Trump quer presidência do BID para conter influência chinesa na AL
Indicado de Trump ao BID, Mauricio Claver-Carone (Crédito: Gabriel Aponte/Getty Images)
Por Marcos Cordeiro Pires*
As organizações multilaterais possuem regras não escritas, mas que geralmente são cumpridas à risca. O Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, desde sua criação, vem sendo dirigido por europeus. O Banco Mundial, por estadunidenses ou por algum preposto dos Estados Unidos, como o sul-coreano Jim Yong-kim, ou a búlgara Kristalina Georgieva , que atualmente é a diretora-gerente do FMI. Já o Banco Asiático de Desenvolvimento (BAD) é dirigido por japoneses desde 1966, assim como vinha ocorrendo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por latino-americanos. Desde 1959, ano da fundação, o Banco já foi presidido por um chileno (Felipe Herrera, 1960–1970), um mexicano (Antonio Ortiz Mena, 1971–1988), um uruguaio (Enrique V. Iglesias, 1988–2005) e um colombiano (Luis Alberto Moreno, desde 2005). Por essa lógica, o novo presidente, cuja eleição está prevista para ocorrer em 12 de setembro próximo, poderia ser um argentino, um costarriquenho, ou mesmo um brasileiro.
Considerando-se o pleito que se avizinha, é importante compreender a estrutura decisória do BID, já que ela não é democrática, mas reflete a quantidade de quotas de cada país e ainda seu status. Existem três tipos de sócios que participam da escolha do presidente: (1) os “membros mutuários”, que são os países da América Latina e do Caribe, que perfazem 50,015% do total de votos; (2) os “membros regionais não mutuários”, que são Estados Unidos (30,006%) e Canadá (4,006%); e (3) os “membros não regionais não mutuários”, composto por países europeus, o Japão, a Coreia do Sul, Israel e China (15,979%).
Para ser eleito presidente do BID, um candidato deverá obter o apoio de países-membros que representem a maioria absoluta do poder de voto do Banco, bem como da maioria absoluta dos governadores dos países-membros regionais (os 26 países-membros mutuários, mais Canadá e Estados Unidos). Além disso, é preciso que participe da eleição a maioria absoluta do número total de governadores, inclusive a maioria absoluta dos membros regionais, com poder de voto, que represente pelo menos três quartos do total dos votos. Mais adiante retomaremos esta discussão.
Contrariando a regra não escrita, Donald Trump indicou para o cargo, em junho passado, o nome do estadunidense de origem cubana Mauricio Claver-Carone. Ele é conhecido por defender uma política linha-dura contra os governos de Cuba, da Venezuela e da China. Já atuou como diretor-executivo dos EUA no FMI, como assistente especial da Presidência de Trump e na diretoria de Assuntos do Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, também na gestão atual. É considerado um dos falcões da política dos EUA para a América Latina e o Caribe.
A considerar pelas manifestações de governantes de diversos países latino-americanos, a eleição de Claver-Carone já estaria garantida, pois conta com o apoio de pelo menos 17 países, incluindo, entre outros, Jamaica, Colômbia, Bolívia, Equador, Uruguai, Paraguai, Honduras, Haiti, além dos Estados Unidos. É digno de nota que o governo brasileiro, alinhado ao governo Trump, abriu mão de indicar um candidato próprio para também apoiar o nome do estadunidense.
Uma pedra no meio do caminho
Apesar do favoritismo, a eleição de Mauricio Claver-Carone não está assegurada. A União Europeia e outros países latino-americanos já se posicionaram indiretamente contra sua indicação e estão-se valendo das regras do jogo para postergar a eleição para março de 2021, quando já se saberá quem será o próximo presidente dos Estados Unidos. Como aponta o jornal El País, a intenção do bloco europeu é acompanhar a recomendação do alto representante europeu para Política Externa, Josep Borrell, que encaminhou, no final de julho, carta a todos os países com capital no Banco para propor o adiamento das eleições.
Os votos da UE e de outros países latino-americanos seriam suficientes para a estratégia de postergação da escolha. Em bloco, os países europeus (excetuando-se o Reino Unido) possuem 9,93% das quotas com direito a voto, aos quais se juntariam Argentina (11,354%), Chile (3,119%), México (7,299%) e, possivelmente, Canadá (4,001%). Somados, esses países poderiam perfazer 35,736% dos votos. Pelas regras do BID, a eleição é adiada se 25%, ou mais, dos votantes não comparecerem à votação. É interessante notar que o percentual de 25%, que foi criado para garantir o poder de veto dos Estados Unidos (com 30% dos direitos de voto), pode se voltar contra a decisão de Washington.
A campanha pelo adiamento das eleições ganhou novo ímpeto com o manifesto assinado por 22 ex-presidentes e chefes de Estado, como Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Kim Campbell (Canadá), Felipe Gonzáles (Espanha), Ernesto Zedillo, Vicente Fox e Felipe Calderón (México), Ricardo Lagos (Chile), Carlos Meza (Bolívia) e Julio María Sanguinetti (Uruguai). De acordo com o documento:
“Nós, abaixo assinados, Membros da World Leadership Alliance – Club de Madrid, todos democratas e ex-Chefes de Estado e de Governo dos países membros do Banco Interamericano de Desenvolvimento, pedimos o adiamento da nomeação do próximo presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), prevista para 12 de setembro. Assim, unimo-nos ao apelo feito pelo Alto Representante e Vice-Presidente da União Europeia, de diversos governos latino-americanos, ex-presidentes, chanceleres, parlamentares e acadêmicos da região. (…) Propomos o adiamento da eleição até março de 2021 e, da mesma maneira que na Organização Mundial do Comércio, que se nomeie um chefe interino, dando aos países membros tempo para uma discussão aprofundada sobre o papel do BID e sua liderança e a resposta institucional apropriada para a recuperação pós-COVID-19”.
A esse respeito, o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, já se manifestou contrariamente ao adiamento, escrevendo no Twitter, em 18 de agosto último, que “o Brasil apoia firmemente a manutenção das datas previstas para a eleição do novo presidente do BID, 12 e 13/9. O BID necessita de uma liderança que mantenha e reforce seu papel na recuperação econômica da América Latina e Caribe em torno de valores democráticos”.
Frente a essa possibilidade, Mauricio Claver-Carone acusou a Argentina de articular sua derrota, pois também reivindica a Presidência do órgão. “Estamos vendo um esforço minoritário liderado pela Argentina para obstruir as eleições porque eles foram incapazes ou não quiseram apresentar uma visão competitiva (…). Qualquer tentativa de sequestrar uma eleição, apesar de regras de procedimento muito claras, seria não apenas antidemocrática, mas também um esforço que os Estados Unidos desafiarão profundamente. Me entristece estarmos voltando a toda essa retórica dos anos (19)60. Por favor, senhores, estamos no ano 2020. Os Estados Unidos não têm nenhuma intenção imperialista com o Hemisfério Ocidental ”. As palavras de Claver-Carone falam por si.
Por que o controle da Presidência do BID interessa aos EUA?
O interesse dos Estados Unidos em manter a Presidência do BID sob seu controle, mesmo já tendo o poder de veto em todas as decisões do Board of Governors, está ligada a outras iniciativas do governo Trump para impulsionar sua influência na América Latina e no Caribe, como as ações da Development Finance Corporation (DFC) e da Iniciativa Growth in the Americas. Ambas buscam patrocinar empresas norte-americanas nos projetos de infraestrutura e bloquear a influência da China na região, principalmente com relação aos projetos relacionados à Iniciativa Belt and Road.
