Causas dos incêndios na Costa Oeste dos EUA: estaria Trump certo desta vez?
Bidwell Bar Bridge: cercada pelas chamas no lago Oroville, Califórnia, 9 set. 2020 (Crédito: Josh Edelson/Getty Images)
Por Pedro Vasques*
Como se vê em seu pronunciamento transmitido ao vivo pela Internet (vídeo abaixo), em 15 de setembro, o candidato democrata à Casa Branca, Joe Biden, buscou associar os devastadores incêndios no estado da Califórnia às demais catástrofes que o país vem sofrendo nos últimos anos, como enchentes, tornados, secas, entre outros. Colocou todos esses fenômenos no âmbito de uma causa única: as mudanças climáticas.
Biden fala sobre mudança climática e incêndios na Califórnia, Oregon, Washington e Oeste, em 15 set. 2020
Nesse contexto, vale-se da oportunidade para reforçar seu compromisso com a temática ambiental e destacar sua preocupação para com os impactos causados pelos incêndios, desigualmente distribuídos sobre as minorias norte-americanas. Ademais, tal como já trabalhado em texto anterior, Biden antagoniza com o presidente Donald Trump, ao mobilizar o discurso climático como promotor de oportunidades de crescimento e de emprego, enquanto seu rival em 3 de novembro, conduziria o tema na direção oposta, ou seja, como um dos responsáveis pelo declínio da economia do país.
“The unrelenting impact of climate change affects every single solitary one of us, but too often the brunt falls disproportionately on communities of color, exacerbating the need for environmental justice. These are the interlocking crises of our time. It requires action, not denial. It requires leadership, not scapegoating” – Joe Biden
Alinhada com seu companheiro de chapa, Kamala Harris, cujo estado de origem é a Califórnia, também se pronunciou sobre o assunto, viajando para a região pela primeira vez desde o início da pandemia da covid-19. Ao lado do governador democrata Gavin Newson, a senadora destacou a relação dos incêndios com a mudança climática, seu peso desproporcional sobre as populações negras norte-americanas, os impactos desses eventos para a economia local, bem como os desafios de se combater os incêndios em meio à crise sanitária, sempre relacionando sua proposta de política climático-ambiental com a geração de novos empregos.
Ao chegar à Califórnia para tratar da questão, o republicano Trump adotou um discurso público sensivelmente diferente daquele que o noticiário vinha denunciando, ou seja, de que o presidente teria ordenado à Agência Federal de Gestão de Emergências (em inglês, Federal Emergency Management Agency – FEMA) a retenção de recursos destinados à Califórnia para a gestão dos incêndios.
“This is one of the biggest burns we’ve ever seen and we have to do a lot about forest management, obviously forest management in California is very important and now it extends to Washington and extends also to Oregon; it has to be good strong forest management which I’ve been talking about for three years with the state, so hopefully they’ll start doing that. In the meantime, we’re helping them up” – Trump
Trump discursa ao chegar à Califórnia, em 14 set. 2020
Empregando uma abordagem proativa e clamando para si o protagonismo da questão, ao afirmar que teria declarado estado de emergência e direcionado apoio imediato às áreas atingidas, a declaração de Trump é estratégica. Primeiramente, porque, ao tratar da ocorrência sob o prisma da política pública de gestão florestal, reitera posicionamento adotado quando dos incêndios passados e que, em alguma medida, encontra respaldo científico. Em segundo lugar, ao adotar a referida tática, intencionalmente direciona para os governadores a responsabilidade pelos erros de execução da política pública e, ao mesmo tempo, emerge como aquele preparado para intervir e lidar com a crise de maneira adequada. A partir desse percurso, sequer se vale dos recorrentes ataques às questões climáticas para defender seu posicionamento. Nesse caso, ao ser indagado sobre o tema, Trump apenas sugere que tal questão deva ser feita ao governador.
Considerados tais dimensões e posicionamentos, recolocamos a questão posta no título a fim de indagar: seria possível afirmar que a argumentação desses candidatos seria suficiente por si só? Evidente que não.
Por meio da referida abordagem, Biden e Harris parecem sustentar uma posição coerente no tocante à importância da dimensão climática para a ocorrência dos incêndios, com destaque para os impactos desiguais desses episódios sobre populações vulneráveis. A dupla evita, no entanto, tratar da responsabilidade dos governos estaduais – que, nesse caso, são ocupados por democratas (i.e., Califórnia, Oregon e Washington). Ao seguir tal orientação, buscam culpabilizar o governo federal, cuja atuação nos últimos anos é marcada por políticas “antiambientalistas”, ainda que os riscos e os limites das políticas florestais estaduais conduzidas nos últimos anos venham sendo reiteradamente alertados por especialistas.
