As armas de Trump: construindo inimigos com fake news e teorias conspiratórias
Crédito da imagem: Rick Loomis/Getty Images
Por Renata Peixoto de Oliveira*
Em Como as democracias morrem, fica evidenciado que o comportamento político do presidente Donald Trump está refletido nos quatro indicadores de comportamento autoritário elencado pelos autores, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Seriam eles: a rejeição às regras do jogo democrático; a negação da legitimidade dos oponentes políticos; tolerância, ou encorajamento, à violência; e propensão a restringir liberdades civis dos oponentes, incluindo a mídia. A própria obra – que se tornou, em pouco tempo, um referencial para os estudos sobre as crises das democracias no mundo contemporâneo – teve seu momentum a partir dos impactos da eleição de Donald Trump no sistema político dos EUA, em 2016.
Desde que o magnata republicano chegou ao cargo mais importante do planeta, o termo fake news se popularizou. Ao mesmo tempo, tornou-se mais forte a relação entre esta prática cada vez mais comum e perigosa e uma visão conspiracionista. Trump e seus apoiadores já vinham adotando estas estratégias para minar o campo político adversário desde que ele era candidato à Casa Branca, no referido ano.
À época, setores conservadores de oposição causaram polêmica quando levantaram questionamentos sobre o nascimento de Barack Obama – algo que tentam repetir com a atual vice na chapa democrata, a senadora e ex-procuradora-geral da Califórnia, Kamala Harris (D-CA). “Seria ele [Obama] um de nós?”: esta é uma pergunta propositadamente dúbia que reflete, ao mesmo tempo, a dúvida feroz lançada em torno da legitimidade do mandato de um presidente que não poderiam assegurar ter nascido nos EUA, mas que também carrega em si a negação e o sentimento de falta de representatividade por ser um mandatário afro-americano.
Uma das questões que abalaram as relações entre democratas e republicanos e, ao longo das décadas, distanciaram os partidos, definiram ideologias e posicionamentos e polarizaram as disputas, foi a maior adesão do voto hispânico e do voto negro à sigla democrata. A eleição de Obama em 2008 teria sido a gota d’água para os setores mais conservadores e o impulso necessário para uma maior radicalização e estratégias que minaram a própria democracia americana e que nos ajudam a entender a eleição do “republicano de última hora” – o outsider Donald Trump.
O “Q” da questão conspiratória
Criado em 2017, o grupo QAnon, ou simplesmente Q, ganhou notoriedade nestes últimos anos, o que ressalta a relevância do debate sobre as teorias da conspiração como constante nos discursos de grupos conservadores que conformam a base de apoio do presidente republicano. Existe uma forte vinculação entre participantes deste movimento e Trump que, além de já ter retuitado diversas vezes os posts do grupo em seu perfil, compartilha os mesmos elementos discursivos sobre diferentes temas. Os slogans facilmente reconhecíveis do movimento Q são: “Nós somos Q” e “Aonde um vai, vão todos”.
Torna-se cada vez mais evidente que Trump compartilha dos posicionamentos do grupo e contribuiu para disseminar as visões do mesmo sobre diferentes questões. O inverso é igualmente válido, já que o grupo o reconhece como seu representante legítimo no poder. Ambos externalizam responsabilidades e culpas, contribuem para a construção de uma retórica alarmista e do medo de ameaças constantes, além de enaltecerem comportamentos narcisistas e ególatras.
A criação de inimigos e a ideia de um Estado profundo, conspirador e responsável pela erosão dos princípios da nação americana, estão na base ideológica deste movimento que se expandiu e se fortaleceu ao longo do mandato do empresário nova-iorquino. É bem verdade que a lista de inimigos de Trump, supostamente oriundos do chamado Deep State, aumentou de forma considerável em meio à pandemia. Agora, abarca o coronavírus, os chineses, os trabalhadores de saúde, governadores, ou a Organização Mundial da Saúde (OMS). Somam-se, assim, a velhos adversários, como a imprensa e o Partido Democrata, sendo este último a expressão do “perigo socialista” na sociedade americana.
Estima-se que, hoje, contando grupos, perfis, páginas e comunidades nas mais populares redes sociais, cerca de quatro milhões de pessoas sejam simpatizantes e apoiadores(as) do grupo e de suas teorias. Recentemente, muitas destas contas foram fechadas no Twitter por disseminarem notícias falsas, teorias conspiratórias e alardearem discursos de ódio.
Grupos como o QAnon protagonizaram episódios polêmicos como as acusações feitas à Hillary Clinton, no que ficou conhecido como Pizzagate. Esta é, aliás, uma das teorias conspiratórias mais fortes do grupo. Segundo seus integrantes, uma rede de pedofilia e de tráfico sexual funcionava nos fundos de uma pizzaria, tendo a política democrata como chefe desta organização criminosa.
