Resistências domésticas ao recuo dos EUA: uma análise da ajuda alimentar no governo Trump
Alimentos doados pela USAID armazenados para distribuição no acampamento de refugiados de Dadaab, no Quênia (Crédito: Rick Loomis/Los Angeles Times)
Por Atos Dias e Thiago Lima*
Os Estados Unidos são, desde o pós-Segunda Guerra Mundial, indiscutivelmente o maior doador mundial de alimentos, sempre de forma muito articulada com o Programa Mundial de Alimentos (PMA). O presidente Donald Trump tem proposto ao Congresso, no entanto, extinguir os programas de assistência alimentar internacional como parte de sua (nem tão nova) agenda de política externa denominada America First, agenda esta que prega o desengajamento das obrigações internacionais de Washington e o enfraquecimento do multilateralismo.
Contraditoriamente, porém, o que se percebe até o momento é que há continuidade da política de ajuda alimentar e que, em 2019, as contribuições de Washington ao Programa Mundial de Alimentos (agência da ONU responsável pela política de assistência alimentar em nível global) foram as maiores desde 1998 (de acordo com os dados disponíveis). Quais fatores contribuíram para isso? Identificamos três.
Primeiro, assim como em outras tentativas de reforma da política de ajuda alimentar, uma coalizão formada por atores dos setores público e privado parece ter sucesso em frear a administração. Uma parte desta coalizão é formada pelo agronegócio, pelas empresas de transporte marítimo e por ONGs que trabalham com ajuda externa. Juntos, pressionaram o governo e congressistas para que os programas (fonte de parte das receitas desses grupos lobistas) não sejam extintos. No caso da assistência alimentar internacional, associações como American Maritime Officers, The U.S. Wheat Associates e ONGs como Save The Children trabalharam pela continuidade de programas de doação direta de grãos ao exterior que, de maneira histórica, têm-se mostrado uma importante fonte de financiamento para suas atividades.
No Congresso, uma segunda ponta da coalizão, republicanos como Ted Yoho (Flórida), Filemon Vela (Texas), Mike Conaway (Texas) e o democrata Jimmy Panetta (Califórnia) têm atuado para convencer o governo de que os cortes seriam um dano à liderança internacional dos EUA e que o espaço perdido seria preenchido por outras potências. Na administração, a terceira ponta, figuras como Steven Mnuchin (secretário do Tesouro norte-americano) e Mike Pompeo (secretário de Estado) também apelaram, com sucesso, contra os cortes em ajuda externa propostos pelos chamados “falcões orçamentários do governo” (entre eles Mick Vulvaney, chefe do orçamento da Casa Branca).
O segundo fator é a conexão política entre Trump e o ex-governador da Carolina do Sul, o republicano David Beasley, indicado para o cargo de diretor-executivo do PMA (o mais alto da instituição). A ONU acatou a indicação, no que parece ter sido um movimento para tentar frear os cortes dos recursos estadunidenses para o PMA. Os cinco norte-americanos que cronologicamente antecederam Beasley na gestão do PMA possuíam experiência com políticas de assistência alimentar internacional, enquanto o ex-governador não tinha qualquer vivência com o ofício, nem com o sistema ONU. Especialistas da ONU esperavam que Beasley pudesse ser capaz de convencer “seus amigos de Washington” a poupar o PMA dos cortes da Casa Branca.
Três cabeças que podem influenciar o destino orçamentário dos EUA para o PMA pertenciam à rede de contato de Beasly: a ex-embaixadora dos EUA na ONU e ex-governadora da Carolina do Sul Nikki Haley; o senador republicano (conterrâneo de Beasley) Lindsay Graham, que preside o subcomitê State, Foreign Operations, and Related Programs, responsável por supervisionar o financiamento estadunidense à ONU; e o chefe do orçamento da Casa Branca, Mick Mulvaney.
Em terceiro lugar, as tarifas impostas pela China à soja norte-americana podem ter contribuído para que Trump percebesse a importância da política de assistência alimentar internacional como ferramenta de projeção de interesses do país e de resolução de problemas domésticos vinculados à falta de demanda (ou ao excesso de oferta) por commodities agrícolas. Oferecemos a seguir um exame mais detido deste fator.
A disputa teve início em março de 2018, quando o governo Trump impôs tarifas comerciais sobre importações chinesas em um valor de US$ 60 bilhões. A medida está em conformidade com a política America First e que, nesse caso, mirava o déficit comercial estadunidense frente a demais países do globo em acordos bilaterais. Trump classificou a China como inimiga econômica e responsabilizou o país adversário pelas perdas de milhares de empregos, de bilhões de dólares em receitas e de roubar propriedade intelectual dos EUA.
