialmente na zona manufatureira de Wuhan, província de Hubei, epicentro da pandemia no país. Tal empreendimento parece resultar da obstinação chinesa pela liderança tecnológica, justificada pelas ambições geopolíticas da China de grande potência em ascensão. Com a situação relativamente estabilizada em relação à covid-19, os chineses agora exploram o relativo sucesso no combate à epidemia como uma oportunidade de polir as credenciais de soft power com a Europa e com outros países, ao enviar médicos e enfermeiras e doar milhares de máscaras para Itália e Holanda.
Tal “diplomacia das máscaras” pode trazer bons frutos aos chineses no campo do 5G, dado que executivos da Huawei defendem que as redes da empresa em Wuhan foram fundamentais para controlar a epidemia, através de serviços que não são de coleta de dados, como diagnósticos e monitoramentos remotos, e transmissões de imagens em alta resolução.
De todo modo, a questão mais importante não parece ser quanto tempo a disputa high-tech irá durar, mas sim se as frustrações dos Estados Unidos, que estimularam a disputa em um primeiro momento, serão adequadamente respondidas. Em resumo, o que trará uma resposta para o imbróglio é o grau de ameaça que a China representa para os Estados Unidos em termos de poder hegemônico, o que, no cenário de grande incerteza de pandemia, parece cada vez maior.
* Marcel Artioli é mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP) e pesquisador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI), do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (Ippri) da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Também é analista de Desenvolvimento Agrário da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo. Contato: marcel.artioli@unesp.br.
** Publicado originalmente no Dossiê ‘Covid-19 e as relações internacionais: impactos e debates’, de agosto de 2020. O dossiê é uma publicação do NEAI e conta com a participação de diversos pesquisadores do INCT-INEU. O presente artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.