Acordo TikTok e Oracle: EUA e China disputam controle e transferência de tecnologia
Crédito da ilustração: Aïda Amer/Axios
Por Edna Aparecida da Silva*
As pressões da administração Trump sobre o TikTok, aplicativo de mídia social, e sobre a Huawei, gigante chinesa do setor de telecomunicações e da tecnologia 5g, são expoentes da guerra comercial e tecnológica dos EUA contra a China, à qual agora se acrescenta a WeChat, plataforma multifuncional que opera serviços de mensagens e pagamentos, da Tencent Holding, líder mundial de games.
As empresas do setor de tecnologia, informação e dados são símbolos das políticas de inovação tecnológica e internacionalização das corporações chinesas. Para os EUA, isso é resultado da política de proteção do mercado doméstico, o Great Firewall, muro digital criado pela China que limitou o acesso das corporações norte-americanas, como Facebook, WhatsApp e Instagram – todos, aliás, do mesmo dono. Este tem sido o principal foco das críticas à China, que teria se beneficiado das regras de comércio e investimento internacionais, enquanto mantém práticas restritivas na política doméstica.
Vitória parcial de Trump
Depois das incertezas sobre quais seriam os desdobramentos das Ordens Executivas de Trump que, com base em razões de segurança nacional, proibiam o uso dos aplicativos chineses TikTok e WeChat por cidadãos americanos, e pressionava para aquisição da TikTok por empresas americanas, o caso ganhou novos contornos.
As negociações para acomodar as exigências de Trump e da China para proteção da tecnologia e da segurança nacional conduziram a um acordo que poderá manter o TikTok para os usuários norte-americanos, mas está longe de ser uma vitória de Trump.
Em relação ao WeChat, aplicativo que tem 19 milhões de usuários nos EUA e mais de 1 bilhão no mundo, surge mais um campo de tensão na guerra tecnológica dos EUA contra as corporações chinesas. Em 17 de setembro, o Comitê de Investimentos Estrangeiros nos Estados Unidos (CFIUS, na sigla em inglês) iniciou uma investigação sobre as empresas de games ligadas à Tencent, a Riot Games, proprietária da League of Legends e da Epic Games, desenvolvedora do Fortnite. No dia seguinte, o secretário de Comércio, Wilbur Ross, publicou uma ordem determinando a proibição, a partir de 20 de setembro, de downloads e atualizações do TikTok, da Bytedance e do WeChat, app que também seria bloqueado.
Em face desse ultimato, o acordo para transferência de ativos da TikTok para empresas americanas, que vinha sendo negociado, foi aceito por Donald Trump. Assim, se for aprovado pelo CFIUS e pelas autoridades regulatórias de Beijing, o acordo poderá evitar o bloqueio de downloads do TikTok nas lojas de aplicativos, a partir de 27 de setembro. A ByteDance tem até 12 de novembro para apresentar uma solução definitiva, ou seu aplicativo será banido do mercado norte-americano.
A proposta cria a TikTok Global, com participação de investidores americanos e sede nos EUA. Embora a ByteDance continue no controle da empresa, Oracle e Walmart terão 20% do controle acionário, somando-se a outros investidores norte-americanos, como a Sequoia Capital e a General Atlantic, que já são investidores da ByteDance. A vitória de Trump é parcial, no entanto, porque o acordo se estabeleceu com importantes exigências de Beijing e agravou as tensões das relações bilaterais sino-americanas.
Em relação ao WeChat, o bloqueio das operações do aplicativo a partir do dia 20 foi suspenso pela juíza Laurel Beeler, em San Francisco. Ela concedeu uma liminar, atendendo ao pedido de um grupo de usuários do WeChat nos EUA. O argumento dos usuários é que as proibições violariam os direitos de liberdade de expressão de milhões de americanos de língua chinesa que utilizam o aplicativo para comunicação. Em resposta aos argumentos de segurança que justificam o bloqueio, a juíza destacou que há pouca evidência que sustente essas preocupações. Este tem sido um outro vetor das críticas à atuação do CFIUS e que tem conduzido à judicialização das decisões do Comitê.
