Globalismos em conflito (o feio, o mau e o bom)
Crédito da ilustração: The Guardian, 2018
“O sistema do livre-câmbio é destruidor. Ele dissolve as antigas nacionalidades e leva ao extremo o antagonismo entre a burguesia e o proletariado. Numa palavra, o sistema da liberdade de comércio apressa a revolução social” – Karl Marx
Por Luis Fernando Ayerbe*
O artigo aborda duas visões político-ideológicas, que, embora antagônicas, compartilham referências críticas ao processo de globalização sob hegemonia neoliberal: 1) a chamada “Alt-Right” (Direita Alternativa) estadunidense, que adquiriu notoriedade no apoio à candidatura presidencial de Donald Trump. Trata-se de corrente heterogênea, incluindo setores com agendas que envolvem nacionalismo baseado na supremacia branca, anti-imigração, antifeminismo, islamofobia, neonazismo, declarando-se em antagonismo com globalismos que considera desintegradores do “Ocidente judaico-cristão”; 2) vertentes de esquerda que atribuem à aceleração capitalista componentes detonadores de contradições sistêmicas com potencial transformador estrutural.
Da perspectiva da ordem neoliberal, ainda que se bem contabilize no ativismo dessa direita um radicalismo seletivo que deixa de fora da agenda econômica o questionamento do capital privado, preocupa o perigoso atropelo das “boas maneiras”, explicitando ódios e preconceitos com potencial de transmutar o espírito capitalista em luta de classes.
Seja no âmbito de intranquilidade do establishment, da reação conservadora que invoca tradições civilizacionais, ou da aposta de superação pós-capitalista, emerge paradoxal convergência de expectativas de fim de ciclo.
O Feio desafia o Mau
“Na hora de atirar atire, não fale” (“Il Buono, il Brutto, il Cattivo”, ou “Três homens em conflito”, de Sergio Leone, 1966)
Em 21 de julho de 2017, o então diretor no Escritório de Planejamento Estratégico do Conselho de Segurança Nacional, Rich Higgins, é informado sobre sua demissão. Questionada pela imprensa sobre o motivo, a Casa Branca responde se tratar de assunto interno, a respeito do qual não cabia dar explicações. Diferentemente da declaração oficial, Higgins atribuiu o fato a setores opositores da plataforma que elegeu Trump, uma espécie de Estado Profundo impermeável às mudanças de governo.
“Perdi meu emprego porque era leal ao presidente (…) Havia alguns partidários de Trump na equipe, mas éramos em menor número e quase todos ignorados… Isso significava que os remanescentes de Obama deveriam ser substituídos por pessoas que executariam a agenda do novo presidente” (Higgins, 2020).
Em maio, Higgins havia divulgado um relatório em que manifestava preocupações com a desestabilização da administração Trump, atirando contra amplo leque de setores, aos quais atribui uma trama conspiratória: “atores do ‘Estado Profundo’, globalistas, banqueiros, islâmicos e republicanos do establishment” (Higgins, 2017).
Sua demissão sumária torna explícita uma delimitação do campo de atuação da Direita Alternativa nas altas esferas de governo. Em agosto, será a vez de Steve Bannon, figura emblemática dessa corrente político-ideológica, que renuncia ao cargo de assessor especial do presidente.
Diferentemente de Clinton, W. Bush e Obama, que sempre contaram com programas de governo formulados por equipes técnicas de extensa experiência de assessoria e gestão dentro do entorno dos partidos Democrata e Republicano, Trump foi fundamentalmente o artífice de si mesmo, com assessores recrutados em seu ambiente familiar e empresarial de confiança, e em círculos de direita articulados, principalmente, em torno do portal Breitbart News. Em 2016, Steve Bannon, seu diretor, assume a coordenação da estratégia de campanha de Trump, que após a posse o nomeia assessor especial.
Isolado pelo enfrentamento com setores receosos de que seu extremismo militante se tornasse o perfil mais visível da administração – agravado pelos incidentes em Charlottesville de agosto, quando confrontos de rua durante manifestação de grupos supremacistas brancos levou à morte de uma ativista antidiscriminação –, apresenta a renúncia.
Sem deixar de manifestar apoio a Trump, a trajetória de Bannon segue caminho próprio, buscando articular as direitas antiglobalistas em torno de uma nova organização internacional, O Movimento. Em agosto de 2020, sofre forte golpe em sua credibilidade, ao ser preso. Ele é acusado de apropriação de recursos arrecadados em campanha para contribuir com a iniciativa presidencial de construção de um muro, separando os Estados Unidos do México. Aguarda o julgamento em liberdade, depois do pagamento de fiança.
Quando vivenciava momento ascendente, Bannon chegou a se comparar com Vladimir Lênin em sua epopeia para destruir o Estado: “Quero derrubar tudo e destruir todo o establishment atual” (Radosh, 2016). Parte de seu ideário foi apresentado em conferência realizada em 2014, durante evento no Vaticano, quando advertiu sobre a existência de uma grave crise no Ocidente judaico-cristão, envolvendo o capitalismo, a fé e a religião.
No âmbito do capitalismo, a crise se expressaria na prevalência de dois modelos que subvertem os “fundamentos espirituais e morais do cristianismo […]. Um deles é o capitalismo patrocinado pelo Estado […] que se vê na China e na Rússia […]. A segunda é um capitalismo que parece transformar as pessoas em commodities” (Feder, 2016). Somado à secularização, em que vê uma perda de espaço da fé frente à cultura popular, Bannon alerta para brechas favoráveis à ofensiva do grande inimigo do século XXI, o “fascismo islâmico jihadista”.
No entanto, assim como no caso do Movimento, de fato, um “antiglobalismo” globalista, o nacionalismo de Bannon corre em curso paralelo, e não contraditório, com a economia de mercado, deixando claros os limites de seu “leninismo antiestablishment”:
“Mais intervenção do Estado na economia, nas nossas vidas, leva a um completo fracasso … A agenda nacionalista é possível de ser feita sem a intervenção do Estado. Nacionalismo é colocar o seu país primeiro. Nacionalismo não diz que é preciso ter o Estado envolvido nos negócios” (Bulla, 2019).
Após a chegada de Trump ao governo, a reação do “capitalismo da commoditização” à ofensiva da Direita Alternativa não se faz esperar. Atribuindo-lhe comportamento motivado menos por convicção do que por senso de oportunidade, sob a influência de Steve Bannon, a revista The Economist assume a posição de setores colocados como alvo do discurso antiglobalista, estabelecendo pautas sobre O Que Fazer?
“O primeiro passo é limitar os danos (…) Os republicanos moderados e os aliados dos EUA precisam dizer ao presidente por que Bannon e os que comungam de sua ideologia estão errados (…) Também é fundamental convencer Trump de que são as alianças que garantem a supremacia dos EUA (…) Se Trump realmente deseja colocar os EUA em primeiro lugar, sua prioridade deveria ser fortalecer os laços diplomáticos do país, não tratar seus aliados com desprezo. E se o conselho for ignorado? Os aliados dos EUA precisam manter as instituições multilaterais em pé para o dia em que Trump deixar a Casa Branca. Também precisam se preparar para enfrentar um mundo, em que os EUA já não exerçam um papel de liderança” (The Economist, 2017).
Transcorridos três anos de governo, a demissão de Higgins e a renúncia de Bannon minam a presença da Direita Alternativa no centro do governo. Fracassa, porém, o objetivo de chamar o presidente à ordem. Na perspectiva de reverter o “desvio de rota” atribuído ao trumpismo, a concentração de esforços será por sua derrota nas eleições de 2020, apostando na candidatura do Partido Democrata, composta por Joe Biden, vice-presidente de Barack Obama, e por Kamala Harris.
É o neoliberalismo, estúpido
“Existem dois tipos de pessoas no mundo: aquelas com a corda no pescoço, e as que tem o dever de cortá-las” (“Três homens em conflito”, de Sergio Leone, 1966)
No olhar do mundo do horizonte pós-capitalista, a análise da desordem associada à aceleração do globalismo neoliberal coloca em relevo o desemprego estrutural, a exploração do trabalho agravada pela precarização, o aprofundamento da desigualdade paralela à concentração na distribuição da riqueza mundial, o alerta ecológico que diminui margens para estratégias socialdemocratas focadas no crescimento pela expansão da produção, emprego e consumo, coincidindo com patamar tecnológico que senta as bases da transição para uma sociedade pós-trabalho. Em outras palavras, o grau de desenvolvimento das forças produtivas estaria colocando em xeque as relações de produção dominantes (Ayerbe, 2019).
Conforme sintetiza Alejandro Galiano (2020), “se o desenvolvimento tecnológico do capitalismo trabalha contra o próprio capitalismo (…), a principal tarefa anticapitalista será acelerar o sistema até que ele morra de uma overdose de si mesmo”. Nessa perspectiva, a estratégia passaria por uma disputa hegemônica na governabilidade do sistema, em que as bases de sua sustentação vão sendo minadas, concomitantemente à instituição do novo:
“aproveitá-lo quando necessário, combatê-lo onde é prejudicial e regulá-lo onde seja insuficiente. E, sobretudo, parasitá-lo onde pudermos: lutar pelo lazer civilizatório e pelo controle social das rendas naturais, digitais e financeiras, tanto para capturá-las e redistribuí-las, quanto para limitá-las” (Galiano, 2020).
Adotando uma posição cética dos alcances do reformismo no interior do sistema, Srnicek e Williams (2017) conclamam a esquerda para ir além do consenso neoliberal e socialdemocrata e “se mobilizar em torno de um consenso pós-trabalho”. Nessa perspectiva, questionam as possibilidades de mudança sistêmica por intermédio das formas de luta privilegiadas nas décadas recentes pelos movimentos sociais contra a globalização e contra o neoliberalismo. Partindo-se da crítica da organização partidária centralizada que prevaleceu no âmbito do comunismo e do socialismo, essas formas de luta tendem “a privilegiar o local e o espontâneo, o horizontal e o antiestatal”, encontrando no campo oposto capitalista “um universal que se expande de maneira agressiva e os esforços para segregar um espaço de autonomia, os quais estão destinados ao fracasso” (Srnicek e Williams, 2017).
Sem questionar a importância desses movimentos como mobilizadores da sociedade, obtendo significativas conquistas, a esquerda “deve enfrentar, inevitavelmente, o problema do universalismo, ou seja, a ideia de que certos valores, ideias e metas podem se sustentar em todas as culturas (…) Qualquer coisa que não seja um universal e que compita com isto acabará asfixiada por uma série ‘omniabarcadora’ de relações capitalistas” (Srnicek e Williams, 2017).
Nessa perspectiva, em La nueva razón del mundo: Ensayo sobre la sociedade neoliberal (2013), Christian Laval e Pierre Dardot realçam o significado universalista do neoliberalismo, assumindo que se trata de perspectiva mais ampla, profunda e sofisticada do que a liberalização dos mercados. “O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo”, que busca “estruturar e organizar, não apenas a ação dos governantes, mas também a conduta dos próprios governados [pela] generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação”, afirmam os autores.
Mesmo assumindo a gravidade dos desafios sistémicos, a possibilidade de perpetuação de “um velho mundo” em processo de afundamento não está fora de questão: “não sabemos muito bem se esta comoção desemboca no reinado tirânico e cada vez mais absoluto do capital, ou bem em uma nova revolução democrática e anticapitalista em escala planetária” (Laval e Dardot, 2015).
Como resposta emancipatória, propõem a constituição do Comum, sintetizado em nove dimensões: 1) o comum como princípio da transformação social; 2) novo direito que se oponha ao direito de propriedade; 3) princípio da liberação do trabalho, com prevalência na esfera da economia da 4) empresa comum e 5) da associação; 6) refundar a democracia social; 7) converter os serviços públicos em verdadeiras instituições do comum; 8) instituir os comuns mundiais; 9) inventando, para tal fim, a federação dos comuns (Laval e Dardot, 2015).
Instituir o comum como horizonte universalista estabelece um divisor de águas entre o pós-capitalismo e o segregacionismo “antiglobalista”. Por outro lado, embora partindo de posições político-ideológicas antagônicas, coincidem na identificação de um mal de origem: a aceleração neoliberal que transforma pessoas em mercadorias. Eles diferem na resposta: transição sistêmica versus reação fundamentalista.
Na perspectiva pós-capitalista aqui abordada, há um diagnóstico comum na avaliação das condições econômicas, sociais, tecnológicas e ambientais que limitam a manutenção do status quo. Não há, porém, automatismo que transmute uma crise, por mais profunda que seja, em mudança estrutural. Sem uma definição de plataforma e de sujeito emancipatórios com horizonte universalista, um velho mundo é possível.
A agenda reacionária assume contornos concretos na disputa de valores, com impacto em programas governamentais de educação, cultura, saúde coletiva, exaltando uma afirmação civilizacional “judaico-cristã” que norteia noções de raça, gênero, etnia e sociabilidade. Seu sectarismo delimita de antemão possibilidades sustentáveis de cooptação, subordinando sua inserção nos setores populares ao desempenho de políticas econômicas que colocam a saúde do capital em primeiro plano. Diante de horizonte universalista tão ajustado, e para além de sua turbulenta e regressiva ofensiva, a tendência dessa direita é se diluir entre as múltiplas vertentes que, de tempos em tempos, alimentam e atualizam o neoliberalismo.
“Cada revólver tem sua voz, e essa eu conheço” (“Três homens em conflito”, de Sergio Leone, 1966)
* Luis Fernando Ayerbe é professor de História e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
** Publicado originalmente no site Con Nuestra América, em 26 set. 2020. A tradução foi feita pelo próprio autor. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.