Militares em foco no cenário de crise pós-eleitoral
O presidente eleito dos EUA, Donald Trump, assiste aos 117º jogos de futebol do Exército/Marinha, com o ex-prefeito de Nova Iorque Rudy Giuliani, em Baltimore, Maryland, em 10 de dez. 2016 (Crédito: Timothy A. Clary/AFP/Getty Images)
Por Solange Reis*
Pouco antes de Jair Bolsonaro ser eleito, o general Eduardo Villas-Bôas fez uma declaração enigmática. “É preciso manter a energia que nos move em direção à paz social, sob pena de que o povo brasileiro venha a cair outra vez no desalento e na eventual convulsão social”, disse o então comandante das Forças Armadas no Brasil.
A fala foi geralmente interpretada como intimidação ao Supremo Tribunal Federal (STF), que estava prestes a julgar a validade de prisão após condenação em segunda instância. Uma decisão contrária do STF daria a Lula a possibilidade de concorrer à Presidência e, ao Brasil, a chance de não ser governado pela extrema-direita. Nada disso aconteceu, portanto Villas-Bôas atirou no que mirou.
A ameaça velada do general não foi a última nem a primeira em apoio a Bolsonaro. Tampouco um caso único de interferência militar na política brasileira. O país, cuja república nasceu de um golpe de Estado, construiu sua história republicana alternando entre democracia e autoritarismo. Militares foram e ainda são a engrenagem da nossa instabilidade.
É possível imaginar tal cenário nos Estados Unidos, um país com prática em golpes no exterior, mas sem vivência de ruptura em casa? A resposta óbvia é negativa, pois a cultura político-institucional americana não abre espaço para um rompimento de regras dessa magnitude. Em contrapartida, os tempos atuais não são triviais. Faltam dois meses para uma das mais importantes eleições americanas. Um pleito que decidirá entre o retorno a um padrão de democracia liberal, com suas imperfeições e algum grau de previsibilidade, e a continuidade de um governo com inclinações tão autoritárias quanto imprevisíveis.
Com mais coisas em jogo do que normalmente, surge a perspectiva de turbulência pós-eleitoral. Quer seja por inconformismo do democrata Joe Biden, diante de uma derrota no Colégio Eleitoral que não reflita o voto popular, ou seja por Donald Trump considerar fraudulenta a vitória do oponente. No segundo caso, teme-se que o presidente dificulte o processo transitório e até resista a deixar o cargo, ou incite à violência. Trump tem dado pistas de que fará o possível para virar no tapetão um resultado desfavorável, inclusive acionar forças de segurança civis e militares.
Todos os homens fardados do presidente
Nos Estados Unidos, os militares gostam de se ver como apolíticos. Mas essa é uma autoimagem fantasiosa. Vários da reserva entram para a política, ou para a administração pública, tornando-se congressistas, ou membros de alto escalão do governo federal. Além disso, políticos em campanha sempre enaltecem os veteranos, discursam em escolas militares e, uma vez eleitos, tendem a ajudar a engordar os cofres das Forças Armadas. Há, portanto, um intercâmbio permanente de interesses entre os dois segmentos.
Apesar desses elos, militares na ativa não tentam interferir em eleições, nem ameaçam com um coup d’État. É muito provável que generais como Villas-Bôas lá fossem tratados com desconfiança quanto às suas credenciais democratas.
Trump nomeou muitos militares da reserva para cargos normalmente ocupados por civis, uma aproximação que despertou preocupação e alento. Houve quem temesse que os militares acabassem sendo controlados pelos civis; outros acharam muito bom ter um “adulto na sala”. Com o tempo, os adultos foram substituídos sempre que divergiram do presidente errático. Poucos, entre os que saíram, como foi o caso do agora ex-secretário da Defesa John Mattis, criticaram os absurdos vistos em uma Casa Branca disfuncional.
Em um detalhado artigo na Foreign Affairs, Max Boot conta como a relação entre o atual governo e os militares foi do namoro à crise. Conservador republicano, o jornalista explica que “quanto mais tempo Trump permanecer no cargo, mais difícil será salvaguardar as tradições apolíticas das Forças Armadas para a nação, dedicação ao Estado de Direito e lealdade à Constituição”. Segundo Boot, a derrota de Trump nas eleições é a solução para o estrago já feito. Se sua análise estiver certa, já não é tão garantido que os militares prefiram a lei em detrimento da lealdade ao chefe.