CFIUS e a securitização do investimento estrangeiro
Além de agravar as relações sino-americanas, o caso TikTok e WeChat coloca em relevo um outro aspecto das políticas do governo Trump: a securitização do investimento estrangeiro. O bloqueio e a imposição de transferência de ativos chineses para empresas americanas que estão sendo usados pela administração Trump evidencia o alcance da nova regulação de segurança de investimento estrangeiro aprovada com apoio bipartidário, em agosto de 2018: o Foreign Investment Review Reforma Act (FIRRMA). Essa lei entrou em vigência em 13 de fevereiro de 2020, reformando o CFIUS e ampliando os setores e tipos de investimento que serão objeto de sua autoridade.
Agora, a regulação prevê que painéis de revisão poderão impor o desinvestimento nas operações já realizadas e que não tenham sido autorizadas pelo CFIUS, como medida para mitigação dos riscos de segurança nacional, desde que incluídas nas áreas classificadas como críticas, ou sensíveis. Entre elas, tecnologia, informação de dados e os investimentos do tipo non controlling, que são as participações minoritárias.
A proteção da inovação tecnológica pelas regulações de segurança nacional, ao lado de outras medidas como política fiscal, controles de importação e exportações, guerra comercial, adotadas pelo presidente Donald Trump desde o início do governo, impactaram o cenário global de comércio e investimento. Essas medidas conduziram à redução do investimento direto chinês nos EUA, que caiu vertiginosamente de US$ 46,5 bilhões, em 2016, para US$ 5,4 bilhões, em 2018 – o menor volume desde a crise financeira de 2008. Em 2020, como mostra o relatório do Rhodium Group, em um cenário de crise acentuado pelas tensões bilaterais e pelo impacto da pandemia da covid-19, os investimentos diretos e de capital entre EUA/China chegaram a US$ 10,9 bilhões no primeiro semestre de 2020, menor nível desde o segundo semestre de 2011.
No conjunto das políticas de Trump, a nova regulação tem sido um instrumento para o avanço da agenda do governo, tanto de seu projeto de trazer empresas “de volta para os EUA” quanto para pressões sobre os investimentos chineses nos EUA. Olhando-se para a trajetória do debate sobre multinacionais, fica claro que essas medidas se configuram como uma forma de nacionalização e que, por meio do poder estatal, visam a ampliar, ou a facilitar, a participação de grupos nacionais em mercados. Neste caso, o acordo favorece interesses da Oracle e do Walmart na disputas com outras corporações norte-americanas em segmentos de mercado de tecnologia.
Reações da China e novas regulações para impedir transferência de tecnologia
Para a China, como declarou Zhao Lijian, porta voz do Ministério chinês das Relações Exteriores, essas exigências de Trump sobre os aplicativos chineses são um “roubo coercitivo”, na medida em que que se valem de pressão econômica e de manipulação política. Baseadas em uma visão expansiva de segurança nacional e de abuso do poder do Estado, essas práticas criam um ambiente de opressão contra as empresas. “Isso viola os princípios de mercado e as regras internacionais, e desmascara a ironia dos EUA, quando se proclamam defensores da economia de mercado e da concorrência leal”, criticou o porta voz.
Governo chinês reage duramente à pressão dos EUA sobre apps (Crédito: Shutterstock)
A posição da China aponta as contradições dos EUA, cujas práticas protecionistas confrontam os princípios da ordem internacional liberal, partindo-se de uma concepção de segurança expandida para justificar as intervenções no mercado, e especificamente, sobre as empresas chinesas.
Nesse contexto de pressões sobre as corporações chinesas, o Ministério do Comércio (MOFCOM) e o Ministério de Ciência e Tecnologia atualizaram o catálogo das regulações de segurança nacional. Além de dezenas de novos itens, foram incluídas restrições para importação e exportação de tecnologia, como as transferências forçadas de tecnologias empresas chinesas para empresas estrangeiras. Na lista, os artigos 18, sobre tecnologia de Inteligência Artificial com interface interativa, e o 21, de tecnologia que envolve informação pessoal baseado em análise de dados, remetem claramente às condições da ByteDance.
Em 19 de setembro, o MOFCOM publicou a Ordem N.º 4, “Provisions on the Unreliable Entity List”, com vigência imediata, definidas como medidas necessárias para a “salvaguarda da soberania nacional, segurança e interesses de desenvolvimento, manutenção da ordem econômica e comercial internacional justa e livre, proteção dos direitos e interesses legítimos de empresas, outras organizações e indivíduos da China”. Isso revela a disposição de confronto da China, na medida em que estabelece contramedidas com base nas mesmas regulações e argumentos de segurança nacional. Uma postura que equaliza as demandas e define posições simétricas de poder político.
Entendendo os impasses do acordo: ByteDance entre Trump e Xi
Desde a Ordem Executiva de Trump, de 6 de agosto, exigindo a venda da TikTok para uma empresa americana como condição para se manter nos EUA, a ByteDance vem negociando para evitar seu banimento em 90 dias. Várias propostas foram discutidas com Microsoft, Oracle, Walmart, entre outras empresas. Uma das primeiras alternativas foi a compra da TikTok pela Microsoft, rejeitada pela China, porque pretendia ter o controle total da TikTok nos EUA, excluindo os chineses. Depois do ultimato do dia 18, a ByteDance aceitou a proposta da Oracle e do Walmart, que recebeu, em 19 de agosto, a “bênção” de Trump. O presidente disse concordar com a “ideia” do acordo, prorrogando os efeitos da ordem de bloqueio de downloads do aplicativo para o dia 27. A proposta ainda precisa ser aprovada pelo CFIUS e pelas autoridades regulatórias da China.
A “bênção” de Trump foi resultado da atuação do lobbista David Urban, consultor da campanha de reeleição de Trump, cuja empresa American Continental Group foi contratada pela Bytedance em 2020. Desde 2019, quando começou a ser objeto de pressões nos EUA, a TikTok vem recorrendo a lobbies federais e investindo milhares de dólares, na tentativa de encontrar solução para se manter no mercado americano.
No acordo divulgado pela imprensa, seria criada a TikTok Global, com participação da ByteDance, que manteria controle de 80%, e da Oracle e do Walmart, com 20%, antes da Oferta Pública Inicial (IPO). Em resposta às exigências de mitigação de risco, a Oracle, corporação americana de tecnologia com sede na Califórnia, com 12,5%, seria a parceira tecnológica de confiança nos EUA que vai gerenciar o armazenamento de dados em nuvem, dando garantias à proteção dos dados dos usuários norte-americanos. Já o Walmart, com 7,5%, avançaria no “social commerce”, explorando a plataforma para a venda de seus produtos, em concorrência com Facebook e Instagram. Existe ainda a expectativa de criação de 20.000 empregos nos EUA, onde a TikTok global terá sua sede.
Em um primeiro momento, além da manutenção do controle da ByteDance sobre a TikTok Global, o código-fonte, o algoritmo de Inteligência Artificial que faz do TikTok um sucesso global, não seria transferido. Em 23 de setembro, porém, a Oracle, esclareceu que, ao contrário do que vinha sendo divulgado sobre o acordo, terá acesso ao código-fonte do TikTok, e a ByteDance não participará da TikTok Global.
A exclusão do controle chinês e do acesso à tecnologia, implicados nas condições de supervisão de segurança sobre o aplicativo pela Oracle, são exigências centrais dos EUA. A China, por sua vez, não pretende autorizar a transferência de tecnologia, pois o TikTok, que nos EUA tem 100 milhões de usuários, e o Douyin, com 600 milhões na China continental, utilizam o mesmo código-fonte. Isso poderia abrir acesso as operações do aplicativo na China. Apesar dos esforços do fundador e CEO da ByteDance, Zhang Yiming, para encontrar uma saída para a venda do TikTok nos EUA, a tensão entre país hospedeiro e de origem coloca em dúvida a possibilidade de se encontrar uma solução via mecanismos de mercado.
Entre idas e vindas, portanto, a discussão sobre o destino dos aplicativos não aponta um desfecho capaz de acomodar as tensões sobre pontos fundamentais para as políticas estratégicas de China e EUA.
* Edna Aparecida da Silva é professora da FFC/UNESP e pesquisadora do INCT-INEU. E-mail: ednasilva@ineu.org.br.
** Recebido em 24 set. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.