Internacional

11 de Setembro: memórias de uma brasileira em NY

Nova-iorquinos observam, em choque, a queda das Torres do WTC, em 11 set. 2001 (Crédito da imagem: Patrick Witty)

Por Yedda Araújo*

“Tá pegando fogo, tá pegando fogo!”. Foi o que me fez despertar naquele 11 de setembro de 2001. Os gritos eram do Fernando, meu vizinho, que entra sem cerimônia assim que abro a porta e já pega o controle remoto. No exato momento que a imagem se forma na tela, o segundo avião atinge uma das torres.

Naquele momento, acordei de verdade.

Entre relatos confusos e em pânico dos meus vizinhos e de todos os canais de televisão, consegui entender o que estava acontecendo. Minha única preocupação era falar com minha mãe no Rio de Janeiro para avisá-la de que eu estava bem. Três meses antes, tinha começado um estágio em uma pequena agência de publicidade, e tudo que ela e meus amigos sabiam é que esta era localizada em um prédio comercial em Manhattan. Mas telefone e Internet não funcionavam.

Desde cedo, quando vimos os aviões atingirem as torres e, na sequência, suas quedas, ficamos incomunicáveis. Com sorte, por volta das 15 horas, uma amiga conseguiu me ligar e disse que todos no Brasil estavam muito preocupados. Aproveitei e lhe pedi que dissesse a minha mãe que eu estava segura.

Nesse mesmo dia, ainda tentei ir trabalhar (em um restaurante), mas o metrô não estava funcionando direito. Voltei para casa.

No dia seguinte, eu e uma amiga tentamos ir até a Lower Manhattan, a região do World Trade Center, ver de perto o que havia restado. Logo descobrimos que ninguém podia ir para baixo da rua 42. E, mesmo de lá, dava para VER as partículas de poeira no ar e sentir sua densidade. O ar era, literalmente, pesado e difícil de respirar. Voltamos para casa.

População foge da massa de poeira (Crédito: Kelly Price)

Três semanas depois, respeitado o cordão de isolamento de algumas quadras, já podíamos descer até lá. A destruição era chocante. E ainda víamos partículas daquela poeira no ar, embora menores. Toldos de loja completamente cobertos com uma camada grossa dessa poeira química.

Aquela região permaneceria vazia por muitos anos até a nova torre começar a ser construída. E começou a haver um pouco mais de movimento mesmo somente quando a renovação da estação do metrô que leva à Nova Jérsei, a PATH, ficou pronta. Com ela, veio a inauguração de um shopping para atrair turistas e locais.

Muita coisa mudou depois do 11 de Setembro nesse país. Mas, com base na minha experiência, mudou muito mais para os imigrantes.

O impacto do 11/9 na vida de uma imigrante

Cheguei aqui em 2 de abril de 1998. Pedi extensão do meu visto durante um tempo para evitar ficar “ilegal”. Chega uma hora, porém, que não é mais possível usar esse recurso. Então, deixei isso de lado, e meu período de permanência oficialmente venceu. Em outras palavras: fiquei em situação de permanência ilegal. Na época do 11 de Setembro, eu estava assim. Na realidade, até então, esse status não tinha afetado minha vida tanto assim.

Claro, eu sabia que não poderia viajar a qualquer momento. Mas nunca me faltou emprego. E já tinha viajado sem problemas pelo país. Nunca tinha encontrado um americano que tivesse me olhado de forma hostil. Eu tinha até carteira de identidade de Nova York e pagava imposto de renda.

Aí veio o 11 de Setembro.

Eu já tinha planos de viajar para o Brasil no começo de 2002 e resolvi mantê-los. Por sorte, consegui entrar de novo nos Estados Unidos. E, de novo, consegui emprego facilmente.

No começo, as coisas pareciam normais.

Então, minha identidade venceu, e não pude renovar.

Mesmo com meus novos empregadores querendo me conceder visto de trabalho, isso não era permitido, porque as leis mudaram depois dos atentados.

