Paz neoliberal chega às nações do Golfo Pérsico
Crédito das imagens: Karim Sahib, Ahmad Gharabli/AFP
‘Acordos selados entre Israel e as nações do Golfo retomam estratégia de criação de mercado de livre-comércio no Oriente Médio’
Por Arturo Hartmann, Bruno Huberman e Isabela Agostinelli*
Na terça-feira, 15 de setembro de 2020, os Emirados Árabes Unidos e Bahrein assinaram um acordo de normalização das relações diplomáticas e comerciais com Israel. Com isso, os EAU e Bahrein se somam a Egito e Jordânia, os outros dois países árabes a “normalizarem” oficialmente as relações com Israel.
Com a mediação do presidente dos EUA, Donald Trump, o acordo foi assinado na Casa Branca, em Washington, com a presença do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e os ministros de Relações Exteriores Sheikh Abdullah bin Zayed Al Nahyan, dos EAU, e Abdullatif Al Zayani, do Bahrein. As medidas dão continuidade ao redesenho da geopolítica do Oriente Médio que vem sendo conduzida por Netanyahu, Trump e seu conselheiro (e genro) Jared Kushner.
Em julho de 2019, o Bahrein recebeu a Oficina de Manama, onde os Estados Unidos apresentaram a parte econômica de seu plano “Paz à Prosperidade”, que incluía uma lista de projetos orçados em cerca de 27 bilhões de dólares para os Territórios Palestinos Ocupados, aberto a interessados que quisessem investir na estrutura da ocupação israelense. O dinheiro de investidores seria coletado em um fundo especial, administrado pelos EUA e por entidades internacionais.
Em janeiro de 2020, Trump anunciou os termos político do que foi chamado “Acordo do Século”. O que era anunciado como o plano de paz para o Oriente Médio, entretanto, apenas formalizou o controle colonial dos territórios palestinos da Cisjordânia.
Paz dos mercados: o espírito neoliberal dos acordos diplomáticos
Quando as lideranças políticas de Israel aceitaram se sentar com os palestinos no início dos anos 1990 para discutir um acordo diplomático que, supostamente, levaria à criação de um Estado da Palestina independente, os intermediários das negociações, os EUA, fizeram uma promessa importante a seus aliados israelenses. Caso selado um acordo com os palestinos, estaria aberto o caminho para a integração econômica de Israel com o restante das nações do Oriente Médio e do Norte da África.
Essa também era uma agenda de intervenção global dos estadunidenses no mundo pós-Guerra Fria, a tradução do desejo de impor uma Nova Ordem Mundial regida pelo livre-mercado e o multilateralismo. Na marcha do “fim da História”, o conflito colonial entre Israel e os palestinos e a consequente fragmentação regional que causava se tornavam um estorvo para as ambições imperialistas. Os benefícios econômicos foram, portanto, um elemento importante para convencer o establishment israelense a abrir mão de parte dos territórios palestinos, ocupados desde 1967, que desejava colonizar para expandir as suas fronteiras.
Logo, em conjunto com os acordos políticos com os palestinos que resultaram na criação da Autoridade Palestina em 1993, os Protocolos de Paris de 1994 determinaram que o processo de construção do Estado da Palestina teria como cerne uma agenda de desenvolvimento neoliberal elaborada pelo Banco Mundial e a segurança de Israel. Ainda em 1994, um acordo de paz e de livre-comércio foi firmado entre Israel e Jordânia como pontapé para a construção de uma ordem neoliberal em todo Oriente Médio que incluísse os israelenses. “Paz” e livre-comércio se tornaram sinônimos.
Nas palavras do secretário de Estado do governo Bill Clinton (1993-2000), Warren Christopher, responsável por intermediar as negociações diplomáticas e econômicas no Oriente Médio: “governos podem criar o clima para o crescimento econômico […] mas apenas o setor privado pode produzir a paz que irá permanecer”. Christopher veio a repetir o mesmo script neoliberal nos Acordos de Dayton, que colocaram fim à Guerra da Bósnia em 1995. Não por acaso, o mesmo espírito mercadológico baseou a recente normalização das relações entre Sérvia e Kosovo, também intermediada por Trump.
No entanto, a permanência das ambições coloniais dos israelenses, que dobraram o número de assentamentos nos territórios palestinos durante as negociações de paz, e também a oposição de setores da sociedade palestina contrários ao compromisso político com os colonizadores fizeram as ambições econômicas das elites serem interrompidas. A explosão da Segunda Intifada, em 2000, por um momento impediu que a normalização política e econômica de Israel no restante da região fosse adiante. Já o 11/9 de 2001 fez os neoconservadores republicanos optarem pela abertura do livre-comércio no Oriente Médio, não mais por meio de acordos diplomáticos, mas pela força das guerras no Afeganistão e no Iraque.
A partir de então, o histórico centro político, econômico e cultural do Oriente Médio concentrado nos países do Levante — Palestina, Líbano, Síria, Jordânia e Iraque — entrou em um declínio permanente pelas intervenções imperialistas na Guerra ao Terror e na Primavera Árabe. Em paralelo, as monarquias absolutistas do Golfo Pérsico, enriquecidas pelos seus petrodólares e pelo aumento do valor do barril, ascenderam como o novo centro político da região. Se, em 2009, Obama fez um discurso na capital do Egito, o Cairo, para falar de um “novo começo” para o Oriente Médio que nunca veio a se realizar, em 2017 Trump teve como destinos de sua primeira viagem presidencial Israel e Arábia Saudita.
Os recentes acordos políticos intermediados por Trump entre Israel e duas nações do Golfo, Bahrein e Emirados Árabes Unidos, ironicamente alinham Trump às estratégias dos democratas de expandir os interesses econômicos e políticos dos EUA por meio da diplomacia. Antes de Clinton intermediar os acordos de Israel com palestinos e jordanianos, Jimmy Carter foi o responsável por inaugurar este tipo de política no paradigmático Acordo de Camp David entre Israel e Egito em 1979. Foi na ocasião que surgiu o paradigma da “paz” no Oriente Médio. Já Obama rompeu a tradição democrata com suas intervenções militares na Líbia e na Síria, dando continuidade à doutrina inaugurada pela família Bush.
Paz neoliberal chega ao Golfo: a geopolítica dos acordos Israel-EAU-Bahrein
Os acordos selados entre Israel e as nações do Golfo retomam a estratégia de criação de um mercado de livre comércio no Oriente Médio no qual os israelenses possam fazer parte para reconfigurar as relações de poder na região. No entanto, ao invés da criação de uma ampla zona comercial ao estilo dos anos 1990, agora buscam acordos bilaterais que reforcem as relações econômicas e abram os mercados para os empresários desses países. Enquanto isso, os desejos populares são calados e a Questão Palestina esquecida.
Simultaneamente, se fortalece o eixo geopolítico na região dos principais aliados dos palestinos, atualmente formado por Qatar, Irã e Síria, os principais rivais do grupo composto por Arábia Saudita, Emirados Árabes, Bahrein, Kuwait e Omã o qual os israelenses buscam agora se aproximar.
Em relação ao Qatar, por exemplo, a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores anunciou que não fará parte desse almejado grupo de países do Golfo a normalizar as relações com Israel, justamente porque não há perspectiva de que Israel acabe com suas políticas de precarização das vidas dos palestinos. O Qatar atualmente fornece apoio econômico aos palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.
A normalização das relações aponta também para um alinhamento estratégico com fins de enfraquecimento da influência do Irã na região. Este, por sua vez, apontou que a aproximação dos EAU e do Bahrein com Israel significa uma traição com o mundo islâmico e um apoio aos crimes israelenses contra os palestinos. Em 2016, o Bahrein cortou suas relações diplomáticas com o Irã.
O Bahrein foi o país que recebeu, em 2019, a conferência “Paz para Prosperidade”, na qual o genro de Trump, Jared Kushner, anunciou seu novo plano para uma nova ordem política e econômica para o Oriente Médio. Na ocasião, os EUA e seus aliados do Golfo anunciaram a criação de um fundo de aproximadamente 50 bilhões de dólares que irrigaria uma rede investimentos conjuntas entre Israel, Egito, Jordânia e AP. Em troca dos investimentos previstos no chamado “Acordo do Século”, concluído no início de 2020 sem a anuência da AP, os palestinos iriam ceder vastas parcelas de seu território, como o Vale do Jordão, a Israel.
A venda casada de jatos F-35 pelos EUA aos EAU mesmo em discordância, ao menos publicamente, do premiê Benjamin Netanyahu reforça a dimensão econômica da suposta paz. Nos últimos anos, as nações do Golfo se tornaram as principais compradoras de tecnologia militar do mundo, ao passo que os conflitos armados se tornaram mais constantes na região. Inclusive, o Bahrein foi um dos países que mais brutalmente reprimiu suas revoltas populares na Primavera Árabe com o apoio da Arábia Saudita, e os Emirados Árabes, ao lado dos sauditas, são os responsáveis por apoiar a brutal repressão contra a população civil na Guerra do Iêmen.
Neste cenário, um acordo entre Israel e Arábia Saudita, os principais aliados e importantes parceiros comerciais dos EUA na região, parece cada vez mais possível.
As (surdas) reações palestinas
A diferença dos acordos políticos do presente em relação aos desempenhados nos anos 1990 é que os palestinos são mais facilmente calados, e suas reivindicações, ignoradas. O mundo parece se importar cada vez menos com a continuidade da colonização israelense.
No mesmo dia da assinatura do acordo, as ruas de Ramallah, Nablus e Hebron, na Cisjordânia, e da Faixa de Gaza foram tomadas por centenas de palestinos que protestaram contra os acordos. De Gaza, foguetes foram disparados contra Israel, o qual imediatamente reagiu, como sempre, de forma desproporcional, com o bombardeamento de áreas na região central de Gaza. Mahmud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, afirmou que a paz no Oriente Médio só será possível quando Israel acabar com sua ocupação colonial dos territórios palestinos, algo que parece estar muito longe de ser realizado.
Não é surpreendente, portanto, que as reações palestinas tenham sido de condenação a essas aproximações. Com elas, representantes do alto escalão político e econômico do chamado “mundo árabe” não oferecem mais suporte político para a causa palestina, se é que algum dia o fizeram. Ao contrário do que se tenta fazer crer, isto é, de que esses acordos são um avanço rumo à solução do conflito palestino-israelense, eles, na verdade, não apresentam perspectiva real e prática de resolução do conflito contínuo entre Israel e Palestina, uma vez que perpetuam as dinâmicas estruturais de ocupação colonial israelense.
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Arturo Hartmann é doutorando em Relações Internacionais no programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), membro do Grupo de Estudos sobre Conflitos membro do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (Geci) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
Bruno Huberman é doutorando em Relações Internacionais no programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), membro Geci e do INCT-INEU e professor de Relações Internacionais da PUC-SP.
Isabela Agostinelli é mestranda em Relações Internacionais no programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), membra do Geci e do INCT-INEU.
** Publicado originalmente na Carta Capital, em 19 set. 2020. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.