O(s) acordo(s) dos EUA para Sérvia e Kosovo: um feito ‘histórico’ de Trump?
Aleksandar Vučić (presidente da Sérvia), Donald Trump e Avdullah Hoti (primeiro-ministro do Kosovo) na Casa Branca em 4 set. 2020 (Imagem: Joyce N. Boghosian/The White House)
Por Gustavo Oliveira*
Em dezembro de 2018, Donald Trump escreveu cartas aos presidentes de Sérvia, Aleksandar Vučić, e Kosovo, Hashim Thaçi, urgindo os dois líderes a chegarem a um acordo final de normalização de relações sob assistência norte-americana. Conforme as missivas, o “acordo histórico” entre os dois lados, que traria uma “paz longamente buscada para a região”, seria celebrado na Casa Branca por Trump, Vučić e Thaçi.
Quase dois anos depois, no último dia 4/9, Trump finalmente foi o anfitrião de uma cerimônia com os líderes de Sérvia e Kosovo. O trio original, é verdade, teve um desfalque: Thaçi, acusado em junho de envolvimento em crimes de guerra e contra a humanidade na época do conflito do Kosovo, nos anos 1990, não esteve em Washington. Em seu lugar, o Kosovo foi representado pelo primeiro-ministro Avdullah Hoti. Na presença de Trump, Vučić e Hoti assinaram acordos de “normalização econômica” no Salão Oval da Casa Branca. Acordos, no plural, pois não se trata de um único documento assinado conjuntamente por ambos, e sim de dois textos ligeiramente diferentes entre si, cada qual assinado unilateralmente por Vučić e Hoti.
Como nas cartas de 2018, aspirações triunfalistas e o epíteto “histórico” marcaram o discurso de Trump e de oficiais de sua administração. Para o presidente estadunidense, quatro de setembro de 2020 foi um dia “verdadeiramente histórico”. Nas palavras de Trump, Vučić e Hoti, com bravura e uma auspiciosa contribuição do governo norte-americano, chegaram a um “compromisso histórico” que tornou os Bálcãs e o mundo mais seguros. Declarações no mesmo sentido foram feitas pelo secretário de Estado, Mike Pompeo, e pelo enviado de Trump para as negociações Sérvia-Kosovo, Richard Grenell.
De fato, não é todo o dia que líderes dos Bálcãs são pomposamente recebidos pelo presidente norte-americano na Casa Branca para assinar acordos de cooperação referentes ao mais importante contencioso da região, que já dura – se tomada como ponto de referência mais imediata a declaração de independência do Kosovo, feita em 2008 mas ainda hoje não reconhecida pela Sérvia – mais de uma década. Na prática, contudo, pode-se dizer que os documentos produzidos em Washington dificilmente fazem jus à entusiasmada retórica do governo estadunidense.
Um “mais do mesmo” paliativo sobre o principal
A primeira razão pela qual se pode questionar o peso dos acordos de Washington está na própria maneira paliativa, indireta e não original, com a qual se lidou com o âmago do contencioso: o fato de a Sérvia ainda considerar o Kosovo formalmente sua província e não reconhecer o status deste último como país independente, declarado em 2008 por representantes da maioria étnica albanesa do Kosovo.
Os EUA são os principais patronos internacionais da independência do Kosovo, posicionamento que se refletiu em apelos do governo Trump, nos últimos anos, pelo “reconhecimento mútuo” como o elemento principal em um acordo final de normalização. Nesse sentido, houve versões, segundo as quais esta questão esteve, de fato, na pauta das negociações das delegações sérvia e kosovar ocorridas em 3/09 com participação de representantes da administração Trump.
Naquele dia, a delegação sérvia, reforçando misteriosas declarações anteriores de Vučić sobre uma “surpresa” que poderia aparecer em Washington, alardeou que um certo “item 10” da versão preliminar do acordo falava, entre outros assuntos, que Sérvia e Kosovo “se comprometem com o reconhecimento mútuo”. Vučić afirmou, porém, ter rejeitado este ponto. Em um primeiro momento, Grenell negou que o tema estivesse na mesa, mas deu declarações ambíguas posteriormente. Dias depois, soube-se que uma versão preliminar do acordo continha, sim, o “reconhecimento mútuo”.
