Alumínio canadense: a ‘nova ameaça’ aos EUA no discurso eleitoral de Trump
Por Karina L. Pasquariello Mariano*
Em 2017, Morgan Marietta, Tyler Farley, Paul Murphy e Tyler Cote publicaram um artigo muito interessante intitulado “The Rethorical Psychology of Trumpism: Threat, Absolutism, and the Absolutist Threat”. Nesse trabalho, os autores discorreram sobre os principais traços encontrados nos discursos de campanha do então candidato Donald Trump em 2016 e como estes o ajudaram a vencer a disputa eleitoral. Os autores concluíram que as ameaças apresentadas em sua fala, juntamente com sua postura autoritária (quase onipotente), promoveram uma percepção positiva no eleitorado sobre o candidato porque estimularam o sentimento primitivo do medo, que estimula nos indivíduos a busca de proteção e protetores.
Ao mesmo tempo, o discurso de ameaça tem sentido somente quando esta ameaça é clara, ou seja, o inimigo está adequadamente identificado. Em 2016, os grandes inimigos eram o radicalismo islâmico, os acordos comerciais mal negociados – especificamente o NAFTA (North American Free Trade Agreement) e o TPP (Trans-Pacific Partnership) – e os parceiros comerciais “aproveitadores”: China e México. Cada um desses inimigos representava uma ameaça distinta, mas, articulados, eram colocados no discurso do então candidato como responsáveis pelos problemas vividos naquele momento pelos Estados Unidos.
Durante a campanha, Donald Trump explorou intensamente esses inimigos em seus discursos, mostrando-se como o único candidato com capacidade de combatê-los de forma eficiente e, durante seu mandato, preocupou-se com cumprir esse papel de grande defensor do país.
O radicalismo islâmico era e é a grande ameaça terrorista, que após os ataques de 11 de setembro de 2001 ainda assombra a sociedade estadunidense. Contra eles, o governo estabeleceu medidas para barrar a entrada de imigrantes oriundos de alguns países vinculados a esses grupos – tomando o cuidado de deixar de fora importantes aliados como a Arábia Saudita –, assim como implementou uma política migratória muito mais rigorosa. O TPP não foi ratificado, e o NAFTA foi renegociado, dando origem a um acordo que, segundo a administração Trump, estaria adequado aos interesses do país – o USMCA (United States-Mexico-Canada Agreement).
É interessante apontar que, na campanha de 2016, quando o candidato Trump enfatizou as críticas ao NAFTA, estas estavam sempre associadas à deslealdade mexicana: esse país teria-se aproveitado do acordo para atrair investimentos – tanto externos, como de empresas estadunidenses –; gerar empregos em detrimento dos trabalhadores norte-americanos; ampliar suas exportações e facilitar a entrada de imigrantes latino-americanos que contribuiriam apenas para aumentar a pobreza e a violência nas cidades americanas.
Todos esses problemas promovidos pelo NAFTA/México seriam potencializados com a concorrência desleal chinesa, que estaria inundando o mercado estadunidense com seus produtos, ao mesmo tempo em que roubaria empregos e investimentos. Por isso mesmo, a renegociação do NAFTA e a guerra comercial com a China não foram tratadas como ajustes na política comercial do país, mas como a imposição de uma derrota aos seus inimigos.
Conforme apontado em outra análise, o combate a esses inimigos representava a consolidação dessa imagem de protetor dos interesses da sociedade estadunidense, sem esmorecer a percepção de que essas ameaças permanecem presentes e precisam continuar a ser combatidas, daí a necessidade da reeleição. O problema está na mudança de percepção do eleitorado sobre quais seriam as maiores ameaças neste momento: a pandemia da COVID-19, o racismo, a crise econômica, o desemprego e a crescente pobreza, como mostram as pesquisa feitas pelo Pew Research Center. Esses temas estão muito mais identificados como inimigos internos do que externos, e resultantes da própria ineficácia do governo, o que explica em boa medida o crescimento nas intenções de voto no candidato democrata Joe Biden.
Canadá: o inimigo da vez
Diante deste cenário eleitoral negativo, a campanha de Trump busca construir novos inimigos. O escolhido do momento foi o Canadá, país que, em 2016, havia passado incólume pelos discursos de campanha, não tendo sido mencionado como qualquer tipo de ameaça, ou de comportamento inapropriado, nas suas relações comerciais com os EUA, embora fosse integrante do NAFTA. Em 6 de agosto último, o presidente Trump anunciou que havia implementado novamente a taxação de 10% sobre as importações de alumínio provenientes do Canadá, por meio de uma Executive Order, alegando se tratar de uma questão de segurança nacional prevista na Seção 232 do Trade Expansion Act de 1964. Essa medida entrou em vigor já no dia seguinte.
Essa taxação foi anunciada pelo próprio presidente durante um discurso de campanha no estado de Ohio, alegando que a medida defenderia a indústria do país e acabaria com a recorrente vantagem que o governo canadense estaria tendo, ao inundar o mercado americano com seus produtos. Novamente, um parceiro desleal teria de ser punido em benefício dos interesses nacionais. Essa decisão tem sido, porém, severamente criticada pelos diversos custos que gera.
O Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR), Robert Lighthizer, argumentou que a taxação se justificaria, porque o Canadá estaria excedendo a cota de alumínio acordada na renegociação do NAFTA. Um artigo do professor da Florida International University e global fellow do Wilson Center Jerry Haar publicado no site The Hill vai na direção contrária. Segundo o pesquisador, as importações de alumínio nos EUA provenientes do Canadá estão abaixo do nível de 2017, em parte como decorrência da pandemia e da redução da atividade econômica nos EUA, que teriam reduzido drasticamente a demanda interna por esse produto.