“A subordinação militar ao poder civil é um preceito básico não apenas da democracia liberal, mas também uma premissa na garantia da liberdade que data da Revolução Americana”, ressalta o pesquisador Augusto W.M Teixeira Júnior, em Informe publicado no Opeu. Em tempos normais, considera-se esse um fundamento indubitável. Independentemente das falhas da democracia americana, sua história recente é de estabilidade institucional.
Devido ao sentido de responsabilidade, ou por estarem sempre muito ocupadas com guerras intermináveis, as Forças Armadas não intervêm diretamente na política doméstica. Foi o que afirmou o chefe do Estado-Maior, general Mark Milley, ao pedir desculpas por marchar com Trump (em uniforme de guerra) por uma praça onde a polícia havia reprimido manifestantes na véspera.
De novo, é importante lembrar a excepcionalidade momentânea. Trump, seus assessores e a mídia radical de direita poderiam criar um clima insustentável de desordem que exigiria recursos extrajudiciais. Além disso, a Constituição permite que milícias populares sejam formadas contra um governo tirano. Para Trump alardear que houve fraude eleitoral e declarar a vitória de Joe Biden como ilegítima, bastariam meia dúzia de tuítes e o acionamento das milícias armadas que já existem e o apoiam. Criado o clima de caos e medo, as forças de segurança, e entre elas os militares, seriam chamados a intervir.
Eleição sob suspeita
Enquanto o democrata Joe Biden mantém a vantagem na maioria das pesquisas, uma pergunta incomum inquieta setores nos Estados Unidos. Donald Trump aceitará uma eventual derrota e fará uma transição suave? O receio não é especulativo, nem baseado apenas nos temores da oposição. Surge como reação às declarações do presidente e de membros do seu governo. Desde adiar as eleições – embora apenas o Congresso tenha essa prerrogativa – até colocá-las em suspeição, muito já foi propagandeado para plantar a incerteza agora e colher a confusão adiante.
Trump tem avisado que tomará medidas para prevenir que o Deep State – o Estado dentro do Estado – fraude as eleições de novembro. Na quinta-feira (20), admitiu que pretende mandar procuradores e centenas de agentes federais para locais de votação. Até se referiu a cidades democratas nos swing states, ou estados menos fiéis a um partido. Ao ser indagado por um entrevistador da Fox News sobre que recursos teria para monitorar as fraudes, respondeu “todos”.
Essa não foi a primeira vez que o republicano especulou sobre o risco de ilegitimidade da eleição. Em julho, em outra entrevista para a mesma rede de televisão, deixou em aberto se aceitará a derrota. “Eu direi a você na ocasião. Vou mantê-lo em suspense, okay?”.
A única forma de perdermos a eleição é se ela for fraudada, disse a seus eleitores durante um discurso em Oshkosh, no estado de Wisconsin. Para Trump, a principal ameaça à legitimidade da próxima eleição é o voto pelo correio, modalidade já permitida na maioria dos estados.
Para o republicano, os democratas usam o distanciamento social na pandemia como desculpa para incentivar o voto pelo correio e aumentar o risco de fraude. Sem apresentar provas, ele alega que um corrompido sistema político enviará máquinas e cédulas apenas para regiões democratas, mas não para as republicanas. Na realidade, o que Trump teme é que o voto por correspondência reduza o tradicional absenteísmo entre o eleitorado democrata, sobretudo nas minorias sociais.
O curioso é que os democratas, não sem razão, também receiam que os republicanos venham a fraudar o voto a distância. Pois o diretor-geral dos correios, Louis DeJoy, alegou corte de custos para mudar alguns procedimentos na votação. Como DeJoy é um grande doador da campanha de Trump, os democratas suspeitam de que uma consequência da mudança será a falta de máquinas e de pessoal capacitado em seus redutos eleitorais.
Turbulências à vista
A insubordinação institucional de um incumbente derrotado seria inédita, mas já há quem preveja esse cenário e procure soluções. Em outras palavras: tenta-se entender como o presidente poderia tumultuar o processo, permanecer na Casa Branca e até aplicar a força para resistir.
Entre os que levantam essa possibilidade, estão dois militares da reserva. Os tenentes-coronéis John Nagl e Paul Yingling escreveram uma carta ao chefe do Estado-Maior, pedindo que ele interfira, caso Trump se recuse a deixar o poder. Trump já teria dado indícios de cesarismo ao ameaçar enviar tropas para reprimir manifestantes e desacreditar o método legítimo de votação pelo correio. Em caso de derrota, os dois militares reformados acreditam que, com o suporte da mídia extremista, o republicano usará forças paramilitares para impedir a posse de Biden. A Constituição não será suficiente para detê-lo, alegam na carta.
