O populismo e Donald Trump
Crédito da Ilustração: Slate. Foto de Gary Gershoff/Getty Images para Cantor Fitzgerald
Por Roberto Moll Neto*
Nos últimos cinco anos, artigos na imprensa, nos periódicos especializados e nos livros acadêmicos recuperaram o termo “populismo” para retratar negativamente a política dos Estados Unidos da América (EUA) na “Era Donald Trump” (2017 – ). Logo, o adjetivo “populista” recaiu sobre o presidente estadunidense.
Em linhas gerais e de forma bastante simplificada, a caracterização do populismo da “Era Trump” sublinha uma estratégia calcada na mobilização unilateral das massas contra as instituições políticas tradicionais por meio de uma linguagem popular e de propostas elementares e insipientes, frequentemente embaladas em uma retórica nacionalista, que funciona como elemento de inclusão e exclusão.
Em síntese, o termo também aparece como negação da democracia representativa através da demagogia e da manipulação das massas. Embora o termo “populismo” tenha origem em movimentos sociais nos EUA no final do século XIX, é frequentemente correlacionado à América Latina e a uma latino-americanização, ou brasilianização da política estadunidense na Era Trump, como sinônimo de demagogia, manipulação e autoritarismo.
Populismo à la carte
O problema dessas abordagens repousa naquilo que Mackinnon e Petrone chamaram de “Complexo da Cinderela”. Tal como o sapatinho que o príncipe testa em todos os pés para encontrar sua amada, o conceito de “populismo” e o adjetivo “populista” são frequentemente mobilizados para se encaixar em diversas estratégias políticas, em diferentes figuras públicas e em diferentes momentos da história. Como aponta Maria Helena Capelato, o conceito de populismo deslizou do campo acadêmico para a arena política, apresentando uma conotação maniqueísta, a fim de sublinhar contornos positivos, ou negativos, de acordo com o jogo político.
Por esta definição ampla de populismo, calcada majoritariamente em um tipo de discurso comum no mundo político, é possível retratar políticos que tiveram atuação radicalmente diferentes em momentos diversos da história, de Trump a Sanders, passando por Alexander Hamilton, Andrew Jackson, Theodore Roosevelt, Al Smith, Franklin Delano Roosevelt, George Wallace, Charles Lindbergh, Lyndon B. Johnson, Ronald Reagan e até Barack Obama.
De forma mais substancial, o historiador, Michael Kazin definiu o populismo como uma política que opõe o povo, compreendido como um conjunto de indivíduos produtivos que constroem suas vidas através do trabalho independente dos governos, e as elites parasitárias, que aparelham as instituições públicas e privadas a fim de espoliar as riquezas da sociedade. A partir dessa definição, Kazin identificou e descreveu duas vertentes do populismo estadunidense: os populistas de esquerda, que adotam uma concepção de povo com base na classe trabalhadora; e os populistas de direita, que definem o povo trabalhador partindo de uma percepção étnica e/ou nacional exclusiva.
Como Kazin, Mark Brewer sublinha que a característica mais básica e fundamental do populismo é a percepção de que existe um conflito entre o povo que vive do trabalho e produz riquezas e uma elite que, sem nenhum esforço, controla instituições autoritárias e centralizadoras, sobretudo o governo federal e as grandes corporações, a fim de surrupiar as riquezas da sociedade. Essa visão maniqueísta do mundo alimenta teorias da conspiração, que ajudam a definir o próprio povo.
EUA e AL: semelhanças e diferenças
Entretanto, para além do debate sobre o discurso, Mackinnon e Petrone apontam que as análises clássicas sobre o populismo, seja nos EUA, seja na América Latina, inserem o fenômeno no processo de desenvolvimento do capitalismo como alternativa ao liberalismo econômico, como no momento de transição do capitalismo agrícola para o capitalismo industrial. Tanto nos EUA quanto na América Latina, a concepção de um líder populista que chega ao poder nos braços do povo e mantém uma relação direta e carnal com a massas não passa de ilusionismo dos próprios líderes populistas.
