China e Rússia

A dança da Austrália com dois parceiros rivais entre si

O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, tentou recentemente enfatizar a profunda ligação da Austrália com os EUA sem irritar a China (Crédito: © Shutterstock)

Por Solange Reis*

O que Steve Bannon tem em comum com o casal chinês formado por um jogador de futebol aposentado e uma ex-campeã de badminton? A vontade de derrubar o Partido Comunista Chinês e estabelecer o Novo Estado Federal da China. Esse trio também pretende aproveitar as mais recentes rusgas entre China e Austrália para ganhar adeptos junto à diáspora chinesa em território australiano.

A Austrália sofre um problema relativamente comum do século atual. Sua dependência econômica da China conflita com os interesses dos Estados Unidos, que é seu maior aliado estratégico. Ser amiga de dois países rivais entre si e aliada de apenas um deles poderá custar caro no longo prazo. Se isso não chega a ser uma escolha de Sofia, tampouco é uma trivialidade de política externa.

Basta seguir o noticiário na Austrália, ou acompanhar os artigos e debates acadêmicos, para entender que essa é sua grande questão internacional. Quase diariamente, a mídia aborda o delicado equilíbrio, ao qual o país se submete. Filmes e séries de TV refletem o mesmo drama – o governo australiano é representado como o parceiro júnior de ambas as potências. Os chineses, como grandes espiões, e os americanos, como chantageadores implacáveis. Na ficção, a Austrália tende a ceder à Casa Branca. Na vida real, as coisas se complicam. Desagradar aos americanos pode tornar a Austrália mais indefesa no futuro, mas abrir mão dos chineses significa um baque econômico agora.

Com o aumento da rivalidade sino-americana durante o governo Trump, o dilema australiano se aprofunda. Além do mais, há um aspecto geopolítico. Por sua localização geográfica, tradição militar-diplomática e pretensões de potência média, a Austrália desempenha um papel nada neutro em uma região propensa a ser palco de conflito bélico entre as duas maiores potências atuais.

“Tucanando” a China

Os ex-esportistas Hao Haidong e Ye Zhaoying, que vivem atualmente na Espanha, defendem o fim do regime comunista, chamam o governo chinês de terrorista e o acusam de lançar uma guerra biológica por meio do coronavírus. Considerado a maior estrela da história do futebol chinês, Hao diz ter o apoio de Bannon para o que ambos consideram a necessidade de democratização do país.

Em uma longa entrevista para o Asia Times, Bannon confirmou ser conselheiro do “novo governo chinês”. No ano passado, Bannon disse que a Austrália precisava ser mais dura com a China. O americano é um elo importante na máquina de notícias falsas propagadas pela extrema-direita global. Depois de sair do governo Trump, o qual ajudou a eleger, dedicou-se a fortalecer partidos e candidatos extremistas em outras partes. É notória sua influência sobre o clã Bolsonaro, no Brasil, e sobre grupos autoritários semelhantes na Europa.

Hoje, Bannon opera novamente nos Estados Unidos para tentar impedir uma possível derrota de Trump nas urnas. Embora o truque seja um pouco batido, o marqueteiro espera colocar a pandemia, a crise econômica e qualquer outra mazela na conta da China.

Bannon, Hao e Ye não estão sozinhos, nem descapitalizados. O movimento pela refundação da China foi inaugurado, em junho, com investimentos do bilionário Guo Wengui. Há quatro anos, esse investidor fugiu da China sob acusação de lavagem de dinheiro, fraude, sequestro e estupro. Em 2018, contratou Bannon para desenvolver estratégias de comunicação contra o Partido Comunista e o presidente Xi Jinping. Guo alega já ter gastado 100 milhões de dólares em investigações sobre corrupção do governo chinês. O FBI apura, no entanto, a possível origem fraudulenta desse dinheiro.

No final de julho, Guo e Hao se juntaram a outros separatistas que vivem em Sydney para navegar na onda de tensão entre Austrália e China. Reunidos diante do consulado chinês, os manifestantes visavam a conscientizar membros de sua comunidade sobre a causa. Essa campanha opera sob a marca Himalaya Australia. Segundo uma de suas líderes, cujo pseudônimo é Hong An, cada vez mais pessoas de origem chinesa despertam para o fato de o Partido Comunista ser muito menor do que o Novo Estado Federal da China. Outra integrante da organização alega que a tensão entre Austrália, Estados Unidos e China favorece o movimento pró-democracia.

Dois amigos, um aliado

A situação australiana cria dois grupos nacionais de política externa. Os partidários, que defendem a lealdade permanente aos Estados Unidos, ao tratado de defesa e segurança, ANZUS, e à cooperação em espionagem global. Já os independentes apoiam um caminho autônomo e pragmático. A escola partidária é majoritária e inclui adeptos de todos os campos políticos. Os independentes abrangem a parcela mais à esquerda, poucos moderados e uns gatos pingados da direita nacionalista.