Frente à retaliação dos Estados Unidos, a China impôs tarifas no valor de US$ 34 bilhões sobre produtos estadunidenses, sendo a soja um dos mais atingidos. Deu-se início a uma disputa comercial entre ambos os países que se estenderia por meses até um acordo firmado em dezembro de 2019 estabelecer uma trégua. Neste mesmo mês, a China anunciou a revogação das tarifas impostas sobre os produtos agrícolas como uma demonstração de “boa vontade”. O estopim da pandemia de COVID-19 e a proximidade das eleições nos EUA acabaram elevando a tensão entre as duas potências, destacando-se as insistentes acusações de Trump à China como sendo a responsável pela disseminação do novo coronavírus no mundo. Apesar disso, até então, a primeira fase do acordo se encontra em vigor.
A primeira fase do acordo que foi assinada entre ambos os países em janeiro de 2020 estabeleceu, entre outras medidas, que a China comprará um adicional de US$ 32 bilhões em produtos agrícolas dos EUA nos próximos dois anos (2020 e 2021), elevando a média anual de compras agrícolas para US$ 40 bilhões.
Essa nova média anual é cerca de 60% maior do que a anterior à guerra comercial entre ambos os países, algo em torno de US$ 25-30 bilhões. Durante a disputa, as perdas estadunidenses com exportações agrícolas para a China foram significativas, sobretudo para a soja. As tarifas impostas por Pequim à soja e aos demais produtos agrícolas foi inicialmente de 25% em julho de 2018. Em setembro do mesmo ano, a tarifa sobre a soja chegou a 30% e até o final de 2019 alcançaria 33%. O impacto nas exportações agrícolas dos EUA para a China representou uma queda de 72%, ficando em torno de US$ 7 bilhões de dólares anuais.
No caso específico da soja, como se observa no gráfico abaixo, há uma queda acentuada das exportações estadunidenses para a China. Enquanto que, em 2017, a soja dos EUA representou 33% do total das importações do grão na China, em 2018 esse índice caiu para 8%, valor bastante semelhante ao início dos anos 2000. A China não deixou, porém, de comprar soja. No mesmo gráfico, observa-se que as importações permaneceram, e os EUA perderam mercado para o Brasil – maior produtor de soja do mundo – que elevou suas exportações da commodity para a China em 22% de 2017 para 2018.
Importações chinesas de soja
Fonte: UN Comtrade Database, 2020. Elaboração própria.
É fato que a produção nas fazendas estadunidenses representa apenas cerca de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA. Se considerarmos, no entanto, o setor agrícola e alimentar de um modo geral – levando-se em consideração campo e indústria –, esse valor aumenta. Em 2017, ano anterior à disputa comercial, a participação foi de 5,4% do PIB, a mão de obra empregada representou em torno de 11% do total de empregos nos EUA, e a soja é o produto agrícola mais valioso do país. Adicionalmente, a queda na demanda da soja dos EUA afeta a produção de outros importantes cultivos. Tendo em vista as tarifas impostas e uma esperada queda na demanda e no preço, grandes produtores agrícolas do centro-oeste do país decidiram cultivar milho, ou trigo, no lugar de soja, o que prejudicou os níveis de preços de ambas as commodities agrícolas.
Em 2018, ano do início da disputa, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, sigla em inglês) aprovou um plano emergencial de US$ 12 bilhões para a agricultura com o objetivo de compensar os preços baixos e a queda de demanda. O setor é politicamente estratégico para Trump, pois apoiou amplamente sua eleição. Tendo em vista o cenário acirrado da disputa, em maio de 2019 Trump propôs um segundo plano de ajuda emergencial ao setor agrícola (que seria apresentado em julho do mesmo ano no valor de US$ 16 bilhões em subsídios). No mesmo mês, o presidente indicou escoar excedentes agrícolas na forma de assistência alimentar internacional. Em seu perfil oficial na rede social Twitter, Trump publicou:
With the over 100 Billion Dollars in Tariffs that we take in, we will buy……..agricultural products from our Great Farmers, in larger amounts than China ever did, and ship it to poor & starving countries in the form of humanitarian assistance. In the meantime we will continue to negotiate with China in the hopes that they do not again try to redo deal!
Trump erroneamente afirmou na mesma rede social que a compra seria realizada com as tarifas pagas pela China. Na verdade, são as importadoras – empresas estadunidenses, ou estrangeiras, registradas no país – que arcam com os custos das tarifas. O Estado é, na verdade, remunerado com o pagamento do imposto sobre as importações.