Nos EUA, no terço final do século XIX, o movimento populista surgiu como polo antagônico ao processo de industrialização acelerada. Muito além do discurso, o projeto populista clássico estadunidense encampou propostas de garantia de direitos universais que, supostamente, estariam em risco com o desenvolvimento acelerado do capitalismo industrial. Disto decorre, que a pedra fundamental do projeto populista clássico estadunidense seria a descentralização do poder e da economia em favor das organizações democráticas locais e governos populares, assumindo características radicais.
Na América Latina, líderes carismáticos emergiram de diversos setores da sociedade como homens do povo com projetos que defendiam um Estado fortemente intervencionista para promover o progresso capitalista e a ordem social. Neste esforço, buscaram incluir as massas populares pela cessão de direitos sociais que engendrou a confecção de uma estrutura corporativistas, a fim de evitar a revolução popular. Vale lembrar que os sindicatos, o rádio e os jornais tiveram, ainda que sob vários artifícios de controle, um papel importante na mediação construtiva e na difusão de ideias e de concepções de mundo coerentes com o populismo. Em suma, o populismo na América Latina em seu período clássico assumiu, paradoxalmente, características antirrevolucionárias, embora transformadoras e, em alguns aspectos, progressistas com projetos amplos e corporativistas de desenvolvimento industrial nacional, que, supostamente, mitigariam as contradições capitalistas.
Como as últimas décadas do século XIX nos EUA, e as primeiras décadas do século XX, na América Latina, a Era Trump é mais um capítulo do longo movimento de transformação do capitalismo. Desde os anos 1970, a aceleração dos processos (pós) industriais em um mundo extremamente globalizado e as teorias econômicas calcadas em convicções individualistas inimigas do bem-estar coletivo impactaram profundamente as relações de produção dentro e fora dos EUA.
Diante de uma longa dinâmica de progressiva precarização dos trabalhadores e de suspeição sobre a política e a democracia, Trump mobilizou, como tantos outros líderes desde então, discursos com alto teor de demagogia e ecos dos populismo de outrora. Trump prometeu recuperar direitos sociais e econômicos dos indivíduos brancos e de meia-idade com um discurso que articulou elementos racistas, xenófobos, antielitistas e protecionistas. Retratou as minorias nacionais e imigrantes como grupos privilegiados por uma elite parasitária e corrupta que tinha apenas interesses próprios e escusos de caráter global.
Ele nunca prometeu, porém, transformar os EUA em uma democracia popular radical, ou estabelecer um projeto desenvolvimentista coerente com vistas a incluir as massas através de direitos e arranjos corporativistas para atenuar as contradições do capitalismo e os conflitos distributivos. Com valioso suporte de corporações envolvidas em setores de alta tecnologia, como a Cambridge Analytica, Trump buscou captar um conjunto de ideias de indivíduos atomizados em redes sociais e difundir preferências e teorias da conspiração populares, mas extremamente caóticas, conflituosas e contraditórias. Portanto, sem nenhuma conexão com o populismo.
Na superfície discursiva, as experiências populistas nos EUA e na América Latina e a Era Trump têm traços similares. Mas, para além da superfície discursiva, os líderes populistas tradicionais conseguiram conformar um mosaico político coerente, ao menos por algum tempo. Já Trump tenta, incessantemente, juntar pequenos cacos de muitas maneiras, sem qualquer preocupação com forma, ou coerência. É isso que torna qualquer análise mais profunda sobre seu governo difícil. É preciso ir além do populismo do discurso de Trump. E, aqueles que enxergam em Trump um fenômeno latino-americano, ou brasileiro, estão tomando a história da política estadunidense como um fenômeno excepcional maculado por vizinhos inerentemente demagogos, autoritários, manipulados e manipuladores.
* Roberto Moll Neto é pesquisador vinculado ao INCT-INEU, professor de História da América na Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Segurança e da Defesa na mesma instituição.
** Recebido em 27 jul. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. A versão integral deste artigo foi publicada na Mundo e Desenvolvimento: Revista do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais.