Trump, Biden e uma eleição decisiva na Terra da Democracia
Crédito: Brandon Dill/Getty Images
Por Rafael R. Ioris*
Os Estados Unidos parecem estar mais uma vez frente a uma eleição de importância histórica que talvez não transcorra sem turbulência e, talvez, mesmo algum grau de violência. País que foi capaz de realizar eleições durante uma guerra civil na segunda metade do século XIX, cujo sistema político democrático é um dos mais importantes e históricos do mundo, os EUA, autointitulado terra da democracia, vivenciam hoje uma gravíssima crise sanitária, econômica e política. E o resultado da eleição de novembro próximo será decisivo para traçar os rumos do país, com consequências para o mundo como um todo.
Não é de hoje que o atual presidente norte-americano, Donald Trump, desafia os limites da institucionalidade democrática de seu país. Desde a demissão repentina do então chefe do FBI, James Comey, no início de seu governo, a perseguição política de detratores que depuseram ao favor do processo de impeachment no ano passado, a indicação de um procurador-geral que basicamente age como advogado pessoal do presidente e, por fim, o perdão a amigos condenados pela Justiça, Trump vem agindo para blindar investigações e perseguir oponentes, aprofundando a sensação de que as instituições não seriam capazes de limitar a vontade pessoal de um presidente crescentemente autoritário. Seria mesmo plausível supor que, caso chancelado nas urnas para mais um mandato, Trump venha a radicalizar sua lógica de governar somente para seu eleitorado cativo, polarizando ainda mais o sistema político e desgastando a legitimidade do mesmo.
Tendo esse cenário de crise mais ampla como pano de fundo, o presente Informe reflete sobre a eleição presidencial de novembro próximo nos EUA no sentido de apontar o que estaria em jogo no processo e seus principais desdobramentos. Para tanto, analiso, a seguir, o cenário geral do pleito, como os principais candidatos vêm-se mobilizando para o mesmo e, por fim, suas perspectivas e possíveis significados.
COVID-19 e como a pandemia se tornou a principal novidade do pleito
Mais do que qualquer outro elemento, as eleições de 2020 nos EUA serão influenciadas pelo impacto da COVID-19, tanto no que se refere às turbulências econômicas e políticas trazidas pela mesma quanto no que tange ao próprio processo de votação, sempre tão problemático naquele país. De fato, embora os EUA tenham uma tradição política de reeleger presidentes, a disputa de 2020 parece estar-se tornando uma na qual o candidato da oposição enfrentando um presidente que tenta a reeleição seria, hoje, o favorito.
Lembremos que Trump tinha os bons números formais de desemprego (em torno de 4% no início do ano) como o carro-chefe de sua reeleição, que era vista por muitos como quase certa. A chegada repentina e a dramática expansão da COVID-19 no país, que hoje apresenta os piores números de contágio e de mortes causados pelo vírus no mundo, claramente alteraram, e muito rapidamente, esse cenário e, assim, os planos de reeleição do atual mandatário do país.
Hoje, os Estados Unidos têm uma taxa de desemprego de cerca de 15%, a economia se retraiu em pelo menos um terço desde o início do ano, e 25% da mão de obra ativa teve de recorrer ao seguro-desemprego nos últimos quatro meses.
Dentro desse cenário desastroso, que tenderá a se agravar dado que o nível de contágio pela pandemia tem-se agravado nas últimas semanas, especialmente em estados populosos, como Texas e Flórida, não surpreende que o candidato da oposição do Partido Democrata, o ex-vice-presidente Joe Biden, venha mantendo uma vantagem de cerca de 10% frente a Trump em diversas sondagens eleitorais ao longo das últimas seis semanas.
Democratas e o resgate de uma agenda mais progressista
Seria importante notar que, apesar da sua idade avançada e de ter sido um político moderado ao longo de toda sua carreira, Biden representa hoje o que poderíamos definir como o novo e, talvez mesmo, o candidato veículo de mudança histórica em seu país. De fato, a pandemia da COVID-19 e seu enorme e desigual impacto social parecem ter aberto o cenário onde forças progressistas em ascensão dentro do Partido Democrata vêm conseguindo ter mais espaço na defesa do papel do Estado na economia e na expansão de projetos sociais de redução da desigualdade.