Seja como for, a questão do status do Kosovo apareceu nas versões finais apenas de forma indireta, no penúltimo artigo dos acordos. O Kosovo concordou em suspender, por um ano, a busca por entrada em organizações internacionais (OIs), das quais não faz parte. Já a Sérvia, pelo mesmo período, suspenderia sua campanha de “desreconhecimento” da independência do Kosovo. Adicionalmente, Belgrado renunciaria a solicitações, junto a países e OIs, para que o Kosovo não seja reconhecido como Estado independente.
Esta construção tem precedentes em batalhas diplomáticas em torno do status do Kosovo nos últimos anos. No final de 2018, o Kosovo atribuiu seu insucesso em ingressar na Interpol à atuação diplomática da Sérvia. Em retaliação, o governo kosovar instituiu uma taxação de 100% para bens importados da Sérvia. O governo sérvio reagiu, por sua vez, com a negativa para negociações de normalização até que as taxas fossem revogadas. O imbróglio se encerrou apenas recentemente. Em grande medida graças a pressões da União Europeia (UE) e, principalmente, dos EUA, as barreiras comerciais kosovares foram completamente abolidas em junho, o que permitiu que as negociações mediadas pela UE fossem retomadas no mês seguinte.
Ao longo deste processo, a Sérvia vinha sendo instada por Grenell a suspender sua obstrução do reconhecimento internacional da independência do Kosovo – que, além do âmbito das OIs, incluía uma campanha de “desreconhecimento” junto a países-membros da ONU. Nos últimos anos, conforme o governo sérvio, 18 Estados – primariamente países periféricos no sistema internacional – revogaram seu reconhecimento da independência do Kosovo, fator que afeta negativamente a possibilidade de ingresso deste último na ONU. A contrapartida exigida pelo governo sérvio para tal suspensão seria o fim da campanha de reconhecimento do Kosovo e de sua entrada em OIs.
O penúltimo ponto dos acordos de Washington constitui, assim, um compromisso com base em elementos que já vinham sendo desenhados anteriormente. No que tange ao status do Kosovo, portanto, ele representa antes um arranjo indireto, parcial e provisório – um gesto de boa-fé que poderá contribuir para a continuidade das negociações de normalização – do que o encaminhamento de uma resolução definitiva propriamente dita.
‘Let’s put politics aside’: a abordagem economicista do governo Trump
Tal insucesso, ou indisposição, em lidar com o tema do status tem a ver, em grande medida, com a abordagem encampada pela administração Trump. Como sugere o título dos acordos assinados em Washington, o governo dos EUA deu bastante acento às questões econômicas como caminho para conduzir à normalização, orientando-se por uma suposta distinção entre economia e política.
Este direcionamento já era esperado desde a época do agendamento original do encontro, que deveria ter ocorrido em junho (o adiamento para setembro ocorreu em virtude das referidas acusações contra Thaçi). Então, Grenell afirmou que o conflito entre Sérvia e Kosovo seria resolvido por meio da normalização econômica. Somente após este passo haveria condições para uma solução política, cuja responsabilidade, conforme Grenell, seria primariamente da UE. Investimentos, crescimento econômico e criação de empregos têm sido, portanto, as palavras-chave no discurso da administração Trump para a questão Sérvia-Kosovo, implicando uma lógica, segundo a qual a prosperidade e os laços econômicos, à diferença de um improdutivo foco no “simbolismo” associado às questões políticas, conectariam as pessoas e reduziriam a conflitividade na região. Em suma, como exclamou Grenell em seu Twitter em 3/9, “Coloquemos a política de lado !” (Let’s put politics aside !).
Sendo assim, diversos dos 16 pontos dos acordos lidam de maneira mais ou menos explícita com a cooperação econômica, em especial na área de infraestrutura. Além da implementação de acordos de conexão rodoviária e ferroviária entre as capitais Belgrado e Pristina preliminarmente firmados no início do ano, apareceram pontos sobre a cooperação de instituições financeiras e de órgãos governamentais norte-americanos em projetos de transportes e energia, envolvendo Sérvia e Kosovo, bem como na provisão de apoio a pequenas e médias empresas. Concordou-se, ainda, com o ingresso do Kosovo no “Mini-Schengen”, um projeto de zona econômica com livre fluxo de bens, capital, serviços e pessoas lançado por Albânia, Macedônia do Norte e Sérvia em outubro de 2019.