Tudo teve início quando foram vazados e-mails entre a ex-secretária de Estado e seu então coordenador da campanha à Presidência em 2016, John Podesta. À época, os conspiracionistas disseram que as mensagens estavam cifradas, repletas de códigos que tentavam camuflar o real teor da conversa: uma rede de prostituição e de pedofilia vinculada à classe política e liderada por democratas. Estas acusações infundadas levaram um cidadão ligado ao grupo a realizar uma viagem de carro até Washington e invadir a suposta pizzaria armado. O atirador foi rendido pela polícia sem maiores consequências, desta vez, expondo, no entanto, os potenciais riscos e consequências da propagação destas interpretações da realidade.
Um dos canais de disseminação destas teorias conspiratórias e dos discursos de ódio e de fake news é o Infowars.com, de Alex Jones. Além do canal de notícias falsas, duvidosas, alarmistas e tendenciosas, ele administra uma loja virtual que vende itens que são promovidos por meio desta rede de notícias falsas, ou de uma visão apocalíptica do fim dos tempos, que estaria cada vez mais próximo.
Kits de sobrevivência, em caso de uma hecatombe nuclear, e medicamentos, como estimulantes sexuais, estão entre os sucessos de vendas. Os temas recorrentes do site são a defesa da abertura do comércio, do fim da quarentena, do retorno às aulas, da ineficácia do uso de máscaras e do distanciamento social, além do forte discurso contra imigrantes, contra o movimento Black Lives Matter e contra políticos(as) democratas.
Religião, política e cenário eleitoral
Esta relação entre valores cristãos e o destino político da nação parece ser uma constante. Em 2019, estreou na Netflix a minissérie The Family: Democracia Ameaçada, baseada no livro de Jeff Sharlet, intitulado The Family: The Secret Fundamentalism at the Heart of American Power. Sharlet pertenceu a esta organização, a International Fellowship, que possui estreito vínculo com a elite política estadunidense e organiza, todos os anos, o tradicional National Prayer Breakfast. O evento conta com a presença do presidente dos EUA e da nata política do país.
Trata-se de uma organização praticamente secreta, de caráter religioso, cristão, que busca fortalecer laços com políticos proeminentes e governos nos EUA e em outros países. Surgiu nos idos da década de 1930, e seu líder proeminente foi Doug Coe. Na imagem, ele aparece (ao fundo) com Ronald Reagan, nos anos 1980.
Mesmo assim, a atuação da família e do QAnon é bastante distinta à luz dos holofotes. Primeiramente, porque a “família” procura estreitar laços independentemente da fé professada, da ideologia política, ou do vínculo partidário, sendo bem mais fisiológica, enquanto os “Q” são mais sectários, estridentes e propagam um discurso muito distante de qualquer tipo de conciliação. Isto já se evidencia no cenário eleitoral de 2020.
Além de inúmeros candidatos e candidatas serem vinculados ao QAnon, o grupo e Donald Trump começaram a propagar teorias conspiratórias, envolvendo o próximo pleito eleitoral. A ação se mostra como uma evidente e desesperada tentativa de deslegitimar uma possível vitória democrata nas urnas, em um cenário pouco favorável ao presidente em função da crise econômica e da gestão frente à pandemia.
Trump começou a afirmar que é grande a possibilidade de ocorrência de fraudes eleitorais e que a votação pelos correios é um fator determinante para macular as eleições. Este discurso não é novo e reforça outras alegações, também comuns neste meio, sobre a ilegalidade do voto exercido por imigrantes, os votos de pessoas já falecidas e até a existência de ônibus pagos pelos adversários para levar eleitores de outras circunscrições para votar em outro estado e influenciar o colégio eleitoral. Em 2017, Gregg Philips, notório apoiador de Trump já tinha ganhado projeção nacional ao destacar a tese da fraude eleitoral sem nunca ter conseguido apresentar provas nesse sentido.
Em 2020, teorias conspiratórias e polarizações continuam a dar a tônica em mais um pleito eleitoral na Terra do Tio Sam e ainda não podemos mensurar o quão decisivo isto será na corrida pela Casa Branca.
* Renata Peixoto de Oliveira é pesquisadora do INCT-INEU e doutora em Ciência Política pelo DCP-UFMG. Professora do curso de Relações Internacionais e Integração e dos programas PPG-ICAL e PPG-PPD da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), é líder do grupo CESPI-América do Sul e membro do grupo DALC-ALACIP.
** Recebido em 13 ago. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.