Economia e Finanças

Retrocessos ambientais, pandemia e desigualdade racial nos EUA

Fila por comida e máscaras, no Harlem, em NY, em abril de 2020 (Crédito: Bebeto Matthews/The Associated Press)

Por Pedro Vasques*

Como já tratado em outros textos publicados no OPEU, a administração Trump vem protagonizando mudanças em instrumentos normativos ambientais desde os primeiros dias de governo, com a flexibilização de obrigações, padrões de qualidade e, mais recentemente, a própria aplicação desses regramentos por parte da Environmental Protection Agency (EPA), a agência de proteção ambiental do governo federal norte-americano. Segundo levantamento do jornal The New York Times, até maio de 2020, era possível identificar 100 propostas de reversão da legislação ligada ao meio ambiente, as quais 66 já haviam sido implementadas, e 34 ainda estavam em andamento. Entre as mudanças mencionadas, 27 (19 já implementadas) dizem respeito a emissões e poluição atmosférica, notadamente, aquela produzida por indústrias e veículos automotores.

Tais alterações são percebidas como retrocessos, na medida em que, em meio a outros resultados, são responsáveis por impactar negativamente a saúde e a qualidade de vida da população. Isso significa dizer que a ampliação da intensidade de exposição desses sujeitos a diversos poluentes se encontra diretamente relacionada ao aumento de determinadas doenças, em especial, dos sistemas respiratório e imunológico. Nesse contexto, o contato com a poluição pode ocorrer desde o início da gestação, perpassando todas as etapas da vida humana. Incide nos indivíduos por meio de várias dinâmicas, como a exposição a alimentos contaminados, ou produzidos no âmbito de controles de qualidade mais flexíveis, a solos degradados, a águas impróprias e à vivência em espaços tornados insalubres.

Meio ambiente e pobreza

Se há poucas dúvidas a respeito da abrangência dos impactos associados aos retrocessos ambientais, é preciso ressaltar que tais desdobramentos negativos não atingem os grupos sociais de forma indistinta, do mesmo modo e intensidade.

Ao olhar especificamente para os impactos da poluição atmosférica, estudo elaborado por Mikati (et al., 2018) sobre as disparidades na distribuição das fontes de emissão de material particulado por raça e pobreza nos Estados Unidos sustenta que, para as partículas finas inaláveis (i.e., 2,5 μm ou menores – PM 2.5), aqueles em situação de pobreza estavam 35% mais expostos à poluição atmosférica do que a população no geral. Para não-brancos, esse número era de 28% e, para negros, foi identificada uma exposição 54% maior. Nesse sentido, faz-se necessário lembrar que a exposição à PM 2,5 está associada a doenças pulmonares, cardíacas e mortes prematuras, com destaque para os negros norte-americanos, que têm três vezes mais chances de morrer por causas relacionadas à asma do que a população branca.

Poor People’s Campaign, Washington, D.C., 23 jun. 2018 (Crédito: Becker1999/Flickr)

Relatório elaborado em conjunto pela National Association for the Advancement of Colored People e o Clean Air Task Force (2017) aponta que mais de um milhão de negros norte-americanos moram a menos de meia milha de distância de instalações de petróleo e gás. Nesse universo, em diversas comunidades os padrões de qualidade para ozônio decorrentes da emissão de gás natural se encontram acima do permitido, resultando no aumento de incidência de ataques de asma em crianças. Ou seja, o relatório ressalta que a proximidade de moradias e espaços de convivência com plantas industriais implica a acentuação da exposição desses indivíduos a elementos poluidores, como, por exemplo, metano, benzeno e outras substâncias químicas associadas ao aumento dos riscos de câncer e demais doenças.

Os efeitos postos pela relação entre distribuição territorial e raça apontada no referido relatório são reiterados em pesquisa realizada por Jorgenson (et al., 2020). Nela fica evidenciada a elevada influência exercida pela poluição do ar na redução da expectativa de vida. Nesse sentido, o trabalho identifica que os estados norte-americanos mais impactados são aqueles com maior desigualdade de renda e com elevada população negra.