Essa não foi a primeira vez que o governo Trump sobretaxou o alumínio canadense. Essa mesma tarifação havia sido aplicada em maio de 2018 durante a renegociação do NAFTA, como forma de pressionar os parceiros a aceitarem as demandas estadunidenses em relação ao acordo. À época, a falta de avanço nas negociações foi uma das justificativas apresentadas para essa medida. O governo canadense reagiu, respondendo com a imposição de mais de US$ 16,6 bilhões em taxações, o que deflagrou uma troca de acusações (e ofensas, por parte de Trump).
O imbróglio foi encerrado apenas um ano depois, quando o governo dos EUA aceitou retirar as tarifas para garantir a aprovação do USMCA no Parlamento canadense, alegando que o problema estaria solucionado nos compromissos estabelecidos no novo acordo que entrou em vigor em 1º de julho deste ano.
Assim como em 2018, as reações foram imediatas. Chrystia Freeland – que ocupa atualmente o cargo de vice-primeira-ministra (Deputy Prime Minister) e que foi a negociadora canadense do USMCA quando era ministra das Relações Exteriores – anunciou uma retaliação tarifária de US$ 2,7 bilhões, como forma de minimizar os protestos internos sobre a medida. Mas os protestos não foram somente daqueles negativamente afetados. Os possíveis beneficiários dessas taxas também se posicionaram contra a decisão do governo estadunidense. A Câmara de Comércio dos Estados Unidos e a Associação Americana de Alumínio classificaram a medida como contraproducente, pois aumentaria os custos para a produção no setor em um momento em que esta se encontra fragilizada pelos efeitos da crise econômica gerada pela pandemia do novo coronavírus.
Contexto atual enfraquece estratégia trumpista do medo
A percepção dos dois lados da fronteira sobre essa taxação das exportações canadenses de alumínio é que os impactos negativos sobre o setor serão desproporcionalmente maiores que os possíveis benefícios que ela geraria. De acordo com artigo publicado pelo jornal The Washington Post, essas taxas agravariam os problemas decorrentes da crise sanitária, não promoveriam um aumento significativo nos empregos e trariam um aumento no preço dos produtos finais, impactando negativamente os consumidores. Além disso, não afetariam o verdadeiro vilão desse problema, a China, vista como culpada por inundar o mercado mundial com sua produção.
Considerando que as taxas não surtiriam um efeito econômico positivo e provocam reações negativas em ambos os países, podemos concluir que a explicação para sua implementação não está na preocupação com a recuperação da economia, nem com a criação de empregos. Tudo se resume a uma lógica eleitoral e à necessidade, no caso do presidente Trump, de criar inimigos que lhe sejam úteis para reforçar sua imagem de negociador implacável em defesa dos interesses nacionais.
Em 2016, os inimigos foram importantes e eficientes, porque era fácil associá-los aos problemas cotidianos da população e, principalmente, aos seus temores. Na campanha atual, está sendo difícil reproduzir a mesma lógica de forma eficiente: a culpabilidade chinesa sobre a pandemia ficou obscurecida pela própria inabilidade do presidente em enfrentar o problema; os acordos comerciais negociados durante seu primeiro mandato geraram resultados econômicos que foram rapidamente esquecidos com a atual recessão que se aprofunda; o México tem demonstrado um comportamento alinhado com as diretrizes de Washington, aceitando as imposições que lhe foram feitas nos últimos quatro anos (à exceção do pagamento pela construção do muro na fronteira entre os dois países); e o tratamento infringido aos imigrantes latinos e muçulmanos não permite utilizá-los como ameaças sem questionar a eficácia da política migratória truculenta implementada pelo governo Trump.
Para que a ameaça seja crível, é preciso que esteja próxima, seja facilmente identificável e represente um risco para interesses importantes. O Canadá pareceu o candidato perfeito: é vizinho; há uma forte interdependência econômica entre os países, especialmente com os estados americanos do Norte que, na eleição passada, votaram a favor de Trump (Idaho, Montana, Dakota do Norte, Wiscosin, Michigan, Ohio e Pensilvânia); e as relações comerciais com ele envolvem setores importantes da economia estadunidense que, nas últimas décadas, enfrentaram problemas com seus pares canadenses, como o de laticínios e automobilístico.
Ainda é cedo para avaliar os efeitos eleitorais dessa estratégia, mas já é possível perceber o desgaste gerado na política externa dos Estados Unidos. Mais uma vez e em tão curto espaço de tempo, Washington se coloca como um aliado não confiável, aumentando a desconfiança do sistema internacional sobre sua real capacidade de exercer um papel de liderança – pelo menos sob uma nova administração Trump.
Enquanto o presidente Trump usa ataques contra seus aliados para alavancar sua campanha eleitoral – vale lembrar que o anúncio foi feito em Ohio, um importante estado pêndulo – e reforça sua imagem de truculência política, o opositor democrata Joe Biden acena com um posicionamento mais conciliador, prometendo rever as tarifas impostas a aliados como o Canadá, ou até mesmo à China. Somente em novembro saberemos se será novamente o medo, ou o diálogo, a estratégia de campanha bem-sucedida em 2020.
* Karina L. Pasquariello Mariano é professora de Ciência Política da UNESP, coordenadora do Observatório de Regionalismo vinculado à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
** Recebido em 21 ago. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.