Em linha com a referida lógica economicista, a administração Trump exaltou esta dimensão econômica do acordo e os prospectos de sua contribuição para uma solução política (e, como não poderia deixar de ser, para a atuação do capital norte-americano nos Bálcãs). Pelo menos ao nível das elites políticas, pode-se dizer que há, de fato, certa dose de fundamento em tal lógica. Para a elite política da Sérvia, por exemplo, os prospectos de benefícios para a economia do país oriundos da integração à UE (para o que a normalização com o Kosovo é um requisito) foram um fator crucial (em conjunto com pressões políticas do bloco e de seus membros, particularmente da Alemanha) a estimular a participação nas negociações com o Kosovo e as concessões incorridas neste processo.
Ocorre, contudo, que há sérias potenciais deficiências nos acordos apadrinhados por Trump, as quais também levantam questionamentos sobre o quão “históricos” são os documentos. Os termos dos projetados aportes econômicos norte-americanos, por exemplo, são vagos. Não há cifras e cronogramas concretos a este respeito. Em vez disso, falou-se somente na cooperação de Sérvia e Kosovo na produção de memorandos de entendimento e de estudos de viabilidade junto a instituições dos EUA. Isto leva a crer, no mínimo, que novas negociações e acordos complementares serão necessários para eventuais concretizações.
A natureza jurídica dos acordos também põe em questão a firmeza do compromisso dos EUA com o que consta nos papéis. Já que uma variante trilateral foi descartada (na medida em que implicaria a aceitação, por parte da Sérvia, do status do Kosovo como país independente), Vučić e Hoti, como dito acima, assinaram, de maneira unilateral, documentos separados (que o presidente sérvio classificou como cartas de intenção). Conforme enfatizou Grenell, o governo norte-americano não faz parte dos acordos em si mesmos. O que Trump fez, na verdade, foi apenas assinar cartas a Vučić e Hoti, tomando nota dos acontecimentos. No exemplar destinado ao primeiro-ministro kosovar, por exemplo, o presidente dos EUA saúda o progresso na normalização e expressa o desejo de continuidade da parceria com o Kosovo. Junte-se a isto a incerteza sobre um segundo mandato de Trump, e tem-se que o prospecto de implementação dos projetos delineados – e, consequentemente, suas implicações políticas – não parece, por ora, tão óbvio.
Let’s put Serbia and Kosovo aside: a invasão das agendas de política externa dos EUA
Além do aspecto econômico, outra dimensão dos acordos de Washington foi a insólita inserção de temas que nada têm a ver com a normalização Sérvia-Kosovo. Parafraseando Grenell, tais pontos mostram que o governo Trump, em grande medida, deixou de lado a própria normalização Sérvia-Kosovo.
Nos acordos, há, por exemplo, dois pontos relacionados ao Oriente Médio. No primeiro deles, tanto Sérvia, quanto Kosovo se comprometeram a designar o Hezbollah, organização política/paramilitar libanesa que se opõe a Israel e é aliada do Irã, como uma organização terrorista “em sua totalidade”. As atividades do Hezbollah nas jurisdições de Sérvia e Kosovo, conforme este item dos acordos, também deveriam ser coibidas. Já o segundo ponto – exatamente o trecho que distingue as versões assinadas por Vučić e Hoti – diz respeito às relações com Israel. O governo sérvio concordou em abrir escritórios comercial e de Estado em Jerusalém ainda neste mês de setembro. A Sérvia se comprometeu a transferir sua embaixada para Jerusalém até julho de 2021. Já Kosovo e Israel concordaram em se reconhecer mutuamente.