Trump também singulariza o debate, mas o faz denunciando os erros de implementação das políticas de gestão florestal pelos governadores. Há poucas dúvidas de que a orientação seguida pelos Estados nos últimos anos possui problemas e precisa ser revista. Contudo, ao minimizar a importância da discussão climática, bem como da atuação prévia do governo federal – que, no caso da Califórnia, é proprietário de quase 58% das terras públicas do estado –, Trump tenta se esquivar de qualquer responsabilidade e, em adição, usa esse episódio para ofuscar as questões postas por seu antagonismo à agenda ambiental, enquanto emerge em destaque positivo por conta da atuação federal.
Na direção do que se imaginaria, os incêndios passaram a compor a agenda eleitoral, ainda que de forma altamente polarizada e superficial. Nesse quadro, o arrefecimento do clima conflitivo entre democratas e republicanos no entorno de articulações bipartidárias – em especial, considerando-se a urgente necessidade de apoio federal por parte dos estados atingidos – tende a beneficiar Trump na corrida pela reeleição. Caso esse cenário se mantenha, e a União atenda de forma satisfatória às urgências estaduais, é provável que reste muito pouco aos democratas para além da possibilidade de continuar insistindo nos ataques à orientação negacionista do atual presidente.
Mudança climática, gestão florestal e uso do território: uma tragédia multifatorial
O vídeo abaixo poderia ser uma nova sequência para o filme Blade Runner 2049, mas a filmagem feita de um drone, postada no YouTube por DoctorSbaitso e, em seguida, editada por Terry Tsai, que incluiu a trilha sonora do referido longa metragem, apenas retrata um momento da temporada de incêndios da Costa Oeste norte-americana. A intensidade das chamas e de seus efeitos, fundamentais para a composição da paisagem apocalíptica introduzida pelas imagens, não é obra do acaso, porém, tampouco de um fenômeno natural excepcional, cuja ocorrência pouco se relacionaria com a ação humana.
Ainda que os incêndios, iniciados no final de agosto, tenham sido provocados por uma pouco usual sequência de raios que, em 48 horas, acendeu cerca de 360 diferentes focos de chamas, seu rápido alastramento e magnitude parecem estar conectados a três elementos fundamentais: as mudanças climáticas, as políticas de gestão florestal e os processos de uso e ocupação do território nessas regiões.
A despeito de as alterações no clima não serem o único fator, sua relevância é indiscutível.
Conforme conclui Goss (et al., 2020) em recente trabalho acadêmico publicado, as mudanças climáticas podem ser percebidas como uma espécie de multiplicador que amplifica riscos naturais e humanos que, no caso da Califórnia já incidem de forma prevalente. Tendo em vista as grandes dimensões dos incêndios de 2017 e de 2018, e que os recordes de temperatura na região vêm sendo batidos desde 2014, os autores demonstram, por meio de modelos, que o aumento do risco de incêndios coincide com a robusta tendência de aquecimento e com o suave declínio nos índices de precipitação entre 1979 e 2018. Nesse sentido, o estudo aponta que a manutenção desse cenário implicaria a ampliação dos períodos de tempo propícios à ocorrência de incêndios no estado.
De todo modo, mesmo que o estudo acima mencionado não trate de outros fatores, como a ação humana e a gestão florestal, com relação a esse segundo, o professor Scott Stephens, da Universidade da Califórnia, vem há décadas desenvolvendo inúmeras análises a respeito. Em trabalho publicado no ano de 2018, Stephens (et al.) já alertava para o elevado acúmulo de material vegetal combustível nas florestas da Califórnia e para a inadequada estratégia de gestão dessa questão pelo poder público.
No texto, os pesquisadores ressaltavam que diversos ecossistemas norte-americanos dependem de incêndios periódicos para a manutenção de sua integridade. Entretanto, a política pública privilegiada se voltou para a condução de altos investimentos nas medidas de supressão do fogo. Ao inibir as queimadas, permitiu-se a acumulação de biomassa que, por sua vez, ampliou o risco de que os incêndios seguintes fossem ainda maiores. Naquele momento, os pesquisadores reforçavam a importância de que os administradores públicos mudassem as abordagens de gestão florestal, aplicando técnicas de restauração mecânica e de queima prescrita, a fim de se aumentar a resiliência dos ecossistemas ante um contexto de aceleração das mudanças climáticas. O objetivo seria diminuir as chances de ocorrência de catástrofes.
Impacto da desigualdade social e do rearranjo urbano no meio ambiente
Embora sugerir a indução de incêndios controlados possa parecer uma abordagem contraditória frente aos alertas de aumento da temperatura global, o que suscitaria um baixo interesse em adotar esse tipo de técnica por parte dos administradores locais – em regra, marcados nos cenários interno e externo por discursos climático-ambientais progressistas –, há uma dimensão ainda mais complicada que subjaz ao debate. Trata-se do aumento do número de habitações em regiões urbanas que fazem fronteira com o meio natural (wildland-urban interface). Encontram-se, portanto, mais expostas aos riscos de incêndio, dada sua proximidade à vegetação inflamável.
Segundo Radeloff (et al., 2018), a partir de tal situação, deriva-se duas principais complicações, quais sejam, a ampliação da ocorrência de queimadas originadas pela ação humana – que, conforme Balch (2017), entre 1992 e 2012, corresponderam a 84% dos episódios – e, o aumento da dificuldade no combate às chamas. Diante disso, o risco às vidas e às propriedades redefine as possibilidades de ação, impedindo, por exemplo, abordagens de não interferência em incêndios naturais.
Ainda tratando das ocupações em áreas de risco, Radeloff (et al., 2018) conclui que um grande número de casas nos Estados Unidos vêm sendo construídas próximas, ou em meio à vegetação desde, pelo menos, os anos 1990. Ao comparar as décadas de 1990-2000 e 2000-2010, os autores identificam que o número absoluto de habitações erguidas nesses espaços foi maior no segundo período estudado. Curioso observar como o texto chega a essa conclusão, ao mesmo tempo em que sustenta que tal resultado teria ocorrido “apesar da crise financeira de 2008” e que atingiu diretamente o mercado imobiliário norte-americano. A despeito de os pesquisadores terem avaliado como contraditório o crescimento do número de residências nas áreas de risco no período de inflexão econômica negativa, temos por hipótese que esses dados explicitariam uma mudança na dinâmica de ocupação desses territórios.
Enquanto a ida para os subúrbios pelos norte-americanos esteve historicamente associada a uma melhor qualidade de vida, caracterizada pela proximidade do meio natural e pelo distanciamento dos centros urbanos densos e poluídos, mais recentemente, esse movimento parece estar sendo reconfigurado pela crise econômica em determinadas regiões. Além daqueles interessados em estar mais perto da natureza, essas áreas passaram a atrair populações que foram diretamente afetadas pelo aumento da desigualdade e da pobreza após a eclosão da crise do subprime, dado, em especial, que o preço da terra nessas áreas é muito inferior àquele praticado nos espaços centrais das grandes cidades. Nesse contexto, Radeloff (et al., 2018) parece ter identificado – ainda que não fosse esse seu objetivo – uma pista para avaliar os reflexos da crise financeira na dinâmica de trabalho e habitação nos Estados Unidos.
Tratando especificamente do estado da Califórnia, essa situação de vulnerabilização de sua população mais pobre se torna ainda mais perversa. Isso porque, dentre as inúmeras variáveis envolvidas, o processo de urbanização extensiva, responsável por formar novas e mais distantes periferias em direção às áreas de risco de incêndio, não está associado apenas ao aumento da desigualdade social – em parte decorrente dos efeitos da crise de 2008. Também se relaciona com conjuntos de ações dos proprietários de imóveis nas regiões centrais das cidades em favor da manutenção de restrições urbanísticas que impeçam a densificação desses espaços.
Como consequência, essas práticas contribuem para o aumento e a manutenção dos altos preços da terra, empurrando aqueles com menos recursos para áreas cada vez mais distantes – nesse caso, mais próximas do fogo. E, em se tratando de um território que passa a ser habitado por uma população que, aos poucos, tem seu perfil socioeconômico ampliado para agregar famílias com renda mais baixa, há também a tendência de que os impactos dos incêndios recaiam sobre tais grupos de forma ainda mais severa e desigual, suscitando outros riscos de natureza socioambiental.
Essas questões, brevemente trabalhadas acima, explicitam a parte da multiplicidade de dimensões envolvidas, para além da abstrata oposição entre mudanças climáticas e falhas na gestão das florestas norte-americanas. Tendo em vista a proximidade de pleito eleitoral, em 3 de novembro, é com base nessa polarização que o debate sobre os incêndios na Costa Oeste vem sendo conduzido.
* Pedro Vasques é pós-doutorando pelo INCT-INEU, pesquisador associado do Cedec e doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
** Recebido em 18 set. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.