O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, pertence ao grupo partidário. Mas, como tantos antes dele, faz o exercício diário de equilíbrio na corda bamba. Uma ginástica que exige jogo de cintura e implica riscos. Recentemente, ele disse que tanto os Estados Unidos quanto a China devem ter uma “responsabilidade especial de respeitar o direito internacional”, deixando implícito que o governo americano também viola as regras. Mais tarde, porém, admitiu que uma guerra entre Austrália e China já não é um cenário tão pensável.

A crença na probabilidade de guerra talvez seja a razão de o governo planejar um aumento de 40% em gastos militares nos próximos dez anos. O valor de 270 bilhões de dólares australianos (quase US$ 200 bilhões) incluiria a compra de sistemas antimísseis, submarinos, entre outros equipamentos bélicos. Tudo para enfrentar um ambiente regional que o establishment considera em deterioração. O primeiro-ministro também disse que a Austrália preferirá autonomia aos interesses econômicos, no que parece ser um recado para os chineses.

A Austrália irá modificar o Livro Branco de Defesa, reorientando a abordagem global para um foco específico na região Indo-Pacífico, sobretudo, a parte mais ao sul. Segundo o governo, o objetivo é garantir a área de influência contra o avanço da China. Entende-se por zona de influência alguns países no Sudeste Asiático, Papua-Nova Guiné, Vanuatu e ilhas no Pacífico, entre outros. Embora seja um gesto de interesse nacional, adequa-se às preferências de seu maior aliado. Para os Estados Unidos, hoje é mais útil ter a Austrália envolvida nesses locais do que nas desventuradas guerras sem fim, no Afeganistão e no Iraque.

Parte do objetivo americano e australiano é barrar a Nova Rota da Seda, a grande estratégia de investimentos intercontinental da China, nesses países do Pacífico. Alguns são até disputados como pontos estratégicos. Em 2018, Estados Unidos e Austrália assinaram um acordo com a Papua-Nova Guiné para desenvolver a base naval de Lombrum, na ilha Manus, e projetos de infraestrutura social. Dois anos depois, o governo local diz que o acordo não foi cumprido. Cancelar o compromisso abriria espaço para negociações com a China, que sonha em ter uma base militar nessa sub-região.

Em julho, Estados Unidos e Austrália fizeram uma declaração conjunta que desagradou fortemente ao governo chinês. Os temas sensíveis passavam pela disputa em torno do 5G, a autonomia de Hong Kong, o tratamento ao povo uigur por parte da China e o apoio e inclusão de Taiwan na chamada comunidade internacional. Ainda mais significativo foi a Austrália ter abandonado a neutralidade oficial que mantinha acerca das disputas no Mar do Sul da China. Acompanhando o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, o governo australiano agora considera as pretensões chinesas na região como ilegais.

O governo chinês tende a reagir com notas de repúdio, recomendações para que sua população evite viajar para a Austrália e outras medidas leves. De vez em quando, como fez recentemente com a carne, reduz a compra de algum produto australiano, ou assume um tom mais incisivo. Até hoje, tem-se comportado como um dragão desdentado, quando se trata de punir seu maior parceiro júnior na Oceania. Nada garante que sempre será dessa forma.

Destino voluntário

Cada vez mais, a Austrália se vê envolvida em uma disputa, na qual tem tudo a perder. Sua relação com a China sempre foi de desconfiança, mas a aproximação entre Washington e Pequim, nos anos 1970, abriu novas perspectivas. Juntamente com o fim da política “Austrália Branca”, em 1966, isso ajudou a impulsionar a imigração de chineses. Depois da indiana, a diáspora chinesa representa hoje o segundo maior grupo de estrangeiros vivendo na Austrália.

Desde a ascensão econômica da China, a ligação entre eles só aumentou. Além de os laços econômicos serem fortes, o que inclui um acordo de livre-comércio, os dois países desenvolveram uma parceria estratégica abrangente que perpassa outras áreas de colaboração. A aproximação, no entanto, sempre incomodou diversos governos americanos.

A China é o principal destino das exportações australianas, principalmente de commodities minerais. É também sólida fonte de investimentos em educação, saúde, imóveis, entre outros. No ano passado, no entanto, os investimentos caíram 58%, refletindo a piora na relação, troca de animosidade e perda de confiança por parte dos chineses. Isso por conta de um ambiente crescentemente hostil para pessoas de origem chinesa e pela intenção do governo de Scott Morrison de rever a política de investimentos externos, em 2021. É importante destacar que os Estados Unidos são sua principal fonte de investimento, não a China, que ocupa um longínquo nono lugar.

