Guerra tecnológica entre EUA e China: segurança nacional e competição estratégica no caso TikTok
Crédito da imagem: Lam Yik/Bloomberg
Por Edna Aparecida da Silva*
O caso TikTok é mais um movimento agressivo de Donald Trump na escalada de tensões com a China, no cenário que tem sido considerado como uma Guerra Fria 2.0. O banimento do aplicativo, assim como as restrições comerciais impostas à Huawei e à ZTE, compõem o conjunto de medidas para proteção de infraestrutura crítica de tecnologia, parte da política adotada no governo Trump para exclusão e bloqueio de empresas chinesas nos Estados Unidos e em países aliados.
“Ator maligno” e “ameaça aos cidadãos e empresas americanas” são os termos pelos quais o Estado chinês é citado nos documentos de departamentos e agências americanas relativos à segurança nacional e, como declarou o diretor do FBI, Christopher Wray, é hoje “the greatest threat to the US”. A declaração traduz o crescente sentimento anti-China da opinião pública norte-americana, acentuado no contexto da pandemia e explorado pelo presidente na tentativa de minimizar o impacto da atual crise sobre suas chances de reeleição.
Depois de ameaçar banir o aplicativo dos EUA, Trump publicou, em 6 de agosto de 2020, duas Ordens Executivas baseadas na International Emergency Economic Powers Act (50 U.S.C. 1701 et seq., IEEPA), na National Emergencies Act (50 U.S.C. 1601 et seq.) e na seção 301, Título 3, do United States Code. Nelas, determinou que, dentro de 45 dias, estarão proibidas quaisquer transações de pessoas e empresas submetidas à jurisdição dos Estados Unidos com os seguintes aplicativos de empresas chinesas: o TikTok, da Beijing ByteDance Technology Co., e o WeChat, aplicativo de pagamentos eletrônicos e mídia social da Tencent Holding Ltd.
As transações proibidas se referem a downloads nas lojas Google, ou Apple, negociação de publicidade por parte dos desenvolvedores, ou operações corporativas. Com isso, as opções para o TikTok serão: vender o ativo para uma empresa americana, ou sair dos EUA. A Microsoft já está em negociação com a ByteDance em Pequim.
Em 14 de agosto, o presidente reiterou sua posição com uma nova Ordem Executiva, fundamentado no Ato de Defesa da Produção 1950, emenda (seção 721), 50 U.S.C. 4565, que autoriza o presidente e o Comitê de Investimento Estrangeiro dos Estados Unidos (CFIUS, na sigla em inglês) a investigar e bloquear operações de fusões e aquisições com riscos para segurança nacional. O CFIUS concluiu o escrutínio da aquisição da Musical.ly pela ByteDance e, agora, vai coordenar o processo de desinvestimento ao longo de 90 dias.
Para o TikTok, essas acusações são infundadas. A empresa garante que o governo chinês não tem acesso aos dados dos usuários do aplicativo e já anunciou que pretende recorrer ao Tribunal Distrital dos EUA no Distrito Sul da Califórnia, onde as operações da empresa estão sediadas. A ByteDance alega que não se respeitou o devido processo legal, o que prejudicaria a segurança jurídica de investidores estrangeiros nos EUA.
Especialistas argumentam que as preocupações com privacidade de dados em relação ao TikTok não se justificam, já que os dados de usuários que o aplicativo coleta, manipula e armazena são práticas comuns de empresas do setor, como Amazon, Google, ou Facebook – todas americanas.
Motivos de Trump: segurança nacional e eleições
A decisão de Trump se apresenta como uma resposta à preocupação com aplicativos que “se espalharam pelos Estados Unidos, desenvolvidos e de propriedade de empresas chinesas” e que constituem “ameaças à segurança nacional, política externa e economia dos Estados Unidos”. A Ordem Executiva destaca as inquietações de políticos e agências governamentais em relação ao TikTok e às empresas chinesas no setor de tecnologia, informação e dados: segurança nacional, ciberespionagem e a censura de conteúdo por Pequim. Estes temas vêm sendo investigados e discutidos por agências e pelo Senado americano desde meados de 2019.
Entre os riscos associados ao TikTok na Ordem Executiva, destaca-se sua capacidade de produzir dados de Inteligência, na medida em que mobiliza grande volume de dados, inclusive informações pessoais de americanos, o que permitiria “rastrear os endereços de funcionários federais, criar dossiês para chantagem dos mesmos, ou utilizá-los para espionagem corporativa”. Outro aspecto se refere às leis chinesas de segurança nacional que podem exigir que as empresas localizadas na China, como é o caso da ByteDance, cooperem com os serviços Inteligência nos assuntos de interesse do Estado.
Além disso, a atitude de Trump frente ao TikTok estaria relacionada ao fato de que grupos teriam feito uma campanha, utilizando a plataforma, para estimular os jovens a reservarem lugares no comício em Tulsa, em 20 de junho passado, e não comparecerem. O movimento contribuiu significativamente para o fracasso do evento. Em razão da popularidade da plataforma entre jovens e eleitores norte-americanos, porém, o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, aconselhou Trump a desistir de banir o aplicativo, acenando com a alternativa de aquisição da plataforma por uma empresa nacional.