De maneira concreta, Biden se apropriou do foco econômico nacionalista da agenda da eleição de Trump em 2016 ao anunciar que, se eleito, destinará cerca de US$ 400 bilhões na promoção de cinco milhões de empregos industriais a serem criados em casa. Sob o slogan “Build Back Better”, o candidato democrata propõe também uma ambiciosa agenda de criação de empregos em indústrias ambientalmente sustentáveis, assim como uma maior taxação dos setores mais ricos da sociedade e a expansão da rede de proteção social, especialmente entre crianças e idosos.
Assim, apesar de não ser um candidato a quem se atribuam características claras de carisma, ou mesmo empolgação, Biden vem, interessantemente, consolidando-se, de maneira sutil mas continuada, como alguém capaz de unir seu partido de forma mais forte do que na última eleição presidencial. Assim, estaria conseguindo juntar alas mais tradicionais com grupos mais à esquerda, como os apoiadores de Bernie Sanders, que já expressou apoio claro ao ex-vice-presidente.
Apesar da quase inexistente campanha até o momento (já que o candidato tem permanecido quase que exclusivamente em casa durante a pandemia), a trajetória de Biden dentro de seu partido, assim como no eleitorado mais amplo, parece estar-se encaminhando para um bom resultado em novembro. É importante apontar que nada está definido e que Biden tem, sim, desafios pela frente.
Para ganhar, Biden precisará ter o apoio de setores mais progressistas e, ao mesmo tempo, dos mais moderados da sociedade norte-americana. A tarefa é sempre difícil, especialmente em um momento de polarização clara como o atual, quando centenas de milhares de pessoas têm ido às ruas protestar por direitos humanos e por um tratamento digno para com as minorias étnicas por parte das forças policiais.
Trump certamente precisa da reeleição – até para continuar a ter a imunidade legal que hoje o ajuda a impedir várias investigações a respeito de seus negócios e mesmo atividades políticas de campanha e como presidente eleito. Sua estratégia de campanha da reeleição será, como veremos a seguir, no intuito de forçar uma polarização ainda maior, com vistas a fazer setores mais moderados desistirem de apoiar Biden.
Trump e o resgate do candidato da “Lei & Ordem”
Donald Trump sempre foi um político polarizador. Desde o lançamento de sua candidatura até sua Presidência em 2015, quando chamou imigrantes de estupradores, estabelecendo assim o tom xenófobo e agressivo da campanha, o empresário nova-iorquino sempre buscou dividir o eleitorado. Seu objetivo: ser escolhido pelos setores mais conservadores e racistas, ainda que não necessariamente a maioria, dado o caráter idiossincrático (e não democrático) do processo de seleção dos presidentes naquele país – onde o candidato precisa ganhar no colégio eleitoral, e não no voto popular.
Essa lógica de aprofundamento das divisões ideológicas da sociedade tem-se mantido ao longo de todo governo de Trump e parece, agora, estar em rápido processo de aprofundamento. Lembremos que Trump contava com bons índices econômicos para uma reeleição tranquila e que, na ausência dessa possibilidade, redireciona sua campanha para os aspectos ideológicos e culturais, sempre em disputa, mas agora assumindo uma centralidade ainda maior.
De maneira concreta, Trump tem-se referido aos protestos pelo fim da violência policial como radicais, violentos, racistas e organizados por bandidos – tom que destoou até mesmo do tratamento dado por políticos importantes do Partido Republicano, como o presidente do Senado, Mitch McConnel. Aprofundando a estratégia, Trump associou membros do Partido Democrata, que de fato expressaram apoio às demonstrações lideradas, em sua maioria, por membros diversos do grupo Black Lives Matter, afirmando que seriam políticos coniventes com demonstrações violentas e que, portanto, representam uma ameaça existencial ao país por quererem impedir o trabalho policial e permitir que grupos radicais negros e seus projetos subversivos se expandam no país.
Dentro dessa tônica, Trump parece estar buscando criar uma sensação de medo entre setores moderados da sociedade, que tendem a decidir as eleições presidenciais nos EUA, especialmente os de etnia branca que residem nos subúrbios de classe média das grandes cidades do país. De maneira efetiva, em comerciais da campanha para a reeleição, Trump tem acusado Biden de querer destruir os subúrbios de classe média ao querer forçar uma maior miscigenação por intermédio da criação de moradias coletivas e inter-raciais nesses bairros. Da mesma forma, Trump enviou tropas civis federais para diversas cidades do país, sob o pretexto de impedir que os protestos ainda em curso ajam de maneira violenta, iniciativa essa que, de forma irônica mas certamente planejada, tudo o que fez até o momento foi acirrar os ânimos e ampliar o nível de violência que, em geral, tinha existido.
