Breves comentários a respeito da declaração de russos e chineses sobre a ordem internacional
O presidente chinês, Xi Jinping (dir.), homenageia seu colega russo, Vladimir Putin, com a “medalha da amizade” por sua contribuição as relações China-Rússia, em jun. 2018 (Crédito da imagem: AP)
Por Williams Gonçalves*
A mal compreendida questão da mudança da ordem internacional abriu mais um importante capítulo nesse último mês de setembro. Em declaração conjunta composta de 12 pontos, os ministros das Relações Exteriores da Federação Russa e da República Popular da China manifestaram sua preocupação com a maneira como os Estados Unidos vêm tratando problemas internacionais de interesse geral, especialmente os concernentes ao desenvolvimento sustentável e à pandemia do novo coronavírus. Conforme russos e chineses, o mundo passa por delicada fase de transformações profundas, que devem ser encaradas com muita responsabilidade pelos líderes das grandes potências, evitando-se fomentar turbulências gratuitas, pois podem criar desnecessários riscos à paz mundial.
Entre nós, no Brasil, a questão da mudança da ordem internacional não tem sido objeto de reflexão mais aprofundada, nem assim foi quando o governo decidiu ser parte do BRICS, desde as discussões informais para sua criação, em 2006. Mesmo nos meios mais especializados, o BRICS era apresentado como um bloco econômico produzido pela imaginação de Jim O’Neil, consultor da empresa Goldman Sachs, e destinado a não dar certo, em virtude das características semelhantes dos países seus integrantes.
Essa apreciação continuou a obedecer a mesma linha quando, em decisão tomada na cidade de Fortaleza, em 2014, o BRICS criou o Novo Banco de Desenvolvimento e o Arranjo Contingente de Reservas. O papel dessas duas importantes instituições econômico-financeiras continuou a ser analisado exclusivamente segundo critérios técnicos, praticamente nunca pelas intenções e por suas repercussões políticas.
Qualquer abordagem da importância política do BRICS para a ordem internacional era prontamente interpretada como fantasiosa. Questionava-se o tema como se a atual ordem internacional fosse eterna, ou como se os que defendiam a mudança imaginassem que ela seria feita da noite para o dia, como se não se tratasse de um processo político repleto de obstáculos, que avança com ritmos e intensidades alternados.
Além disso, também havia os que não apenas duvidavam da possibilidade de mudança, como ainda se atreviam a suspeitar das verdadeiras intenções da diplomacia brasileira em sua participação no processo. Consideravam que o Brasil estaria envolvido no bloco para somente obter vantagens particulares, e não para contribuir sinceramente para a democratização das relações internacionais, ou ainda, como se essa fosse uma dicotomia que pudesse ser levada a sério: de um lado, o egoísmo do interesse nacional; de outro, o amor desinteressado pela comunidade dos Estados.
A participação brasileira no BRICS nunca passou de um projeto restrito aos exíguos limites da diplomacia, sabotado pela grande mídia, desdenhado pelo mundo acadêmico e incompreendido pelos militares. Estes últimos nunca sequer o entenderam, tendo uma visão do bloco permanentemente pautada pela mídia econômica. Assimilaram muito facilmente a ideia de que o BRICS constituía um bloco com finalidades comerciais. A atuação da diplomacia brasileira em terreno minado, como o apoio concedido à Rússia na Crimeia, ou o apoio ao governo de Bashar al-Assad na Síria, lado a lado com Rússia e China, nunca despertou o menor interesse dos militares, como se aquelas decisões não tivessem de ser, em algum momento, respaldadas pelas Forças Armadas. A julgar por suas manifestações, tudo se passava em um mundo muito distante e desinteressante, somente conhecido pelos diplomatas.
Na Índia e na África do Sul, por razões específicas a esses países, o projeto de mudança da ordem internacional do BRICS foi igualmente desidratado. O BRICS hoje existe mais como uma possibilidade interessante para instituições culturais e afins do que como projeto político de mudança. As instituições financeiras oferecem oportunidades que não podem ser desprezadas pelos países-membros. Por isso, até membros que passaram a ter atuação avessa ao BRICS, como é o caso do próprio Brasil, continuam a frequentá-las. Pode-se dizer que todos seguem a máxima diplomática que recomenda o não abandono de nenhuma instituição, por mais estranha que ela tenha se tornado, pois sempre é possível se omitir em questões substantivas e, em determinado momento, ou em certa circunstância, extrair algum benefício.
Rússia e China continuam a exaltar o BRICS, porque, para esses dois países, é muito importante manter a mística e a formalidade do bloco. Seus dirigentes sabem que não podem mais contar com os parceiros para a execução do projeto inicial, mas também não veem nenhuma vantagem política em denunciar seu fracasso. Resta sempre a possibilidade de que as mudanças políticas internas em cada um dos componentes possam trazer de volta aos respectivos governos forças políticas afinadas com a ideia de mudança, e que, portanto, a presença de forças políticas defensoras do establishment internacional à frente desses países seja meramente episódica.
Revisionismo ocidental para manutenção do status quo
Nesse contexto, a declaração conjunta de russos e chineses sobre a nova ordem internacional se reveste de excepcional importância. Antes de tudo, a declaração honra a condição de ambos os países de núcleo duro do BRICS. Em nenhum momento, não apenas não esmoreceram, como foram capazes de apresentar propostas objetivas com vistas a solucionar sérias questões internacionais.
O que logo chama a atenção no documento é que russos e chineses não propõem nenhuma reforma institucional imediata. Nada de fazer tábula rasa do passado. Pelo contrário. Ambos se mostram incisivos na condenação às iniciativas com vistas a reinterpretar a Segunda Guerra Mundial. Vladimir Putin já havia feito discurso com o mesmo teor em Jerusalém, em 23 de janeiro de 2020, quando da cerimônia em alusão aos 75 anos da libertação do campo de extermínio de Auschwitz, por tropas soviéticas.
Na declaração conjunta, os chineses endossam as palavras de Putin, segundo as quais é inaceitável igualar nazismo a sovietismo. Para ambos, russos e chineses lutaram arduamente contra o nazi-fascismo e o militarismo, derrotando-os, enquanto, na Europa, aliados do nazi-fascismo por vezes se revelaram mais cruéis do que os próprios nazistas.
“Nossos países não permitirão qualquer ‘revisão’ dos resultados da Segunda Guerra Mundial consagrados na Carta da Organização das Nações Unidas e em outros documentos institucionais”, afirmam no texto.
Mas, o que significa, afinal, toda essa preocupação com o resultado da guerra? Passados 75 anos do fim do conflito, isso ainda tem alguma importância?
Evidentemente que tem muita importância. Todo aparato institucional da ONU e todo aquele outro que foi sendo progressivamente construído ao longo do tempo cumpriram a função de consolidar o multilateralismo como a mais adequada maneira de os Estados trabalharem cooperativamente, em conjunto, para equacionar e solucionar os problemas suscitados pela difícil convivência no sistema internacional. As manifestações de hostilidade para com as instituições do sistema ONU, como aquelas dirigidas por Estados Unidos e Brasil à Organização Mundial da Saúde (OMS) em plena pandemia, p.e., representam sério ataque que enunciam o desejo de desacreditar importante instituição multilateral empenhada, com base em estudos científicos, em enfrentar o desafio lançado à saúde humana pela covid-19.
O mesmo se pode afirmar a respeito do livre-comércio, um dos dos pilares da ordem econômica internacional erguida a partir de Bretton Woods. Inicialmente monitorado pelo Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, em inglês) e, depois de 1995, pela Organização Mundial do Comércio (OMC), o livre-comércio foi defendido obstinadamente pelos países de economia industrial avançada como o meio mais justo e eficaz de produzir e compartilhar prosperidade, havendo, por isso mesmo, sido um dos mais importantes instrumentos institucionais da globalização.
Apesar disso, queixam-se os chineses, quando a China passa a desenvolver sua capacidade econômica, convertendo-se em potência comercial e em liderança em inovação tecnológica, assiste a um movimento encabeçado pelos Estados Unidos de promoção do protecionismo e de boicote aos seus produtos.
Essas são razões, portanto, que explicam a posição conjunta de russos e chineses em defesa do aparato institucional criado em finais da Segunda Guerra Mundial. Segundo eles, respeitar o resultado da guerra e manter e desenvolver as instituições vinculadas à ONU significa manter as regras que garantiram a supremacia dos Estados Unidos e de seus aliados e que, malgrado seu, proporcionaram a ascensão chinesa à condição de grande potência econômica. Nesse sentido, qualquer iniciativa de alterar as regras em vigor será interpretada como tentativa de impedir que a China prossiga em sua trajetória ascensional.
Outro ponto a chamar a atenção na declaração conjunta é a ênfase que atribuem à liberdade de ação no espaço geográfico da Eurásia. Ambos reivindicam o direito de seguir promovendo o desenvolvimento do Cinturão e da Rota, a antiga Rota da Seda, e da União Econômica da Eurásia, que consiste em integração econômica de China, Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão, Armênia e Quirguistão, iniciada em janeiro de 2015.
Ao mesmo tempo, afirmam que: “As partes têm em alta consideração a interação para discutir prioridades tópicas regionais, inclusive os casos que tenham a ver com Irã, Afeganistão, Síria e Península Coreana”. Por outras palavras, os dois parceiros repudiam muito abertamente o desejo dos EUA de seguirem intervindo em assuntos da Indo-Ásia, seja por Washington entender que é o natural mediador de conflitos em escala global, seja por pretender ações políticas com a finalidade de forjar alianças destinadas a isolá-los (China e Rússia) politicamente dos Estados na região. Vale sublinhar que a declaração é suficientemente explícita ao marcar posição contra ações diplomáticas regulares, assim como contra o uso afrontoso de tecnologias de informação.
Nova velha ordem internacional
Por fim, não é demais insistir em chamar a atenção para o fato de a Declaração Conjunta dos Ministros de Relações Exteriores da Federação Russa e da República Popular da China se caracterizar como forte compromisso com o sistema ONU. Todas as afirmações e os argumentos esgrimidos no documento remetem para a importância de se fortalecer as instituições do sistema ONU, visto como o único dispositivo legítimo para dirimir conflitos e zelar pela paz mundial.
A nova ordem internacional que ambos preconizam não constitui reinvindicação de construção de novo dispositivo institucional internacional. Constitui, isto sim, o integral respeito aos compromissos ao sistema ONU, firmados por todos os Estados afiliados. Subentende-se que a verdadeira nova ordem internacional não é uma a ser criada no futuro, mas que deve se basear no integral respeito de todos a todos os compromissos existente na ordem internacional vigente, sem exceções.
Os signatários tiveram o cuidado de não mencionar os Estados Unidos em nenhuma parte da Declaração. Mas a leitura atenta constata que os Estados Unidos figuram como o sujeito oculto, que se encontra presente em todos os tópicos. Afinal, não há como discutir nova ordem internacional sem discutir a posição assumida por aquela potência.
A evolução dessa questão vai depender muito de como os norte-americanos continuarão reagindo a essa política mais assertiva de russos e chineses. A política externa norte-americana no governo Trump passou por significativa mudança. O republicano concentrou seu interesse nas questões econômico-comerciais e na competição tecnológica com a China. Tal orientação tem levado o republicano à adoção de medidas protecionistas e a ataques ao multilateralismo, a ponto mesmo de Xi Jiping ter defendido o livre-comércio na reunião de Davos, um conclave que tradicionalmente era monopolizado pelos Estados Unidos, em uma curiosa inversão de papéis.
Trump também honrou uma de suas mais destacadas promessas de campanha junto a seu eleitorado: a de não iniciar novas guerras. O que não significou, evidentemente, a neutralização dos diferentes órgãos de Inteligência e da ação encoberta do Estado. Mas sua determinação em não ceder a pressões de interesse do complexo industrial-militar gerou muita contrariedade.
Os norte-americanos se encontram em plena campanha eleitoral. Caso o republicano Donald Trump se reeleja, não é de se esperar mudanças importantes na política internacional do país. Trump, a esta altura, já é bem conhecido, e ele praticamente esgotou seu repertório. A grande interrogação passa a ser o programa do democrata Joe Biden. Este governará a partir da herança deixada por Trump, pois não há como passar uma borracha e apagar sua passagem pela Presidência. Russos e chineses já apresentaram suas cartas, resta saber como Biden irá lidar com isso.
* Williams Gonçalves é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) e professor de Relações Internacionais da UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN). Contato: wdgoncalves@uol.com.br.
** Recebido em 3 out. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.