Já a Austrália exporta muitos serviços para a China, sobretudo, nas áreas de educação e turismo. Universidades e outras instituições de ensino contam com as mensalidades e anuidades pagas por estudantes chineses. Esse faturamento ajuda não apenas nos gastos gerais, mas no custeio e no financiamento do ensino superior para cidadãos e residentes australianos.

Essa dinâmica tem sido prejudicada pelo ruído nas relações diplomáticas entre Pequim e Camberra. Com o aumento do preconceito contra chineses, inclusive nas próprias escolas e universidades, tanto o governo quanto as famílias chinesas vêm desaconselhando seus jovens a estudarem na Austrália.

Menos oferta de estudantes chineses significa redução na mão de obra barata para os serviços de baixa qualificação, além de impactar negativamente o mercado imobiliário. O turismo, outra fonte de renda relevante, também fica prejudicado. São os chineses de classe média alta, entre outros asiáticos, que aquecem o mercado australiano de artigos de luxo. Recentemente, o governo chinês decidiu desestimular viagens de lazer para a Austrália e sugeriu um boicote velado a produtos australianos. Tudo em retaliação às declarações de Marise Payne, ministra das Relações Exteriores, que incentivou investigações independentes para saber a origem do coronavírus.

Aqui, a história se entrelaça com Bannon e Guo, criadores de conteúdo anti-China. Além de vídeos e material para a imprensa, os dois relançaram um instrumento da Guerra Fria. O Comitê sobre o Perigo Presente, agora sob a marca Committee on the Present Danger – China/CPD-C, é uma espécie de think tank histriônico para difundir a ideia de que a China representa uma ameaça ao Ocidente. Acusar a China de criar o coronavírus em laboratório tem sido um mantra dos fundadores do Novo Estado Federal da China.

Para americano ver

O que faz a Austrália colocar em risco sua relação com a China é uma tradição de alinhamento quase incondicional com Washington. Os australianos participaram de todas as guerras dos Estados Unidos nos últimos 100 anos. Seu território sedia várias instalações militares avançadas do grande aliado. Na condição de jovem monarquia que nega sua origem aborígene e tem pouco a se orgulhar do passado como colônia, o país viu na participação militar junto aos europeus e americanos uma espécie de passe para o clube do Ocidente desenvolvido. Fato esse que continuou, mesmo depois que o país viu sua economia crescer ininterruptamente nos últimos 28 anos.

É tal questão identitária e a narrativa sobre insegurança –  que tem na China a principal percepção de ameaça – o que torna sua política externa ambígua e arriscada. De um lado, um grande parceiro comercial. Do outro, a maior potência militar. Ambos rivais entre si. Trata-se de um dilema existencial que permeia as ações políticas e o imaginário popular, embora a Austrália tenha outras escolhas menos divisivas. Como as da Nova Zelândia, que compartilha um passado semelhante com a Austrália, mas perseguiu uma trilha mais autônoma nas últimas décadas.

A ambiguidade australiana é facilmente explicável, pois são muitos os interesses em jogo. Eleitores mais conservadores são reativos à aproximação com a China e tendem a ver os Estados Unidos como salvadores em última instância. Em plena pandemia, a intolerância foi mais perceptível. Já os exportadores temem que um choque diplomático com Pequim ponha a perder um mercado de ouro que os Estados Unidos não conseguem suprir. Um dos principais produtos de exportação da Austrália, o gás liquefeito, concorre diretamente com o americano.

Ao contar essa história, muitas perguntas ficam pelo caminho. Seria a China realmente uma ameaça para a Austrália? Estariam os Estados Unidos dispostos e capazes de proteger os australianos contra agressões externas? E se as farpas não passarem de uma espécie de prática tácita entre Pequim e Camberra, alimentando a retórica apenas para americano ver?

Independentemente de Donald Trump ser ou não reeleito, a trama na “land down under” não parece estar perto de acabar. De fato, Trump foi a chance de autonomia que a Austrália desperdiçou. Uma possível eleição de Joe Biden melhorará a qualidade da relação australiana com os Estados Unidos. E, em tempo de mudança sistêmica no mundo, quanto mais perto de um parceiro forte, mais distante do outro. O problema é que, quando o inimigo do melhor amigo também é seu amigo e ainda ajuda você a pagar as contas, a corda fica ainda mais bamba. Como sugere a revista The Economist, um dos principais veículos liberais de comunicação, “A força da economia capitalista de Estado da China, de 14 trilhões de dólares, não pode ser desprezada. Está na hora de abandonar essa ilusão”.

 

* Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu).

** Recebido em 16 de agosto de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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