Trump se apresenta, pois, como o candidato da Lei e da Ordem, reavivando um slogan usado por Richard Nixon para sua eleição em 1968, quando o país também enfrentava uma onda de protestos e vivenciava uma importante experiência de mobilização por justiça social, em meio à trágica experiência da Guerra do Vietnã. Embora essa estratégia tenha funcionado muito bem para o Partido Republicano no final dos anos 1960, e apesar do fato de Trump já ter vencido uma eleição com apoio de um eleitorado minoritário mas aguerrido em suas posições polarizadoras, parece arriscado apostar que se possa ganhar uma reeleição basicamente por meio da promoção do sentimento do medo.
Em 2016, cabe lembrar, Trump representava o candidato antissistêmico e, portanto, a novidade eleitoral daquele importante pleito – o que já não é o caso. Além disso, a maioria dos norte-americanos parece ter hoje mais medo da COVID-19 e do desemprego do que de uma maior presença multirracial nos subúrbios das grandes cidades, onde muitos moradores já são de origem não caucasiana. Sabendo, no entanto, que Trump já se demonstrou ser um bom estrategista, é importante prestar muita atenção ao que ele parece estar articulando e que os democratas não o subestimem.
2020, suas perspectivas e possíveis significados
Embora antecipar resultados de dinâmicas sociais complexas em curso seja sempre arriscado, algo que certamente se torna ainda mais intenso em meio a uma pandemia de escala global sem precedentes, talvez seja possível apontar alguns potenciais desdobramentos e, mais importante, seus possíveis significados.
Em primeiro lugar, cabe ressaltar novamente que a estratégia de campanha de Trump apresenta um relevante grau de risco. É, sim, compreensível que, sem bons resultados econômicos para mostrar, a campanha tenha sido forçada a encontrar rapidamente um novo foco. Também é compreensível que esse novo eixo seja o ideológico, ou cultural, algo que já vem pautando eleições nos Estados Unidos há cerca de meio século. Contudo, não parece certo que o eleitorado em geral venha a valorizar tais assuntos acima da temática econômica e especialmente da pandemia em curso.
Ainda que tenha-se beneficiado da incompetência e da polarização política provocada por Trump, pelo menos até agora, Biden também terá dificuldades pela frente. Entre elas, e em especial, a de manter sua base unida, no partido e na sociedade, conseguindo, ao mesmo tempo, empolgar alas mais progressistas, sem amedrontar setores moderados. A decisão de quem será a vice da chapa será chave nesse processo, embora se espere que, uma vez uma pessoa seja escolhida, apoiadores de outras venham a se frustrar inevitavelmente com dada escolha. É importante, pois, que os democratas não deem a vitória de seu candidato como certa e que lembrem que, em 2016, Hillary também tinha a vantagem nas sondagens de meio do ano.
Lembremos também que Trump poderá vir a ser eleito mais uma vez mesmo que não tenha maioria no voto popular – algo que certamente aprofundaria a crise da legitimidade do processo eleitoral nos EUA. Parece mesmo certo que o atual mandatário conte com essa discrepância já que seu partido tem feito várias tentativas para dificultar o voto pelo correio, especialmente em estados-chave, como Pensilvânia e Carolina do Norte.
É de se esperar, assim, que tenhamos uma eleição conturbada, com riscos de protestos ao longo e, talvez mesmo, especialmente após a conclusão do pleito. Pleito esse que, portanto, parece ter o potencial de definir, entre alternativas claras e divergentes, os rumos da política doméstica e mesmo internacional da maior potência militar do mundo para os próximos anos.
Ou o país retorna a algum grau de normalidade, enfrenta seus sérios problemas econômicos e sociais internos e resgata um engajamento internacional menos conflitivo, ou as fortes divisões em curso se aprofundarão ainda mais, com sérios riscos para a democracia norte-americana e talvez mesmo para a paz global.
* Rafael R. Ioris é professor da Universidade de Denver e pesquisador do INCT-INEU.
** Recebido em 7 ago. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.