Brasil

Responsabilizar, ou não responsabilizar: a condição de chefes de Estado no direito internacional penal

Secretário de Estado, Mike Pompeo (centro), fala sobre a ordem executiva do presidente a Trump sobre o TPI, em entrevista coletiva com o procurador-geral dos EUA, Bill Barr (à esq.), o secretário da Defesa, Mark Esper, e o conselheiro de Segurança Nacional, Robert O’Brien (último à dir.), em 11 de jun. 2019 (Crédito: Yuri Gripas/Reuters)

Por Hannah De Gregorio Leão*

Na noite de outubro de 1998, Augusto Pinochet, então senador vitalício e antigo ditador chileno, foi preso em Londres, pela Scotland Yard, durante viagem para realizar tratamentos médicos. Um ano depois, em 1999, o ex-presidente da antiga Iugoslávia Slobodan Milosevic foi indiciado, extraditado e preso, após grandes manifestações políticas que o tiraram de seu cargo na Iugoslávia alguns anos antes. Em 2003, o então presidente da Libéria, Charles Taylor, foi indiciado e extraditado, enquanto se preparava para fugir de sua detenção. Em 2015, o presidente sudanês, Omar al-Bashir, foi detido na África do Sul, depois de fracassadas tentativas de prisão em outros países dos continentes africano e asiático, enquanto participava da Conferência da União Africana.

Apesar de terem uma separação temporal de 17 anos e de representarem momentos históricos distintos, os casos de Pinochet, Milosevic, Taylor e Al-Bashir possuem um ponto de convergência essencial para o direito internacional penal: a possibilidade de antigos e atuais chefes de Estado serem responsabilizados individualmente por crimes internacionais, elencados no artigo 5º do Estatuto de Roma (crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão). Pinochet – em período anterior à existência do Tribunal Penal Internacional (TPI) – e Al-Bashir foram acusados de crimes contra a humanidade. Já Milosevic foi acusado de cometer crime de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, enquanto Taylor foi acusado de ter cometido estes dois últimos.

Ponto de inflexão

Remontando ao Tribunal de Nuremberg, o primeiro tribunal internacional penal e que inaugurou o direito internacional penal, compreende-se que a responsabilização de membros de governos, atuais e antigos, é um tema central no direito internacional, sendo que sua possibilidade fática se tornou um mecanismo essencial para a prevenção e responsabilização por graves crimes internacionais. Apenas o caso de Milosevic, porém, em 1999, trouxe um importante primeiro ponto de inflexão para o direito internacional penal: a possibilidade de chefes de Estado serem acusados e responsabilizados por crimes internacionais perante um tribunal criminal internacional. A partir de então, compreendeu-se que as imunidades diplomáticas e de chefes de Estado não poderiam mais ser alegadas como barreiras à responsabilização criminal.

Ressalta-se, ainda, que o Tribunal Penal Internacional foi estabelecido por meio do Estatuto de Roma, no mesmo ano da detenção de Pinochet (1998), demonstrando uma importante influência indireta do caso para o surgimento desse órgão. No caso de Pinochet, a International Commission of Jurists afirmou que a imunidade diplomática de chefes de Estado não pode gerar impunidade. Além disso, o Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (TPII) declarou, no caso de Milosevic, que um chefe de Estado não pode utilizar sua condição oficial e imunidades diplomáticas como forma de impedir sua responsabilização criminal, sendo este um entendimento embasado no direito costumeiro internacional.

O artigo 27 do Estatuto de Roma determina que a condição da qualidade oficial e suas imunidades decorrentes são irrelevantes e não são fatores impeditivos para a aplicabilidade da jurisdição do TPI. Entretanto, apesar de a responsabilização de chefes de Estado por parte do TPI ser possível juridicamente, as consequências políticas adversas que podem vir a surgir diante de tal cenário fazem com que, na jurisprudência e na doutrina do direito internacional penal, exista a discussão sobre os limites de tal responsabilização no âmbito prático. As instabilidades sociais e políticas domésticas e internacionais decorrentes do julgamento e prisão de um chefe de Estado atual e, até mesmo, antigo, fazem com que a ocorrência de tais casos no TPI seja extensamente analisada.

