Relatório de terrorismo registra maior cooperação entre EUA e Brasil
Presidente Jair Bolsonaro, na reunião ampliada com o presidente Donald Trump, na Casa Branca, em Washington, em março de 2019, para assinatura de acordos de cooperação em assuntos de terrorismo e segurança, entre o Ministério brasileiro da Justiça, o FBI e o Departamento de Segurança Interna dos EUA (Crédito: Allan Santos/PR)
Por Isabelle C. Somma de Castro*
O Departamento de Estado lançou, em 24 de junho, nova edição de seu relatório anual referente às ações de terrorismo e contraterrorismo fora do território dos EUA, relativa a 2019. Chamado de Country Reports on Terrorism (CRT), o documento é publicado pelo Departamento de Estado desde 1996, na administração de Bill Clinton, mas ganhou maior visibilidade depois dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.
O último CRT coloca sobre a República Islâmica do Irã uma pressão ainda maior do que os anteriores. Em relação à América Latina, mantém o foco na Tríplice Fronteira, com menos ênfase do que o habitual, mas celebra o aumento da cooperação com os serviços de segurança locais, especialmente o novo sistema de coleta de dados biométricos adotado pelo Brasil, agora padronizado com o dos americanos.
Por ser um documento público, o CRT pode ser lido como uma declaração, ou mesmo uma avaliação da administração norte-americana sobre o desempenho de outros países em relação ao combate ao terrorismo. Em outras palavras, é um instrumento de persuasão, a fim de obter a adesão de governos de outros governos para a agenda securitizadora do ocupante da Casa Branca. E também uma forma de pressionar os governos locais a atuarem em favor dos interesses daquele país.
Em relação aos três relatórios anteriores publicados durante o governo de Donald Trump, o mais recente demonstra a queda da importância do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EI/Isis/Daesh) no discurso da atual administração. O grupo deixou de ser uma prioridade, diante da perda de território, do assassinato de seu líder mais conhecido, Abu Bakr al Baghdadi, e da aparente desorganização, na qual seus membros se encontram – parte em debandada, parte espalhada por campos de refugiados e prisões. Além disso, chama a atenção, logo no prefácio, a afirmação de que, “em março, os Estados Unidos completaram a destruição do chamado ‘califado’ no Iraque e Síria”. Apesar de toda comemoração com a retomada de Baghuz por tropas curdas no ano passado, ao qual o documento de refere, ainda há focos de resistência com membros do grupo. É bom lembrar que, além de russos, curdos e iraquianos, a luta contra o Daesh envolveu e ainda envolve combatentes ligados ao Hezbollah, às Forças Al Quds iranianas e a seus proxies no Iraque.
O relatório referente a 2019 também demonstra, desde seu prefácio, que o principal foco é manter a “pressão máxima” contra o Irã, expressão repetida inúmeras vezes por Trump e integrantes de sua administração Trump, a fim de derrubar o regime. Os esforços são empreendidos em várias frentes, incluindo a América Latina. Com o enfraquecimento do Daesh, o auxílio iraniano deixou de ser importante nessa frente de batalha, e isso foi determinante para a decisão de assassinar o líder da Força Quds, Qassem Solemani, em 3 de janeiro passado. O general iraniano já tinha sido uma peça extremamente útil para os norte-americanos não somente na luta contra o grupo que devastou Síria e Iraque, mas também contra o Taliban, no Afeganistão. Com essas ameaças mais controladas, a crescente influência iraniana na região se tornou um incômodo, e o maior promotor dessa influência, um empecilho a ser eliminado.
Tríplice Fronteira
Em relação ao Cone Sul, as edições do CRT deram, ao longo das últimas décadas, ênfase a uma suposta relação da Tríplice Fronteira com o terrorismo internacional. A falta de evidências sobre a presença de ativistas islâmicos na região não impediu que edições passadas do CRT e do Patterns of Global Terrorism, a versão anterior do relatório editada entre 1997 e 2005, trouxessem informações que os próprios governos locais desmentiam com veemência. O principal exemplo é a asserção de que a Tríplice Fronteira seria um “safe haven” do terrorismo internacional, equiparando a região a localidades como Somália e Afeganistão – nem a região dominada pelas então e agora extintas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) estava na lista. A informação deixou de ser publicada a partir da edição do CRT referente ao ano de 2012, sem qualquer explicação.
Nas últimas edições, sob Donald Trump, a TF tem sido menos citada no verbete Brasil, enquanto permanece presente nos referentes à Argentina e ao Paraguai. A Tríplice Fronteira é descrita no verbete argentino como sendo um local onde “operam redes suspeitas de financiamento de terrorismo”, em especial o grupo libanês Hezbollah, ligado ao governo iraniano. No verbete paraguaio, a TF é citada como coadjuvante, cabendo o protagonismo às ações do grupo Exército do Povo Paraguaio (EPP). Apesar de registrar uma série de atividades do EPP no país, o governo do Paraguai – assim como o da Argentina – rotulou o grupo como “terrorista” no ano passado. É bom lembrar que o Hezbollah nunca praticou qualquer ação no país. O presidente Jair Bolsonaro afirmou que seguiria o mesmo caminho, mas, até o momento, o Brasil continua considerando somente os grupos designados como terroristas pela ONU: Al-Qaeda e Daesh.
O aumento da cooperação entre os países da região também se mostra notável no último relatório. Sabe-se que, há muito tempo, servidores da Polícia Federal e da Receita Federal são enviados para os Estados Unidos para cursos específicos e também de pós-graduação. Recentemente, porém, aumentou a troca de informações e a aquisição de equipamentos de segurança, como o sistema padronizado de coleta de digitais citado no CRT de 2019 e até um software israelense de reconhecimento facial. Por isso, é de se estranhar a ausência no relatório de informações sobre o Centro Integrado de Operações de Fronteira (CIOF) instalado em dezembro do ano passado nas dependências de Itaipu Binacional. Inspirado no modelo dos “fusion centers” norte-americanos, que integram vários setores da polícia e das demais forças de segurança, o local conta também com oficiais dos dois países vizinhos. Este é o segundo do tipo no Cone Sul. O primeiro foi instalado na Argentina, em 2016.
Bodes expiatórios
Um dos principais destaques do sumário do capítulo Hemisfério Ocidental, que concentra as informações sobre os países das Américas, e do sumário do verbete sobre o Brasil, é a presença no país do egípcio Mohamed Ahmed Elsayed Ahmed. Ele foi denunciado em agosto passado pelo FBI como sendo um membro da Al-Qaeda e por seu suposto envolvimento no planejamento de ataques contra os EUA. Foi a primeira vez que a agência emitiu uma nota pública dessa natureza para a região.
O CRT não informa, mas Ahmed, que vive legalmente em São Paulo, prestou depoimento para a Polícia Federal brasileira no Aeroporto de Guarulhos, sob as vistas de agentes norte-americanos. O FBI não conseguiu provar, no entanto, a ligação do egípcio com grupos terroristas e, por isso, ele continua vendendo colchões na zona leste de São Paulo. Ahmed é um dos milhares de egípcios que fugiram do país depois da queda de Muhammad Morsi, em 2013. Atualmente, calcula-se que existam mais de 60 mil prisioneiros políticos no Egito.
O esforço para provar a atuação do Hezbollah na região da Tríplice Fronteira tem envolvido o libanês Assad Ahmad Barakat, morador do Brasil. O comerciante que tem cidadania paraguaia teria desobedecido a sanções estipuladas pelo governo dos EUA contra o Irã em 2004 e estaria envolvido com lavagem de dinheiro em cassinos da região de Puerto Iguazú. Cumpriu pena no Paraguai pelos crimes de sonegação fiscal e de associação criminosa, mas a suposta conexão com práticas terroristas ainda não foi comprovada. Voltou em 2008 para o Brasil, onde tem família, mas em 2018 foi acusado de novo crime: falsidade ideológica. A pedido do governo paraguaio, foi preso por haver fraudado documentos para solicitar um novo passaporte no país vizinho. Recentemente, em 17 de julho, depois de dois anos preso, já durante a pandemia de COVID-19 e com a Ponte da Amizade fechada, as autoridades brasileiras extraditaram Barakat para o Paraguai.
É necessário também destacar a citação feita no CRT de 2019 para a mudança de nome do Grupo 3+1 para a Segurança da Tríplice Fronteira (também conhecido como Mecanismo 3+1). O grupo formado primeiramente pelos três países que dividem a fronteira passou a contar com os Estados Unidos em 2002, portanto, após o 11 de Setembro. O próprio nome demonstrava o caráter excepcional do arranjo. A nova denominação, Mecanismo Regional de Segurança, que passou a ser adotada após a visita do secretário de Estado americano, Mike Pompeo, à Argentina, em julho de 2019, ainda no governo conservador do presidente argentino Mauricio Macri, concedeu à iniciativa uma aura mais orgânica. Desta forma, procura-se naturalizar a participação norte-americana na troca de informações sobre segurança na Tríplice Fronteira, que aliás parece estar a cada dia mais presente.
* Isabelle C. Somma de Castro é bolsista Fapesp de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri-USP). Faz parte do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira e Relações Internacionais (GTF/Unila) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Foi Visiting Scholar 2018-2019 no Arnold A. Saltzman Institute of War and Peace Studies, Universidade de Columbia, com bolsa Fapesp.
** Recebido em 23 jul. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.