Esta impressão é compartilhada pela revista The Economist, de 18 de junho de 2020, que associa a indicação de um quadro de extrema-direita a mais um capítulo da “guerra fria” iniciada pelo governo Trump contra a China. A nomeação de Claver-Carone como chefe do BID poderá forçar a América Latina a escolher entre as duas nações, o que não interessa a muitos países da região, como Brasil, Argentina, Chile, ou México, que possuem fortes interesses econômicos com Pequim, mas também (e principalmente) com Washington. Além disso, vale considerar que ao menos 19 países da América Latina e do Caribe já possuem Memorandos de Entendimento com a China no tema da Iniciativa Belt and Road, e outros, como Brasil e Argentina, que não o possuem, esperam investimentos chineses em suas debilitadas infraestruturas.
Ainda de acordo com The Economist, o governo Trump ficou furioso com o atual presidente do BID, o colombiano Luis Alberto Moreno, por concordar em realizar a reunião anual da instituição na China, em 2019. O BID acabou cancelando o encontro que aconteceria em Chengdu, porém, depois que o governo de Pequim negou o visto ao representante do líder opositor venezuelano, Juan Guaidó. Uma semana antes, o BID havia excluído o representante de Maduro do conselho da organização e votou a favor da inclusão do nome indicado por Guaidó, o economista Ricardo Hausmann.
É digno de nota lembrar que a China ingressou no BID em 12 de janeiro de 2009, tornando-se o 48º país-membro do Banco e contribuindo com US$ 350 milhões para vários programas. À época, o presidente Luis Moreno afirmou: “A bem-vinda inclusão da China à família do BID fortalecerá ainda mais nossa instituição em um momento crítico para a economia mundial, quando os países precisam proteger os recentes ganhos sociais e econômicos (…) Esses tempos desafiadores exigem ações ousadas e unificadas que serão uma parte importante da agenda que levará à nossa Reunião Anual em março em Medellín, Colômbia. A China é um parceiro essencial no caminho à frente”.
Adicionalmente, além de bloquear a presença da China, um BID dirigido por Claver-Carone poderia se articular nos projetos de Washington relacionados com o “Back to Americas”, que busca reconstruir certas cadeias industriais que, no passado, migraram para a Ásia e apoiar os projetos da Iniciativa Growth in Americas. A título de exemplo, a DFC anunciou, em 21 de julho de 2020, um financiamento de US$ 1 bilhão para investimentos privados em Honduras. Naquela oportunidade, Claver-Carone estava presente ao lado do presidente da DFC.
Ainda neste mês de agosto, de acordo com a Reuters, será anunciado um pacote de investimentos de US$ 1 bilhão na Colômbia. A comitiva dos Estados Unidos deverá contar com a participação do conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Robert O’Brien; do comandante do Comando Sul dos EUA, almirante Craig Faller; do diretor-executivo da US International Development Finance Corp (DFC), Adam Boehler; e Claver-Carone.
Por fim, vale especular que, no caso de uma eventual eleição de Mauricio Claver-Carone, é factível prever que as ações do governo Trump seriam intensificadas contra seus adversários, ao manusear como arma os recursos financeiros do principal banco multilateral de desenvolvimento do mundo. Da mesma forma, podemos supor que aí não se trata apenas de combater governos latino-americanos mais independentes de Washington, como Argentina, Venezuela, Cuba, ou Nicarágua, mas também, ou principalmente, o governo da China.
Caso Joe Biden seja eleito, apesar de não se alterar a essência dos objetivos estratégicos dos Estados Unidos para a região, a eleição do novo presidente do BID poderia ocorrer de forma pactuada e menos traumática e, talvez, trazer de volta a política do governo de Barack Obama para a América Latina que, em 2013, decretou o fim da Doutrina Monroe e, em 2015, na Cúpulas das Américas, prometeu um novo tipo de relacionamento com a região e incorporou Cuba ao fórum.
* Marcos Cordeiro Pires é doutor em História Econômica (USP). Livre-Docente em Economia Política Internacional (Unesp). Professor do curso de Relações Internacionais (Unesp-Marília). Coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Unesp (IEEI). Membro do INCT-INEU. Docente dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Marília) e de Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp-PUC-SP-Unicamp).
** Recebido em 25 ago. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.