Ao lado das questões de segurança cibernética, também está em foco o potencial competitivo do aplicativo que, como Facebook e Instagram, é uma plataforma de venda de anúncios, negócios de propaganda política e comercial, e de análise de dados para empresas de diversos setores de comércio e serviços. A popularidade do TikTok com o público jovem e a influência no processo eleitoral certamente estão no campo das motivações de Trump. Assim, compreende-se porque ele agiu tão rapidamente sobre uma questão que poderá afetar sua reeleição e sem aguardar a recomendação do painel de revisão de segurança da aquisição da ByteDance nos EUA realizada desde 2019 pelo CFIUS. Conforme a nova lei de revisão de segurança de investimento, a Foreign Investment Review Reform Act (FIRRMA), que entrou em vigor em 13 de fevereiro de 2020, o CFIUS pode negociar um acordo de mitigação de riscos, ou recomendar ao presidente o bloqueio, ou o desinvestimento, no caso de operações já concluídas.
A escolha de Trump de usar uma ordem executiva com base no IEEPA pode evitar ações judiciais, como ocorreu no caso Ralls. Em 2012, o então presidente Barack Obama, também com base em uma recomendação do CFIUS, obrigou o desinvestimento da Ralls Corporation, filial da chinesa Sany Group Co., que havia comprado, no Oregon, quatro fazendas de projetos eólicos próximas de uma área onde a Marinha americana realiza treinamentos para bombardeios e manobras de combate eletrônico com drones.
Nesse que foi o primeiro caso de confronto legal da autoridade do presidente e do CFIUS, a corte de apelação do Distrito de Colúmbia reconheceu que a decisão presidencial não está sujeita à revisão judicial, mas isso não se estende aos processos do CFIUS. Como explicam Wakely e Windsor, conforme a V Emenda Constitucional, o comitê deveria respeitar o devido processo legal e o direito da empresa de responder as evidências.
Agora, no caso TikTok, a partir do resultado do painel do CFIUS, o prazo foi ampliado para 90 dias com a definição dos processos e procedimentos para o desinvestimento, o qual será coordenado pela referida comissão. Como previsto na Ordem Executiva, isso significa que pessoas designadas por esse Comitê para verificar o cumprimento das determinações poderão entrevistar funcionários e ter acesso a todas as instalações da ByteDance e TikTok Inc., assim como de qualquer uma de suas respectivas subsidiárias que operarem no interesse do aplicativo e sejam localizadas nos Estados Unidos.
TikTok no foco das autoridades americanas
Nos EUA, o aplicativo teve mais de 110 milhões de downloads e é um sucesso no mercado global de mídias sociais. A plataforma permite ao usuário produzir e editar vídeos curtos de 15 segundos, para os quais o sistema amplifica a audiência, criando possibilidade exponencial de publicidade para o usuário, sem a necessidade de seguir alguém. Segundo os analistas de mídias sociais e de comportamento, o público jovem foi seduzido pelos recursos do aplicativo que permitem ao usuário, sem muito esforço, ser visto e ver o que quiser e pela capacidade de “viralização” dos conteúdos. Basta abrir o aplicativo, e os conteúdos preferidos vão sendo automaticamente apresentados. Isso é possível, porque o TikTok utiliza um algoritmo de Inteligência Artificial diferente de seus concorrentes. O mesmo algoritmo é utilizado no Toutiao, o aplicativo de notícias da ByteDance que opera na China.
E é justamente o uso de Inteligência Artificial o motivo da apreensão com o potencial de ameaça do aplicativo para ciberespionagem e acesso a dados, como disseram os especialistas de Inteligência em depoimentos no Senado americano, que colocou o TikTok na mira do (CFIUS) no final de 2019 e no debate político no país.
Logo depois, os senadores Chuck Schumer (D-NY) e Tom Cotton (R-AR), em 24 de outubro, solicitaram uma investigação ao diretor da Inteligência Nacional, Tom Maguire, sobre os riscos do uso do TikTok e de outros aplicativos chineses em dispositivos de agências e departamentos.
A falta de mecanismos de apelação para as companhias e a legislação de segurança nacional, que exige cooperação com os serviços de Inteligência do governo chinês, são os principais pontos da polêmica em relação ao TikTok nos EUA e em outros países, como a Índia, que baniu aplicativos chineses, e a Austrália, que está discutindo privacidade de dados e riscos de interferência estrangeira.
Nos EUA, embora o Departamento da Defesa tenha proibido o uso do TikTok, a Transport Security Administration (TSA) continuava utilizando o aplicativo em campanhas institucionais de informação, como denunciou o senador Schumer em 23 de fevereiro de 2020, o que colocaria ao alcance do governo chinês dados governamentais e comunicações de segurança aeroportuária. Em 6 de agosto, mesmo dia da publicação da Ordem Executiva de Trump, Josh Hawley (R-MO) apresentou um projeto de lei, aprovado por unanimidade pelo Senado, para banir o TikTok dos dispositivos do governo.
Outras iniciativas governamentais dos Estados Unidos aprofundam as tensões com a China e buscam alternativas para suas percepções de riscos de cibersegurança e tecnologia 5G. Sob demanda do Departamento de Estado, um grupo de especialistas do Center for Strategic and International Studies (CSIS) está trabalhando na criação de padrões de confiabilidade de fornecedores de serviços de telecomunicação, Criteria for Security and Trust Telecomunication Networks and Servers.
O programa Clean Network (“Redes Limpas”), liderado pelo secretário de Estado, Mike Pompeo, e iniciado em 29 de abril de 2020, apresenta-se como uma iniciativa do governo Trump para proteger dados de cidadãos e empresas estadunidenses, de atores malignos (China) e visa a criar padrões de segurança para os setores de tecnologia crítica e de telecomunicações. Em 5 de agosto de 2020, o governo anunciou a ampliação de novas linhas dentro do programa, incluindo tráfego de dados, armazenagem, aplicativos, nuvem e rede de cabos submarinos, e pretende definir padrões de confiabilidade para o tráfego digital e proteger dados nas redes 5G nas instalações diplomáticas no exterior e nos EUA.
“Os Estados Unidos conclamam nossos aliados e parceiros no governo e na indústria ao redor do mundo a se juntarem à maré crescente para proteger nossos dados do estado de vigilância do Partido Comunista Chinês e de outras entidades malignas. Construir uma fortaleza limpa em torno dos dados dos nossos cidadãos garantirá a segurança de todas as nossas nações”, destaca o secretário de Estado, apontando a disposição do governo de buscar a cooperação dos países aliados aos padrões regulatórios e de segurança nacional definidos com base nos objetivos de política externa dos EUA.
Estado e corporações americanas
As medidas adotadas com base nas regulações de segurança nacional, como bloqueios de fusões e aquisições, exigências de desinvestimento e restrições comerciais, têm criado obstáculos às operações de concorrentes e sinalizam um movimento agressivo de proteção das empresas americanas expostas à concorrência chinesa.
Com a FIRRMA, o governo Trump pode exigir o desinvestimento no caso de operações já realizadas que não tenham sido autorizadas pelo CFIUS e que estejam na lista ampliada de setores sob o escrutínio de segurança nacional. Isso foi, por exemplo, o que ocorreu nos casos Kunlun Tech e do PatientsLikeMe, aquisições já consolidadas e que foram desfeitas, em decorrência de decisão do CFIUS, obrigando a venda de seus ativos para empresas americanas por envolverem segurança dos dados pessoais e de saúde dos usuários.
Agora, com a decisão de Trump, o mesmo deverá ocorrer com o TikTok, que poderá ser adquirido pela Microsoft. Enquanto os produtos de Zuckerberg estão proibidos na China, a Microsoft tem boas relações com Pequim, mantendo no país cerca de 6.200 funcionários, onde atua desde 1992. O próprio CEO da ByteDance, Zhang Yiming, trabalhou na Microsoft.
Como declarou Zhang Yiming, porém, a aquisição por parte da Microsoft ainda está em negociação e envolve, além do controle do TikTok nos EUA, as operações do aplicativo no Canadá, na Austrália e na Nova Zelândia. Cabe destacar que esses países têm negociado com o CFIUS para obter isenções para seus investidores e estão sob pressão de Trump para cooperar e adotar as regulações de segurança nacional similares à norte-americana nos setores de tecnologias críticas.
Como tem sido destacado na imprensa, as pressões dos EUA sobre empresas chinesas devem aumentar. O Departamento do Tesouro e a Securities and Exchange Commission (SEC, correspondente à Comissão de Valores Mobiliários no Brasil) já anunciaram que poderão retirar empresas chinesas do mercado de ações norte-americano, quando estas não fornecerem dados de auditorias contábeis. Assim, as companhias chinesas que operam na Bolsa, como o grupo Alibaba, deverão cumprir as determinações das autoridades norte-americanas, ou serão obrigadas a se retirarem do mercado de ações do EUA até 2022.
Dois aspectos são importantes no pano de fundo do caso TikTok.
O primeiro deles é a dimensão que as regulações de segurança nacional têm adquirido na condução das políticas econômicas do governo Trump, ampliando a interferência do Estado na concorrência entre as corporações chinesas e americanas. O outro é que a disposição de Trump de aprofundar as tensões com a China, por meio de uma guerra comercial e tecnológica e da pressão para cooperação de aliados, no contexto de corrida eleitoral, terá efeitos importantes na política internacional.
* Edna Aparecida da Silva é professora da FFC/UNESP e pesquisadora do INCT-INEU. E-mail: ednasilva@ineu.org.br.
** Recebido em 18 de agosto de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.