Vários lugares que empregavam imigrantes de modo bastante flexível, sem pedir qualquer tipo de documento, passaram a pedir pelo menos o número da Social Security (o que várias pessoas conseguem “burlar” se conseguirem o equivalente – a tax ID).

Passei a usar meu passaporte brasileiro para coisas cotidianas como entrar em um bar. Todos os meus amigos apresentavam a identidade para comprovar a idade, e eu tirava o passaporte da bolsa.

Havia algo de humilhante nisso pelo fato de morar na mesma cidade e não poder ter uma coisa tão básica como uma carteira de identidade. Esse fato, aparentemente banal, estava intimamente ligado a um senso de dignidade, de aceitação, de estranhamento e de (não)pertencimento.

Também usava o passaporte para viajar (e muito!) aqui. No início, não tive problemas, mas, às vezes, lá para 2009, 2010, já no governo Barack Obama, alguns agentes da TSA (Transportation Security Administration, a agência responsável pela segurança nos transportes) se detinham no meu passaporte por muito mais tempo do que o necessário. Um deles chegou a questionar o que eu estava fazendo naquela cidade (Tampa, Flórida). Por lei, eles não podem folhear o passaporte para procurar pelo visto, ou pelo I-94, mas isso não evita a tensão nesses momentos.

TSA officer Robert Howard signals an airline passenger forward at a security check-point at Seattle-Tacoma International Airport, Monday, Jan. 4, 2010 (AP Photo/Elaine Thompson)

O agente da TSA Robert Howard chama um passageiro para verificação de segurança no aeroporto internacional de Seattle-Tacoma, 4 jan. 2010 (Crédito da imagem: Elaine Thompson/AP Photo)

Em 2015, depois de já ter o green card (visto de residência e trabalho permanente), fui parada por um agente da fronteira no aeroporto de El Paso, no Texas, alegando que precisava conferir “algo” na minha identidade, sem uma justificativa plausível. Todos na fila eram brancos, loiros e de olhos claros. Eu, morena, bronzeada do verão, cabelos encaracolados e olhos castanhos.

No ano seguinte, passei por mais dois episódios semelhantes em NY. Um no banco, e outro, no tribunal, onde atualmente trabalho.

Em 18 anos residindo em NY, nunca tinha imaginado ser discriminada tão abertamente. Tenho certeza também de que não foi coincidência que esses dois episódios e o do Texas tenham acontecido depois da candidatura do Orangina (um dos apelidos do presidente Donald Trump), que infelizmente hoje mora na Casa Branca.

Nada ficou melhor depois de novembro de 2016. Desde então, já ouvi abertamente um “go back to your country” (“volte para seu país”, em tradução livre) algumas vezes por pessoas que passavam de carro, apesar de já ser cidadã americana. E isso aconteceu no meu bairro, no Queens, o condado mais diverso de NY, considerada a cidade mais multicultural do mundo.

O pior ainda estava por vir quando, em abril de 2018, ao retornar de Paris, tive quase certeza de que seria detida pelo agente de imigração, apesar de já ser residente permanente e de portar uma global entry. Na imigração, os portadores deste passe têm prioridade e entram em filas especiais.

O agente berrava suas perguntas e olhava para mim com asco evidente. Fui encaminhada para uma área para a revista dos meus pertences, onde havia somente pessoas que não portavam passaporte americano e eram, além de mim: asiáticas, negras, muçulmanas e hispânicas.

Nesse momento, passando pela primeira vez por esse tipo de situação na imigração – e também depois de ter presenciado pela primeira vez alguém olhar para mim com tanto ódio e desprezo somente porque eu existia –, depois de ficar mais de uma hora esperando para ser revistada e correndo o risco de perder minha conexão para NY (estava em Detroit), pensei em como os outros imigrantes conseguem lidar com isso no dia a dia.