A ideia de intervenção foi criticada pelo Pentágono como “oriunda de pensamento leviano que reflete uma falta fundamental de apreço pela história da nossa democracia e pela relação civil-militar estabelecida sob nossa Constituição”. O chefe do Estado-Maior garante que as Forças Armadas não desempenharão nenhum papel em uma eventual disputa eleitoral.
Para Lawrence Douglas, professor de direito na Amherst College, a Constituição não prevê como tratar situações assim. Ela simplesmente pressupõe uma transição tranquila. Os métodos para solucionar dúvidas das urnas estão disponíveis na legislação eleitoral. Douglas diz que incertezas sobre resultados já aconteceram antes, mas os candidatos derrotados não eram antidemocratas. No caso de Trump, o acadêmico aposta que a crise eclodirá para eventual manifestação de apoiadores armados. Em tal cenário, a lei eleitoral será um instrumento parcial de solução.
O presidente não é o único a contar com a intervenção militar. Biden já disse estar convencido de que o atual presidente será escoltado rapidamente pelos militares para fora da Casa Branca.
Quatro cenários de crise
A preocupação com o cenário pós-eleitoral levou à formação do Transition Integrity Project (Projeto de Integridade da Transição, ou TIP, na sigla em inglês), grupo bipartidário e multissetorial. Criado em 2019, o grupo identificou quatro cenários: (1) resultado apertado no voto popular e no Colégio eleitoral; (2) vitória clara de Biden; (3) vitória de Trump no Colégio Eleitoral e de Biden no voto popular; (4) vitória apertada de Biden. Todos os cenários tendem a gerar crise, embora o TIP realce a probabilidade de Trump “manipular, ignorar, prejudicar, ou interromper as eleições presidenciais de 2020 e o processo de transição”.
No caso de contestação por parte dos democratas, o relatório bipartidário identifica medidas como pedido de recontagem de votos, organização de comícios, mobilização da elite formadora de opinião e ataque ao sistema eleitoral que desfavorece o voto popular.
Quando se trata de analisar os cenários de derrota do republicano, ou de um resultado apertado, o TIP prevê muito tumulto. A estratégia trumpista seria baseada em dois pilares: alegar fraude e incitar violência. No plano prático, acionamento de governadores e congressistas para boicotar resultados anunciados, inclusive com medidas ilegais. Assim como pedir recontagem de cédulas, entrar com medidas legais para suspender a apuração em determinados locais e usar a força para interromper a contagem de votos a distância. Isso tudo aconteceria enquanto seus seguidores disseminariam medo nas ruas, e a mídia pró-Trump seguiria propagando desinformação.
Como ações extremas, o estudo aponta para a possível federalização da guarda nacional, colocação de tropas nas ruas, abertura de investigações contra oponentes, congelamento de bens da oposição e controle da comunicação. Outra forma de interromper o curso natural seria aceitar a derrota, mas sabotar a transição.
O caos é agora
“Como um incumbente sem vínculo com as normas, Trump tem enorme vantagem”, afirma o TIP. Por isso, o grupo de análise recomenda que a imprensa tradicional abandone o chamado “dois ladismos”, prática que traça falsos paralelismos entre situações antagônicas, supostamente em nome da neutralidade jornalística. Quando se trata de um presidente que joga de acordo com suas próprias regras e atenta contra o processo democrático, é preciso destacar a anormalidade.
A constatação do caráter anormal de seu governo foi confirmada por Kellyanne Conway, que atuou como uma das assessoras mais próximas de Trump durante quase quatro anos na Casa Branca. Três dias depois de deixar o cargo, na semana passada, Conway disse à Fox News que, quanto mais caos, anarquia, violência e vandalismo, melhor para as perspectivas de reeleição do presidente.
Faltam quase dois meses para as eleições, mas o caos já chegou a algumas cidades do país, onde apoiadores de Trump entram em confronto com manifestantes antirracistas. É provável que Trump nem espere a contagem de votos e aproveite para atiçar a confusão desde agora, reduzindo a eventual intervenção de forças federais, incluindo militares, não a uma questão de “se”, mas de “quando”.
* Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). E-mail: reissolange@gmail.com.
** Recebido em 31 de agosto de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.