Trump e Obama na criação da tempestade perfeita, e terrível
Manifestante carrega bandeira dos EUA. Protestos eclodiram em Minneapolis após morte de George Floyd (Crédito: Julio Cortez/AP)
Os levantes de hoje contra o racismo institucional, a brutalidade policial e a má administração da COVID-19 contam a história de um presidente divisivo e incompetente e do ultranacionalismo coercitivo da America First
Por Inderjeet Parmar e Mark Ledwidge*
O assassinato de George Floyd pela polícia catapultou para proeminência global a importância das questões raciais domésticas para influenciar a imagem internacional dos Estados Unidos e os efeitos domésticos de suas guerras estrangeiras através da militarização da polícia. A crise no policiamento norte-americano das comunidades das minorias raciais e a exacerbação e ampliação dessa crise pela administração do governo Trump da pandemia global Covid-19, em meio a relatos de seus efeitos econômicos e de saúde desproporcionais sobre as minorias, contribuíram, por sua vez, para a construção de uma terrível, mas perfeita, tempestade política.
O mundo inteiro observa os Estados Unidos, enquanto a posição e as estratégias globais dos EUA impactam sua sociedade e política. Isso é tão verdadeiro hoje quanto foi na Guerra Fria, quando os EUA competiam com a União Soviética e a China pelo domínio global, recrutando aliados, especialmente entre os Estados pós-coloniais e não brancos, que haviam recém-conquistado sua independência. Os diplomatas destes últimos na ONU e em Washington, D.C., por exemplo, sofriam com as leis de Jim Crow que afetavam seu acesso a escolas, casas e restaurantes.
Mas, embora o presidente Trump tenha trazido muitas crises à tona, também estão em ação correntes históricas recentes e mais profundas que, consciente ou inconscientemente, também estão enraizadas nas políticas dos dois mandatos de Obama e até na mera “presença” do primeiro afro-americano presidente.
É claro que as raízes históricas mais profundas estão na violência e na opressão raciais que datam do período colonial, na escravidão transatlântica e no comércio de carga humana, que trouxeram milhões de africanos à costa dos Estados Unidos. O sistema de classes de caráter racial do país está enraizado na violência, na escravidão, na constituição original dos EUA e no sistema “Jim Crow” de segregação racial pós-Guerra Civil.
Obama e esperança
No entanto, compare a atual turbulência com a esperança derivada da eleição de Obama em 2008. Os progressistas norte-americanos enalteciam Obama como a personificação da visão do “Sonho Americano’ de Martin Luther King e como a inauguração de uma América do Norte pós-racial. Zbigniew Brzezinski, que identificou Jimmy Carter como a nova face moral dos Estados Unidos após os desastres do Vietnã e de Watergate, também apontava Obama como a nova face do poder norte-americano após os horrores do Iraque e de Guantánamo. O rosto na Casa Branca transmite uma certa imagem global dos Estados Unidos. Nas eras pós-Nixon e pós-Bush II, as crises do poder norte-americano pareciam exigir restauração da autoridade moral, mesmo que pouco mudasse nos fundamentos da estratégia dos EUA. Embora permanecesse preso ao militarismo, carregava consigo a promessa de progresso social, harmonia, diversidade e “poder brando”. Projetava a esperança otimista do sonho norte-americano.
Mas nem todos os norte-americanos ficaram satisfeitos com a perspectiva da mudança da face dos Estados Unidos, especialmente em um futuro em que os brancos seriam o maior grupo individual, mas uma minoria da população geral dos EUA. A mera presença de Obama na Casa Branca foi, para alguns, um passo longe demais. Meses antes das eleições de 2008, o líder do ex-Ku Klux Klan, que se tornou republicano, David Duke, deu as boas-vindas às eleições de Obama como uma força para galvanizar os brancos dos EUA: ele seria “uma ajuda visual” na luta para mobilizar a América branca.
Duke não estava completamente certo, especialmente porque Obama foi reeleito em 2012, mas também não estava completamente errado. Houve uma reação racial que nacionalistas brancos e seus aliados “conservadores” promoveram e mobilizaram. Tudo começou na noite da eleição em si, quando sites supremacistas brancos caíram, devido à enorme quantidade de causticidade que fluía pela Internet. E que ajudou a impulsionar o “Tea Party”, financiado pelos irmãos Koch, o movimento “Birther”, que desafiava a identidade de Obama como norte-americano, e as ambições presidenciais de Donald J. Trump.
Mas se a simples “presença” da Presidência de Obama foi objeto de intensa agitação racial, seu mandato também foi uma decepção para os progressistas norte-americanos e uma dádiva para seus detratores nacionalistas brancos. Seu manejo da economia norte-americana após o colapso financeiro de 2008-09 salvou os grandes bancos e corporações, mas pouco fez para os trabalhadores comuns, especialmente os afro-americanos. Na verdade, eles estavam em situação pior no final dos mandatos de Obama do que em 2007. Em 2016, a riqueza média das famílias brancas era 10 vezes maior que a das famílias negras (US$ 17.100) – uma diferença maior do que em 2007. Dez anos após a recessão, os afro-americanos não haviam atingido seus níveis médios de renda de 2007. Embora todos os grupos raciais tenham-se beneficiado da cobertura do seguro de saúde sob o “Obamacare”, milhões permaneceram sem seguro. E a desigualdade de renda e de riqueza nos Estados Unidos aumentou e é a mais alta entre os países do G7.
Uma história contada pelo cineasta Michael Moore captura a distância entre o presidente Obama e os trabalhadores. Em 2016, um mês depois que foi revelado que o Comitê Nacional Democrata havia passado perguntas a Hillary Clinton antes de um debate das primárias democratas com o senador Bernie Sanders em Flint, Michigan, o presidente Obama visitou a cidade, que é cerca de 50% afro-americana. Ele bebeu um copo da água local, que havia sido testada e verificada como insalubre, e a declarou perfeitamente boa. O efeito? Aumentou o estrago e deprimiu o voto afro-americano em novembro de 2016.
Internacionalmente, dificilmente pode-se dizer que a guerra global de Obama ao terror se afastou do paradigma de Bush. De fato, o efeito doméstico — ou significativo — da guerra global ao terrorismo foi a intensificação das transferências, para as forças policiais em todos os Estados Unidos, de armas e equipamentos que não são mais necessários para os militares. O programa “1.033” do Departamento da Defesa permite a transferência, de seu excesso de equipamentos, para a polícia e para outros órgãos de aplicação da lei, com pouco, ou nenhum custo. Isso começou de maneira restrita nos anos 1980, com a “guerra às drogas” nas cidades predominantemente negras dos Estados Unidos, e se expandiu e se ampliou desde então, em especial nas últimas duas décadas. Desde 1991, US$ 6 bilhões em equipamentos militares foram transferidos para mais de 8.600 órgãos federais, estaduais e municipais de cumprimento da lei. Pesquisas recentes mostram que as forças policiais que tiram maior proveito do programa de transferência de equipamentos, e dos programas de treinamento que o acompanham, têm maior probabilidade de aplicar violência letal contra suas comunidades.
Assim, a Presidência de Obama testemunhou e pouco fez para mitigar, muito menos para mudar radicalmente, o uso de força letal pela polícia, incluindo assassinatos, de homens de todas as raças, mas desproporcionalmente de homens afro-americanos. Isso levou às revoltas em Ferguson, Missouri, em 2014, após o assassinato de Michael Brown pela polícia e à ascensão do movimento Black Lives Matter, que agora alcançou o reconhecimento global.
Obama: sua presença e suas políticas abriram caminho para o trumpismo
A pessoa e as políticas do primeiro presidente afro-americano, consciente e inconscientemente, criaram as condições, da crise de legitimidade, que levaram à ascensão de Trump à Presidência. E a estratégia eleitoral de Trump jogou com ambas as ansiedades dos brancos de uma eventual nação em que seriam uma minoria majoritária e de crítica ao establishment do Partido Democrata Clinton-Obama, que não fez nada, ou quase nada, para os afro-americanos e trabalhadores em geral, que vendeu empregos norte-americanos para imigrantes, ou os terceirizou para a China, e travou “guerras sem fim” como policial do mundo.
O populismo America First de Trump, um apelo velado a um nacionalismo e identidade brancos “sitiados”, bateu o elitismo cosmopolita de políticos de carreira que supostamente se importavam mais com Paris do que com Pittsburgh. Essa mensagem galvanizou um grande bloco de votação branca entre as classes, uma porcentagem significativa de latinos, alguns opositores de esquerda às intervenções militares e à OTAN e, significativamente, deprimiu uma participação entre afro-americanos. Não foi suficiente para Trump ganhar o voto popular, mas deu-lhe votos suficientes no colégio eleitoral.
Os levantes de hoje contra o racismo institucional, a brutalidade policial e a má administração da COVID-19 contam a história de um presidente divisivo e incompetente e do ultranacionalismo coercitivo da “America First“. Os Estados Unidos estão reagindo militar e coercivamente à medida que suas posições globais são cada vez mais desafiadas, suas estruturas de governança doméstica esvaziadas por décadas de cortes de impostos e hostilidade ao governo, e uma população doméstica perdendo a fé e desafiando o establishment. É cada vez mais parecido com um Estado falido que a maioria de seu povo acredita estar indo na direção errada.
* Inderjeet Parmar é professor de Política Internacional na City, University of London, professor visitante no LSE IDEAS (o think tank de política externa da LSE) e pesquisador no Rothermere American Institute, da University of Oxford. O professor Parmar também é membro do conselho consultivo do INCT-INEU. Mark Ledwidge é professor de Estudos sobre os Estados Unidos (American studies) na Canterbury Christ Church University, UK. Publicou Race and U.S. Foreign Policy: The African-American Foreign Affairs Network (2011).
** Publicado originalmente no site da ORF, Observer Research Foundation, July 8, 2020 | Tradução de César Locatelli para Carta Maior. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.