O nadador e a maré: a provável política de Joe Biden para a China
Crédito da ilustração: Soohee Cho/The Intercept, Getty Images
Por Mateus de Paula Narciso Rocha*
Em meio à atuação desastrada do presidente Donald Trump na pandemia e às mais de 150 mil mortes por COVID-19, pesquisas indicam que o eleitorado americano preferiria o democrata Joe Biden nas eleições presidenciais. Em estados de disputa (battleground states) como Michigan, Wisconsin, Pensilvânia, Florida, Arizona e Carolina do Norte – nos quais Trump venceu em 2016 –, Biden tem vantagem significativa nas intenções de voto. Até no Texas, tradicional reduto republicano, a situação de Trump e de seu partido não é confortável. É nesse contexto que Trump aventa o adiamento das eleições. Sendo mais factível a vitória democrata, é oportuno considerar qual é a provável política de Biden para a China.
A leitura de Biden sobre a China: ameaça principal e frente unida
Ao longo da corrida eleitoral, Biden tratou da China em diversos momentos. Em discurso de 2019, criticou a falta de estratégia de Trump e afirmou: “Estamos em uma competição com a China. Precisamos ser duros com a China. Eles são um desafio sério para nós e uma ameaça real em certas áreas”. Na sequência, Biden elencou prioridades para os Estados Unidos se sobressaírem: (i) investir em pesquisa, infraestrutura e na força de trabalho nos Estados Unidos; (ii) construir uma frente ampla de aliados para desafiar o comportamento chinês; (iii) melhorar a proteção às empresas americanas para que suas tecnologias não sejam perdidas, ou roubadas; e (iv) encontrar áreas de interesse convergente para cooperar, como mudança climática e armas nucleares.
No início de 2020, Biden publicou o artigo “Why America Must Lead Again” na revista Foreign Affairs. Após diagnosticar que a credibilidade e a influência dos Estados Unidos diminuíram com Trump, ele propõe: reconstruir a imagem internacional do país (soft power); liderar pelo exemplo; combater a mudança climática; fortalecer internamente; e atuar em conjunto com os aliados internacionais. Ele afirma que o compromisso dos Estados Unidos com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é “sagrado” e também propõe criar uma “Cúpula de Democracias” para formar uma “agenda comum” e “fazer a defesa contra o autoritarismo”.
Nesse texto, em contraponto a sua leitura mais balanceada de 2016, Biden apresenta a China de modo negativo, associada a ideias como “repressão”, “adversária tecnológica”, “trapaça” e “poluição”. As relações com a China, o país mais mencionado no artigo, seriam basicamente competitivas. Pequim seria um “desafio especial” a ser tratado de forma “dura”, do contrário a tecnologia e a propriedade intelectual americana continuariam sendo “roubadas”. Os Estados Unidos estariam em uma “competição pelo futuro com a China”, sendo necessário fortalecer a “vantagem americana em inovação” e “unir o poder das democracias” para “conter práticas econômicas abusivas”.
Segundo Biden, Trump afastou aliados dificultando o enfrentamento à China, que seria a ameaça econômica real. Os Estados Unidos e os aliados constituiriam metade da economia global, força suficiente para construir as “regras do caminho” sobre trabalho, comércio, tecnologia e transparência, e fazer frente à China em defesa dos valores democráticos. Essa expressão, “rules of the road”, era utilizada pela administração Obama em referência à Parceria Transpacífico (TPP) – provavelmente por cálculo eleitoral, Biden não quer colocar o acordo na campanha, mas faz a referência velada.
Em um documento de campanha, afirma-se que a “guerra comercial solitária” de Trump contra Pequim foi ineficaz e a fase um do acordo comercial com a China é “vazia”, não resolvendo o “comportamento abusivo chinês”. O documento defende maior agressividade na imposição de comércio contra a China, a atuação em coalizão para pressionar o governo chinês, bem como o combate ao roubo de propriedade intelectual e à ciberespionagem, questões que também associa à China. É afirmado que a China estaria próxima de ultrapassar os Estados Unidos no investimento em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e tenta superar a primazia tecnológica americana. Logo, seria necessário aumentar o investimento em P&D em áreas como 5G, Inteligência Artificial, biotecnologia e veículos limpos.
Os estrategistas: Ely Ratner e os demais
Estrategistas democratas têm uma leitura similar à de Biden e destacam a gravidade da ameaça chinesa, a necessidade de atuar com os aliados e a importância do TPP para sobressair perante a China. Susan Rice, conselheira de Segurança Nacional de Obama, classifica que Trump abandonou o papel de liderança dos Estados Unidos no mundo e que ele não critica os abusos chineses na área de direitos humanos. Ela também considera que a saída do TPP foi um grande presente à China – quase as mesmas palavras de Michael Froman, ex-representante comercial (USTR). Ivo Daalder, ex-embaixador na OTAN, também afirma que Trump alienou parceiros e aliados e não faz uma defesa adequada dos direitos humanos, destacando a necessidade de uma frente unida contra Pequim. Ashton Carter, secretário da Defesa também no governo Obama, é outro crítico agudo das práticas econômicas chinesas e defende ser o TPP um acordo crucial para manter o papel dos Estados Unidos na Ásia.
Ely Ratner – assessor de Segurança Nacional de Biden no governo Obama e diretor de Estudos do think tank democrata Center for a New American Security (CNAS) – é provavelmente o principal estrategista na política para a China do entorno de Biden. Em 2018, Ratner afirmou que os Estados Unidos e a China estão em uma competição geopolítica que determinará o caráter do século XXI, que os Estados Unidos estão perdendo essa competição, mas que é possível contestar o fortalecimento chinês. E o TPP, oferecendo uma agenda positiva para a Ásia, seria fundamental para Washington ampliar sua vantagem.
Ratner e Kurt Campbell – ex-secretário de Estado assistente – caracterizam a China como o competidor mais dinâmico e formidável dos Estados Unidos na era moderna. Eles afirmam que Trump acertou ao mudar o discurso na Estratégia de Segurança Nacional (NSS) de 2017, mas teria errado ao abandonar as negociações comerciais multilaterais, ao questionar o valor das alianças e ao menoscabar os direitos humanos e a diplomacia. A estratégia de Trump seria, então, uma abordagem confrontacionista que não é competitiva, o oposto da eficaz estratégia chinesa.
Ratner e Richard Fontaine – ex-oficial do Conselho de Segurança Nacional – afirmam que a política para a China deve ser calibrada conforme : uma política de contenção para impedir a expansão do autoritarismo de alta tecnologia; uma política defensiva para o Mar do Sul da China; uma política de fomento à inovação doméstica nos Estados Unidos; políticas de cooperação na área climática e de não proliferação; e uma política de indiferença em certos temas. Eles avaliam que, no contexto da rivalidade EUA-China, as alianças não serão integrais como na Guerra Fria. Todavia, podem surgir “coalizões da vontade” em questões específicas, como na resposta “às práticas comerciais injustas da China, contra a repressão em Xinjiang e no apoio a Taiwan”.
Em “Além da Guerra Comercial”, Ratner e outros dois pesquisadores do CNAS afirmam que a Guerra Comercial de Trump foi ineficaz, e defendem uma estratégia competitiva que buscaria fortalecer o poder dos Estados Unidos e, simultaneamente, enfrentar as atividades “malignas” de Pequim. Eles consideram que a Guerra Comercial poderia ter funcionado, se fosse implementada com os aliados e que é necessária uma coalizão para instituir novas regras internacionais sobre: comércio, tecnologia e investimento. Além disso, os Estados Unidos deveriam atrair imigrantes com alta qualificação; investir mais em inovação; e implementar, junto aos aliados, controles de exportação contra a China no tocante aos semicondutores. Eles também criticam o uso episódico das alianças americanas para enfrentar a China no governo Trump, defendendo que a ação em bloco seja institucionalizada e consistente.
Diagnóstico similar, programa distinto
O diagnóstico de Biden sobre a China é muito similar ao do governo Trump. Ambos veem a China como o desafio central, criticam o autoritarismo chinês e centram fogo, sobretudo, nas práticas comerciais de Pequim. Os dois apontam a China como uma adversária tecnológica que precisa ser enfrentada e defendem a campanha diplomática contra a Huawei na tecnologia 5G. Outra similaridade é que Biden e os estrategistas democratas não sugerem romper a “política de uma China” – a questão sensível capaz de levar as relações para a inimizade integral.
Todavia, o programa de Biden é distinto. Uma diferença-chave é que os aliados desempenhariam um papel crucial na pressão contra a China, uma ideia não muito influente na administração Trump. Se Trump é defensor do bilateralismo, Biden crê na eficácia de ações concertadas, multilaterais, ou plurilaterais. No mesmo sentido, Biden provavelmente pressionaria mais a China em temas caros ao Partido Democrata, como direitos humanos e meio ambiente. Além disso, acordos plurilaterais, como o TPP, são entendidos como fundamentais e voltam a ganhar viabilidade.
Nesse contexto, a guerra comercial “solitária” de Trump deixa de ser o norte do enfrentamento. Isso não significa, porém, que ela se encerrará imediatamente. Biden critica o confronto tarifário por seu caráter bilateral, pela inefetividade e pelos altos custos, mas não afirmou que a encerrará em qualquer cenário. Se, com ajustes, ela parecer útil na sua agenda anti-China, o enfrentamento tarifário pode permanecer. Afinal, como sugerem Ratner e os pesquisadores do CNAS, talvez uma guerra comercial “plurilateral” contra a China, na qual os aliados participem, possa ser eficaz.
As ideias de Ratner e as propostas tradicionais de Biden sobre o comércio também sugerem que a ideia de desacoplar (decoupling) as economias sino-americanas não tem muita influência na leitura democrata. De fato, existe uma demanda para trazer cadeias de produção críticas para os Estados Unidos, mas as relações comerciais com a China não são compreendidas de modo uniforme. Nesse prisma, sobretudo, nas áreas benéficas aos Estados Unidos – como a importação de produtos de baixo valor agregado e insumos –, é improvável a ideia de desacoplamento.
Enfim, Biden anuncia uma política para a China competitiva, pragmática, mais racional e menos espetaculosa, fundada em duas diretrizes: fortalecer os Estados Unidos em inovação tecnológica e enfrentar a China por meio de uma frente unida de aliados e parceiros. O plurilateralismo destrona o bilateralismo e é esperado, pelas declarações de Biden, que os Estados Unidos abandonem a abordagem de “exit” (saída) das organizações internacionais, defendida por Trump, e passem a disputá-las (a abordagem “voice”, nos termos de Hirschman).
Implicações para a China e o Brasil
Ainda que não seja de fácil implementação, o plurilateralismo de Biden projeta um cenário ruim para Pequim, porquanto reduziria a força de sua diplomacia bilateral e exploraria o baixo número de alianças da China, uma fragilidade importante. Assim, e com ciência de que o enfrentamento aos seus interesses ocorrerá independentemente do resultado eleitoral, Pequim parece preferir a reeleição de Trump – seja por ser o diabo conhecido, seja pela histórica preferência pelos republicanos, seja pelas fraturas internas e externas geradas por Trump, ou mesmo pelas prioridades personalistas do presidente republicano. Um governo Biden gerará menos atritos com os aliados e pode projetar com mais facilidade a ideia da China como o “outro” malévolo a ser combatido – uma ideia que o atual secretário de Estado, Mike Pompeo, tenta implementar, mas que se perde em meio às bravatas e cisões geradas por Trump.
A centralidade da China na agenda de Biden também traz implicações importantes para as relações entre Brasil e Estados Unidos. Subscrevendo ao argumento de Roberto Simon, é improvável o “cenário Carter”, no qual Biden antagonizaria publicamente o governo Bolsonaro. Além do caráter marginal do Brasil na agenda de Biden e da competição no 5G, Biden tende a evitar o enfrentamento retórico contra países que podem compor a frente anti-China. Apenas em tempos atípicos, gerados por necessidade de apoio doméstico de Biden, ou por descura brasileira, tais enfrentamentos seriam mais prováveis.
A maré montante
Além das ideias, a política externa é constituída por pressões sociais e por grupos de interesse. Ao final da década de 2010, consolidou-se quase um consenso na sociedade americana sobre a necessidade de enfrentar a China. Desde 2012, com uma ascensão no período Trump, a opinião pública americana passou a notar a China de modo mais desfavorável. Segundo pesquisa do Pew Research Center, atualmente a cada dez pessoas, sete têm uma visão negativa sobre a China. No mesmo sentido, burocracias importantes como o Pentágono, desde o final do governo Clinton, e o USTR, desde o governo George W. Bush, consideram a China como a potência que mais ameaça os Estados Unidos.
A comunidade de negócios (big business) também tem uma leitura mais crítica sobre a China, em grande medida em decorrência da eficácia da China em ascender nas cadeias produtivas. Sobretudo após 2015, os think tanks também homogeneizaram seu discurso, passando a defender políticas duras contra Pequim. Além disso, formou-se no Congresso um consenso bipartidário sobre a necessidade de enfrentar a China. Em outras palavras, a China é atualmente o alvo central da política externa dos Estados Unidos e é nesse contexto social e burocrático que a política para a China do próximo presidente será feita.
Por fim, deve-se lembrar que Joe Biden é um político tradicional que não costuma nadar contra a maré. Os principais projetos da política externa dos Estados Unidos após a Guerra Fria – como a Guerra no Kosovo, as relações normais permanentes com a China e a Guerra do Iraque – foram apoiados por Biden. Sendo assim o nadador, os treinadores e a maré, é provável que um eventual governo Biden mantenha a competição e o enfrentamento à China, mas substitua a retórica e os métodos.
* Mateus de Paula Narciso Rocha é mestre em Relações Internacionais (PPGRI-UFU). Pesquisa a política externa dos Estados Unidos para a China após a Guerra Fria. E-mail: mateusdepaula@outlook.com.
** Recebido em 31 jul. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.