Nesse sentido, o Estatuto de Roma dispõe, em seu artigo 98, que o Tribunal pode não dar seguimento a um pedido de entrega de um acusado, ou de auxílio, caso o Estado requerido precise, para tal, violar suas obrigações perante o direito internacional, especialmente com relação à imunidade dos Estados e das imunidades diplomáticas do indivíduo denunciado criminalmente. Este artigo expressa os receios nos casos de um Estado requerido precisar prender e entregar um chefe de Estado de um terceiro país e de passagem em seu território para cumprir sua obrigação de cooperar com o TPI, de acordo com o artigo 89 do Estatuto de Roma.

No caso de Omar al-Bashir, determinados Estados do continente africano foram acusados de não cooperarem devidamente com o TPI pelo fato de não terem apreendido Al-Bashir no momento em que viajou para seus territórios. Entre eles, está o Congo, que temia uma repreensão e deterioração de suas relações diplomáticas com o Sudão e perante os demais Estados da União Africana, caso efetuasse a prisão do Chefe de Estado sudanês. Entretanto, ressalta-se que o artigo 98 do Estatuto de Roma não pode ser utilizado como forma de os chefes de Estado se eximirem da jurisdição do TPI.

Parte da doutrina considera que chefes de Estado somente poderiam ser processados e acusados de responsabilização criminal individual em casos, nos quais o Conselho de Segurança, e não um Estado parte, efetua a denúncia diretamente ao TPI, assim como previsto no artigo 13 (b) do Estatuto de Roma. Ressalta-se que, no caso de Omar al-Bashir, o Conselho de Segurança o denunciou para o TPI quando este ainda era presidente sudanês, nos anos de 2009 e 2010, fator que gerou uma maior segurança jurídica para sua detenção e posterior julgamento.

Ademais, deve-se ressaltar que, para que haja a responsabilização criminal individual perante o TPI, existem requisitos jurídicos que devem ser avaliados para a caracterização do tipo penal. No caso dos crimes contra a humanidade, existe uma taxonomia para a classificação desses crimes, estabelecida em doutrina, que deve ser correspondida para a qualificação do delito, em conjunto com as características elencadas no artigo 7º do Estatuto de Roma.

Nos casos de crimes contra a humanidade, existem três elementos principais para a configuração do crime, sendo eles: o assassinato, pelo perpetuador, de uma ou mais pessoas; a conduta ser praticada como parte de um ataque generalizado, ou sistemático, contra a população civil; e o perpetuador ter consciência de que suas condutas fizeram parte desse ataque generalizado, ou sistemático, contra a população civil. Ressalta-se, porém, que, a depender da tipificação específica do crime contra a humanidade, dentre as possibilidades elencadas no artigo 7º, esses elementos podem variar.

Portanto, não se trata de uma definição estática de crime, sendo que seus elementos de tipificação podem variar caso a caso, tornando sua aplicação fática pelo TPI um exercício jurídico árduo e raro. No caso do crime de genocídio, existem dois elementos que devem ser considerados para sua tipificação criminal: o elemento mental (a intenção de exterminar determinado grupo nacional, étnico, ou religioso) e o elemento físico (que inclui atos como matar e causar sérios danos físicos e mentais ao grupo determinado).

Estados Unidos e Brasil

Em junho de 2020, o governo norte-americano novamente estabeleceu sanções contra funcionários do TPI em sua jurisdição. Isso já havia ocorrido em 2019, diante do receio de Washington em meio às investigações sobre os supostos crimes de guerra cometidos por funcionários e soldados norte-americanos na guerra do Afeganistão, tendo em vista a demora injustificada e a inefetividade das investigações domésticas norte-americanas nesse sentido. Trata-se de um fato que evidencia a relação problemática dos Estados Unidos com o TPI, já que, apesar de terem assinado o Estatuto de Roma em 1998, os Estados Unidos não o ratificaram. Isso significa que, apesar de terem cooperado para a criação do TPI, não se tornaram um Estado parte do Estatuto, não sendo vinculado juridicamente às suas normas.

Nesse caso, há similaridade com relação à Corte Internacional de Justiça (CIJ), tendo em vista que, após o desfecho do caso envolvendo a Nicarágua, os Estados Unidos derrogaram o artigo 36 (2) do Estatuto da CIJ, o qual determina a jurisdição compulsória da Corte sobre seus Estados membros. Ressalta-se ainda que, em 2018, o presidente norte-americano, Donald Trump, declarou expressamente na Assembleia Geral das Nações Unidas que os EUA não reconhecem e não promoverão nenhuma forma de cooperação ao TPI.