Além disso, existem outros dois fatores que dificultariam a solução proposta por Trump. Em primeiro lugar, qualquer fundo financeiro deste tipo faz parte do Tesouro dos EUA e é do Congresso a competência de gerir os gastos do país. Ou seja, não é nada simples arrecadar dinheiro e gastá-lo ao sabor do Executivo. E, em segundo lugar, a soja e o milho – commodities mais prejudicadas na disputa comercial – são mais utilizados como ração animal e insumo industrial do que como alimento, o que inviabiliza um fornecimento massivo na forma de assistência alimentar internacional. Apesar disso, não seria irreal se os EUA enviassem os grãos ao exterior, visto que – no passado – o país já chegou a doar até mesmo algodão e tabaco em forma de ajuda alimentar, como mostra Luis Portillo, no livro ¿Alimentos para la Paz? La “ayuda” de Estados Unidos (Iepala Editorial, 1987).
Analisando os dados da USAID sobre assistência alimentar internacional, contudo, percebe-se que não há um aumento significativo de gastos com o Título II do Food for Peace, que prevê a doação direta de produtos agrícolas na forma de assistência alimentar emergencial para países em desenvolvimento e entidades privadas. Mais do que isso – nos anos de 2017, 2018 e 2019 – não houve um aumento significativo de produtos agrícolas derivados de milho e soja, os mais afetados pela disputa comercial, em relação aos demais (como trigo e sorgo, por exemplo).
Diques institucionais
Apesar disso, o impasse com a China contribuiu para que Trump enxergasse a saída estratégica (no âmbito econômico e político) que os programas de assistência alimentar internacional podem oferecer aos EUA. Decerto, não há evidências de que as doações de soja ao exterior aumentaram, mas, ao colocar a assistência alimentar internacional como uma alternativa viável para o escoamento da produção agrícola prejudicada pelas tarifas chinesas, o presidente norte-americano parece entender um dos fundamentos deste tipo de ajuda externa: atender a interesses diversos de economia política interna, ou de política externa.
Mais do que isso, o setor agrícola norte-americano é uma parcela importante no cálculo republicano para as eleições presidenciais de 2020, visto que a aprovação ao candidato incumbente entre os agricultores tem-se mantido em cerca de 80%. E, apesar do otimismo do setor agrícola quanto ao acordo dos EUA com a China, até então a primeira fase tem deixado a desejar. Adicionalmente, a pandemia de COVID-19, que prejudicou o comércio internacional como um todo, contribuiu para que os resultados do acordo ficassem aquém do esperado durante os seis primeiros meses. Esse cenário tem despertado uma desconfiança quanto ao real cumprimento das promessas de Pequim para o setor agrícola norte-americano.
Isso também tem sido demonstrado com o lobby empreendido pelo setor agrícola, desde o começo do ano, para que o governo Trump continuasse a pagar ajudas emergenciais aos produtores em 2020. Neste mesmo sentido, não seria politicamente lógico que Trump extinguisse os programas de assistência alimentar internacional, que têm-se mostrado – em termos históricos – bastante rentáveis para uma parcela do setor agrícola norte-americano.
Em suma, a continuidade da assistência alimentar internacional durante o governo Trump parece, portanto, responder a três fatores: (a) uma coalizão política formada por interesses do setor público e privado; (b) a escolha estratégica do republicano David Beasley como diretor-geral do PMA; (c) e a economia política de assistência alimentar frente à guerra comercial entre EUA e China.
De modo geral, a dificuldade em pôr fim aos programas de assistência alimentar internacional demonstram o enraizamento deste tipo de política em estruturas institucionais e em grupos de interesses articulados na sociedade. Temos aqui uma amostra dos freios e contrapesos do sistema político norte-americano, ou do papel dos “diques institucionais” que, sustentados por forças políticas e econômicas, limitam algo da guinada antimultilateral dos EUA nas Relações Internacionais.
* Atos Dias é doutorando em Ciência Política pela UFPE. Contato: atosrabi@gmail.com. Thiago Lima é professor de Relações Internacionais da UFPB e pesquisador do INCT-INEU. Contato: tlima@ccsa.ufpb.br. Ambos são autores do artigo “Ajuda alimentar internacional dos EUA: política externa, interesses econômicos e assistência humanitária”, publicado na Revista Brasileira de Políticas Públicas e Internacionais, em 2016.
** Recebido em 21 de julho de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.