Ademais, fala-se que os dois lados irão diversificar suas fontes de fornecimento de energia. Sérvia e Kosovo também se comprometeram a coibir o uso de equipamento 5G provido por fornecedores “não confiáveis”. Por fim, cabe mencionar o compromisso de Sérvia e Kosovo em atuar pela descriminalização da homossexualidade junto a países que ainda a criminalizam (69, conforme o acordo). Esta questão é associada particularmente a Grenell, que é abertamente gay e tem liderado a campanha pela descriminalização da homossexualidade em nível internacional conduzida pela política externa dos EUA.
O que todos estes díspares pontos têm em comum é sua ligação com diversas agendas de política externa da administração Trump, algumas das quais vistas como muito mais prementes do que a normalização Sérvia-Kosovo. Nesse sentido, sobressai-se, no contexto da eleição presidencial norte-americana do próximo 3/11, a busca de Trump por “mostrar serviço” frente tanto a seus simpatizantes, quanto a seus críticos.
Com o item referente ao Hezbollah, por exemplo, Trump conseguiu, em tese, cooptar parceiros para seus esforços pró-Israel e anti-Irã. A racionalidade anti-iraniana também é enxergada por analistas como um elemento da agenda de descriminalização da homossexualidade, visto que a criminalização da homossexualidade no Irã é particularmente criticada pelos EUA. Os artigos sobre Israel se inserem, por sua vez, em duas agendas do governo Trump: a de legitimação da contestada reivindicação israelense sobre Jerusalém como sua capital; e, especificamente no caso do reconhecimento mútuo entre Israel e Kosovo, a agenda de aproximação de países árabes e/ou muçulmanos a Israel (a população do Kosovo, reconhecido como país independente pelos EUA, é majoritariamente muçulmana).
Já a questão da diversificação das fontes de energia remete às disputas de mercado e ao combate à atuação russa no setor energético europeu, frequentemente vista nos EUA como um instrumento de influência geopolítica. Este último item é particularmente relevante para a Sérvia. Para além de suas desenvolvidas relações políticas e securitárias com a Rússia (estas últimas, por sinal, já renderam ameaças de sanções por parte dos EUA), a Sérvia tem dependido significativamente do gás e do petróleo russos. Em 2008, a companhia nacional de petróleo e gás sérvia se tornou uma empresa de maioria acionária da Gazprom Neft, subsidiária da Gazprom (estatal russa de gás). Por fim, a Sérvia tem participado de diversos projetos de gasodutos com participação russa (que se desenvolvem, aliás, sob ameaças de sanções por parte dos EUA).
O item referente ao 5G também é regido por uma lógica similar – desta vez, direcionada à China. Como no caso russo, a atuação chinesa nos Bálcãs também preocupa os EUA, razão pela qual Grenell afirmou que os acordos contribuirão para ancorar a região no Ocidente e afastar a influência de Rússia e China. Nesse sentido, a Sérvia também assume lugar de destaque. No campo diplomático, a China, como a Rússia, não reconhece a independência do Kosovo. Além disso, a China possui uma declaração de parceria estratégica (2009) com a Sérvia, país que tem sido um reduto da atuação de Pequim nos Bálcãs.
Primariamente manifestada no campo econômico (inclusive na área de infraestrutura, presente nos acordos de Washington), esta atuação chinesa na Sérvia inclui também a presença da Huawei – exatamente a companhia de ponta no setor 5G que o governo estadunidense acusa de espionagem a serviço do governo chinês e que vem sendo combatida pelos EUA no âmbito de sua guerra comercial-tecnológica contra a China. Possíveis implicações concretas do acordo de Washington nesse sentido poderão ser vistas em breve: espera-se que o governo sérvio realize leilões de frequências 5G no início de 2021, ocasião que pode fortalecer – ou não – a presença da Huawei no segmento de telecomunicações do país.
O pós-Washington
Logo após os eventos na capital estadunidense, Vučić e Hoti, já em 7/09, reuniram-se em Bruxelas com representantes da UE para mais uma rodada nas negociações de normalização mediadas pelo bloco. Desde julho, representantes das três partes têm discutido temas como a autonomia para a comunidade sérvia no Kosovo, questões pertinentes a pessoas desaparecidas e deslocadas, cooperação econômica e contenciosos financeiros e de propriedade (alguns destes temas, inclusive, também aparecem nos acordos de Washington).
A reunião de 7/09, como havia antecipado Grenell, lidou com temas políticos mais sensíveis: partes de um “acordo abrangente juridicamente vinculante” (legally binding comprehensive agreement), nome técnico para um acordo final de normalização, foram discutidas. Novas reuniões com representantes de Sérvia e Kosovo devem ocorrer em Bruxelas ainda ao longo de setembro – incluindo um novo encontro com Vučić e Hoti, agendado para 28/9.
Em meio a estas negociações, os acordos de Washington também tiveram repercussão em Bruxelas. Às vésperas do encontro de 7/09, Vučić e Hoti emitiram um comunicado conjunto, no qual se reconhece que os documentos de Washington podem contribuir para um acordo final de normalização. Potenciais desconfortos, todavia, podem ser observados nas entrelinhas da carta: Vučić e Hoti afirmaram ao alto representante da UE para Assuntos Exteriores e Política de Segurança, Josep Borrell, conferir “a mais alta prioridade” para as negociações sob mediação da UE. Os dois líderes se comprometeram, ainda, a “redobrar seus esforços” de alinhamento com o bloco.
Apesar de sua formulação genérica, este último quesito certamente tem em mente questões bastante concretas. O porta-voz da UE, Peter Stano, asseverou que a questão das embaixadas sérvia e kosovar em Jerusalém – sobre as quais a UE não foi informada de antemão – é um assunto de “séria preocupação e lamentação” para o bloco, que contesta o posicionamento israelense sobre Jerusalém. Alertou-se, nesse sentido, que a opção de Sérvia e Kosovo pelo acesso à UE subtende a harmonização com o bloco. A esta altura, tal questão é mais pertinente para a Sérvia, que já negocia sua entrada. Neste caminho, como lembrou Stano, o país deve, como requisito para o acesso, harmonizar sua política externa com os posicionamentos da UE.
Já na Rússia, principal aliada da Sérvia no combate ao reconhecimento internacional da independência do Kosovo, houve reações mais azedas. O jornal russo Kommersant noticiou que o acordo assinado por Vučić em Washington foi recebido com perplexidade nos bastidores do poder em Moscou, que também não teria sido avisada de antemão sobre trechos do documento. Nesse sentido, um miniescândalo diplomático surgiu em 5/9, após Maria Zakharova, porta-voz do Ministério russo das Relações Exteriores, ter publicado uma postagem em sua página no Facebook criticando veladamente a percebida subserviência de Vučić diante de Trump. A mensagem lhe rendeu fortes críticas de oficiais do governo sérvio.
Logo, contudo, tentou-se contornar a situação. O embaixador russo em Belgrado, Aleksandr Botsan-Kharchenko, foi chamado para dar explicações ao governo sérvio, enquanto Zakharova se retratou, afirmando que, na verdade, estava criticando a arrogância norte-americana. O chanceler russo, Sergei Lavrov, afirmou, em linha com o tradicional discurso de seu governo, que Moscou apoia qualquer acordo feito voluntariamente entre Belgrado e Pristina. Além disso, expressou a convicção de que o governo sérvio continuará respeitando a Resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU (CSONU), que fala no compromisso com a soberania e integridade territorial da Sérvia – outro elemento em linha com o posicionamento russo sobre a questão Sérvia-Kosovo.
Já em 10/9, foi a vez de Vučić ligar para Putin para discutir as negociações de Washington e Bruxelas. Na ocasião, o presidente russo reiterou que seu país apoia uma solução que, além de equilibrada e aceitável para a Sérvia, deveria ser aprovada no CSONU (implicando que a Rússia não deve ser excluída do processo decisório). Também na direção do apaziguamento russo-sérvio, Putin se desculpou pelo ato de Zakharova e elogiou a “contribuição pessoal” de Vučić para o desenvolvimento das relações bilaterais.
Em meio a esta repercussão, a administração Trump já prepara seus follow-ups dos acordos de Washington. Ainda em setembro, espera-se que uma delegação norte-americana visite Belgrado para inaugurar o escritório da U.S. International Development Finance Corporation (DFC) na capital sérvia. Esta é uma medida prevista pelos acordos de Washington, assim como a participação da DFC em diversos projetos econômicos listados no documento.
Nesse sentido, o destino político de Trump após três de novembro de 2020 será crucial para determinar se, e em que medida, os acordos de Washington serão implementados e terão desdobramentos políticos de peso. Além dos fatores internacionais supracitados, fatores domésticos em Sérvia e Kosovo também podem afetar de maneira significativa tais prospectos. Vučić, por exemplo, sinalizou que não se alinhará à agenda anti-Huawei de Trump. O presidente sérvio e membros de seu governo também deram declarações contraditórias sobre a mudança de embaixada para Jerusalém – ora, afirmando que isto dependeria do “respeito” israelense à Sérvia (especula-se que isto signifique exatamente o não reconhecimento formal, por parte de Israel, da independência do Kosovo); ora, não pondo em questão os termos do acordo de Washington. Por fim, Vučić sinalizou que não se alinhará a uma agenda antirrussa no setor energético. Apesar de reconhecer que a diversificação de fornecimento é algo desejável, Vučić afirmou que a Sérvia não substituirá o gás russo por alternativas mais caras.
No que se refere à continuidade do processo de normalização, deve-se lembrar, ainda, de outros fatores políticos domésticos na Sérvia. Com a acachapante vitória de seu partido na eleição de junho, Vučić conseguiu reforçar seu já forte controle sobre a esfera institucional chave do Parlamento, esvaziado dos setores oposicionistas mais ferrenhos (que boicotaram o pleito). Recentemente, o governo Vučić também passou por mais uma onda de protestos no país. A polarização social indicada por estas manifestações continua latente na sociedade sérvia, na qual se acumulam insatisfações com questões como o autoritarismo e o aparelhamento estatal sob Vučić. Concessões no sensível tema do Kosovo também podem levar a novos cenários de instabilidade e desafios a Vučić no país.
Já no Kosovo, Hoti enfrenta uma série de potenciais problemas, a começar pelas percepções de déficit de legitimidade que o rondam desde que chegou a seu posto. Hoti foi votado como primeiro-ministro no início de junho pelo Parlamento kosovar após seu antecessor, Albin Kurti – que tinha elevada aprovação popular e cujo governo, de acordo com pesquisas de opinião pública, foi o mais bem avaliado em toda história do Kosovo desde 2008 –, ter sido definitivamente derrubado. A controversa queda de Kurti foi conduzida formalmente dentro das instituições kosovares, como o Parlamento e a Corte Constitucional, mas foi fortemente motivada, além de disputas de poder no seio da elite política kosovar albanesa, por pressões dos EUA – aos quais Kurti desagradava por se opor aos parâmetros de negociação de normalização defendidos por Grenell.
Assim, a chegada de Hoti ao cargo de primeiro-ministro foi vista por parte significativa dos kosovares albaneses como uma escusa manobra voltada, em grande medida, para entregar a Washington o que Kurti não se dispôs a entregar. Adicionalmente, há um potencial problema de composição política: Hoti não conta com uma base de apoio parlamentar majoritária ampla. Seu governo tem vivido sob o espectro de potenciais dissensos com influentes parceiros de coalizão (inclusive no que tange à normalização). Além disso, o governo Hoti depende da lealdade da Lista Sérvia, o partido controlado pelo governo sérvio que atua nas instituições kosovares.
A partir do íntimo envolvimento de sua administração no processo de normalização entre Sérvia e Kosovo, portanto, Trump pode até vir a colher dividendos eleitoreiros e reforçar certos eixos de sua política externa (como o do Oriente Médio) na reta final de seu mandato. Entretanto, levando-se em consideração diversos fatores discutidos acima – como a influência de outros atores interessados no conflito balcânico, além da própria natureza dos acordos de Washington e da incerteza sobre a permanência de Trump no poder –, o caminho para um legado histórico verdadeiramente expressivo para a questão Sérvia-Kosovo deverá ser mais complicado do que o que sugere o discurso do atual governo norte-americano.
* Gustavo Oliveira é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Também é pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP).
** Recebido em 12 de set. 2020. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.