Eu queria berrar, argumentar com todos eles, expor o preconceito, o racismo, a xenofobia daquele agente que me colocou ali. Mas não podia. Não posso imaginar o que os muçulmanos passaram aqui desde o 11/9.

Encarecimento do custo de vida e explosão da bolha

Mas não foi apenas isso que mudou.

Lembro-me bem de notar que várias lojas já estavam fechando as portas em Manhattan, inclusive lojas grandes, antes do 11 de Setembro. Também me recordo de comentar com uma amiga na época que isso poderia indicar uma recessão e que era melhor ser prudente. Aí veio o atentado. Claro que as coisas em NY não ficaram melhores por um tempo.

Aliás, o prefeito que herdou a cidade depois de tudo isso, Michael Bloomberg, foi responsável por políticas altamente criticadas em diferentes áreas, ao adotar uma política de segurança bem mais dura com negros e latinos — caso, por exemplo, do programa Stop-and-Frisk —, ou por causa da gentrificação, algo de grande impacto na questão habitacional para os menos abastados.

Tudo ficou muito mais caro.

Antigamente, eu ganhava menos do que agora, mas podia gastar a mais, eventualmente, sem complicações. O aluguel era mais baixo (embora nunca tenha sido barato), as contas que já eram caras não eram exorbitantes, e eu podia gastar mais com lazer.

Hoje em dia, gasto no supermercado para me alimentar por uns dez dias o que eu e meu então parceiro gastávamos, em 2003/2004, com compras de um mês.

Isso, obviamente, não foi um fenômeno exclusivo de uma grande metrópole como NY.

Em 2006, vi que havia algo de muito errado na Flórida, quando um casal de amigos e um conhecido compraram imóveis residenciais no estado. Ainda que muito trabalhadores, o casal não tinha condições financeiras para sustentar um investimento daquele porte. O mesmo digo sobre esse conhecido, que me contou não ter precisado dar qualquer entrada na compra da casa. As parcelas das hipotecas eram altíssimas e duvidei que conseguissem continuar pagando. Já no ano seguinte, um deles teve de entregar a casa. Os outros entregaram em 2008. E todos nós lembramos o que aconteceu em 2008.

A economia não se recuperou tão rápido assim, especialmente para quem trabalha como freelancer.

Depois que a pandemia começou nos EUA, no início de 2020, e todos passaram a trabalhar remotamente, vários conhecidos decidiram ir embora de NY. Um casal acaba de comprar apartamento em Nova Jérsei. Um colega comprou uma casa em Connecticut. Não existe perspectiva de voltarem a trabalhar em seus escritórios, e os aluguéis caros daqui não compensavam mais.

Manhattan é uma cidade-fantasma.

Ontem (9/9), passei pelo terminal Grand Central (terminal ferroviário e metroviário da cidade) perto do meio-dia, e estava vazio. Um lugar normalmente abarrotado de gente.

Os prédios comerciais estão vazios, já que as firmas estão-se recusando a renovar seus contratos de aluguel, esperando que o preço baixe. Com isso, vários restaurantes que dependiam dessa clientela estão fechados, ou simplesmente não vão reabrir. Os aluguéis residenciais também não baixaram o esperado.

Nesse momento, os imigrantes “indocumentados” são os que mais sofrem. Não há ajuda do governo para eles, o que não é uma surpresa já que esse governo (do republicano Donald Trump) é completamente contra a imigração. Na Califórnia, eles receberam uma ajuda do governo local, e me surpreende muito que isso não tenha acontecido em NY. Com isso, dependem da caridade alheia, dos postos da Cruz Vermelha (e de outras instituições e lugares), onde há distribuição gratuita de comida.

Homenagear os mortos neste 11/9 é importante, respeitar os vivos, também.

 

* Yedda Araújo é tradutora e intérprete. Brasileira, vive há 22 anos nos EUA.

** Recebido em 10 de set. 2020. Este relato não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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