Em matéria de jurisdição de tribunais internacionais, os Estados Unidos se encontram em posições estrategicamente cinzentas: existem limitações jurídicas tanto com relação à jurisdição internacional sobre indivíduos norte-americanos, incluindo-se chefes de Estado e membros do governo (TPI), como sobre o Estado norte-americano (CIJ). No caso das investigações com relação às supostas violações norte-americanas no Afeganistão, porém, o TPI se utiliza de uma das formas possíveis de nacionais de Estados que não são partes do Estatuto de Roma serem responsabilizados. O artigo 12 (2) (b) do Estatuto de Roma prevê a hipótese de responsabilização por crimes cometidos em um território sob a jurisdição do TPI, ou seja, em um Estado que tenha ratificado o Estatuto de Roma, como o Afeganistão.

Ademais, no final de junho, o Irã decretou um mandado de prisão contra o presidente Trump, por causa do ataque de drones que levou à morte do general Qassem Soleimani, no mês de janeiro. Apesar de não se tratar de um mandado de um Tribunal internacional, mas proveniente da jurisdição doméstica iraniana, também se trata de medida que pretende afastar a proteção jurisdicional decorrente das imunidades diplomáticas de um chefe de Estado. As possibilidades de mandados de prisão domésticos contra indivíduos dotados de imunidades diplomáticas já foram analisadas pela CIJ, no caso Arrest Warrant of 11 April 2000, em que se declarou a ilegitimidade de um mandado de prisão da Bélgica contra o ministro das Relações Exteriores do Congo.

Em meio às investigações de violações cometidas por norte-americanos no Afeganistão, a jurisdição do TPI ainda foi requerida por demais denúncias de possíveis violações no decorrer da pandemia da COVID-19. Em junho passado, o TPI recebeu uma denúncia contra o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, alegando-se o cometimento de crimes contra a humanidade na resposta de seu governo à pandemia. Em 26 de julho, Bolsonaro ainda foi denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade novamente no mesmo Tribunal, também devido à sua gestão durante a pandemia. Vale destacar que, com relação à responsabilidade estatal, a primeira condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos foi pela violação do direito à vida no caso Ximenes Lopes v. Brasil, no qual a Corte repudiou as condições precárias do sistema de saúde brasileiro. Não se trata, portanto, de uma primeira denúncia internacional requerendo uma responsabilização (seja estatal, seja individual) pela precarização do sistema de saúde brasileiro.

Pelo fato de a tipificação de crimes contra a humanidade ser muito específica e desenvolvida, não sendo de fácil enquadramento, a ex-juíza do TPI Sylvia Steiner considera que, com relação ao presidente brasileiro, seria mais provável a hipótese de o TPI aceitar a admissibilidade da denúncia de crime de genocídio indígena feita em 2019, ainda em análise, do que a atual denúncia relacionada à COVID-19. De fato, dos 28 casos que o TPI julgou e julga até os dias de hoje, denúncias de crimes contra a humanidade ocorreram em 19 casos, sendo que, destes, somente os militares congoleses Germain Katanga e Bosco Ntaganda foram condenados por crimes contra a humanidade.

Destaca-se que um grande fator de dificuldade para a continuidade dos julgamentos no TPI ocorre pela ausência do acusado no tribunal, estando desaparecido em muitos casos, o que impossibilita a continuidade do fluxo do processo. Em junho deste ano, o TPI ainda recebeu uma denúncia contra o atual presidente do Kosovo, por crimes contra a humanidade e por crimes de guerra cometidos contra a Sérvia.

Dos desafios e novos paradigmas impostos pela pandemia do novo coronavírus, já se tornam evidentes as reconfigurações que estão sendo feitas e que se desenvolvem no sistema internacional. Nas novas tentativas de responsabilização internacional, sejam elas de âmbito estatal, ou individual, evidencia-se a reformulação do status quo inter-Estados nos questionamentos de antigas e novas ordens hegemônicas. Independentemente de seus resultados, sua existência, per se, demonstra o surgimento de novas formas de se pensar o internacional e, especificamente, a responsabilidade de chefes de Estado.

 

* Hannah de Gregório Leão é graduanda em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), membro do PILLS (Public International Law Litigation Society) PUC-Rio e pesquisadora do Programa de Educação Tutorial (PET) do Departamento de Direito da PUC-Rio na área de Direito Constitucional. Revisado por Tatiana Teixeira.

** Recebido em 2 ago. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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