Racismo estrutural e a pandemia

A eclosão da pandemia provocada pela COVID-19 no início de 2020 suscitou distintas respostas dos países afetados. Essa reduzida convergência de ações foi também influenciada pelas inúmeras incertezas transmitidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que, desde o início da disseminação do novo coronavírus, vem enfrentando dificuldades para lidar com a questão e produzir orientações robustas que atendessem aos mais diversos cenários. Nesse sentido, as dúvidas e os ajustes contínuos nas abordagens sugeridas pela OMS foram, em larga medida, empregadas por determinados governos para deslegitimar e ignorar medidas mais rígidas contra a disseminação do vírus.

A postura do governo federal norte-americano se notabilizou pelo enfrentamento precário da emergência sanitária, precedido de um longo período de negação, justificado também pela necessidade de manter a economia em funcionamento. Tal orientação foi encampada por vários estados, que viram de perto a situação sair de controle, demandando a adoção de medidas duras para controle do vírus em seus territórios. É o caso, por exemplo, do estado de Nova York que se caracterizou como epicentro da pandemia nos Estados Unidos. Para reverter tal quadro, teve de abandonar a postura negacionista do governo federal, em um contexto socioeconômico no qual a saúde é tratada como commodity.

Como os impactos ambientais, a pandemia também vem-se caracterizando por atingir a população de forma e intensidade distintas. Em 6 de maio, ao apresentar o balanço do vírus naquele dia, o governador do estado de Nova York, Andrew Cuomo, explicitava sua surpresa ao exibir que, apesar das medidas de isolamento social, os índices diários de contaminação não cediam e, principalmente, vinham por parte de quem já estava em casa. Essa fala chegou a ser editada e retirada de seu contexto, sendo disseminada nas redes sociais como uma espécie de argumento contrário às medidas mais duras de restrição de circulação.

O que se evidenciou naquele momento, contudo, foi que os casos permaneciam sendo registrados nas regiões periféricas e mais pobres, incidindo desproporcionalmente sobre negros, asiáticos e latinos que, quase em sua totalidade, já possuíam comorbidades e se encontravam em faixa etária superior aos 51 anos. Por estarem em suas casas, esses indivíduos usavam muito pouco transporte público. Em sua maioria, tratava-se de uma população aposentada e, principalmente, desempregada (46% dos infectados). O conjunto de dados exibido pelo mencionado balanço diário espelha a trajetória histórica de sujeição dos corpos negros observada desde a escravidão e que, em alguma medida, tem seu legado perpetuado nas políticas públicas que empurraram as comunidades negras para regiões mais pobres, densas e com menos infraestrutura, em especial, relacionada à saúde.

Sem-teto pede ajuda, Nova York, 29 nov. 2013 (Crédito: Carlo Allegri/Reuters)

Após apresentar o diagnóstico o governador afirma que havia atingido o limite daquilo que poderia ser feito pelo poder público. Caberia a esses indivíduos, portanto, a responsabilidade de seguir as orientações de saúde e de higiene pessoal, a fim de mitigar a disseminação do vírus. Ao fazer tal afirmação, Cuomo propõe um deslocamento muito comum em debates envolvendo desigualdade racial e saúde. Isto é, o enfoque no comportamento individual por parte do governador opera como uma espécie de bode expiatório para desviar a atenção do debate acerca do racismo sistêmico que permeia o estado e as instituições de saúde.

Nesse sentido, é preciso ressaltar que, a despeito da pandemia, a população negra norte-americana possui taxa de mortalidade mais elevada em relação aos brancos. Como explicita Satcher (et al., 2005), apesar da melhora da expectativa de vida dos norte-americanos entre os anos 1960 e 2000, a disparidade entre as altas taxas de mortalidade de negros e as baixas entre brancos não sofreu mudanças consideráveis ao longo do período estudado. Os autores demonstram que, em 2002, último ano da pesquisa, negros sofreram 40,5% mais mortes do que seria esperado se eles tivessem experimentado as taxas de mortalidade da população branca. Nessa mesma direção, a análise produzida por Phelan e Link (2015) aponta como o racismo, para além de fatores socioeconômicos, é fundamental para determinar as desigualdades na saúde da população negra, insistindo na necessidade de se produzir políticas públicas que levem isso em consideração.

O fosso cada vez mais largo da desigualdade racial

Um estudo recente elaborado por pesquisadores da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard (Wu et al., 2020) concluiu pela alta relação entre poluição do ar e aumento das taxas de mortalidade por COVID-19, a despeito do posicionamento de alguns céticos. A partir das análises, identificou-se que o aumento de apenas 1 μg/m³ de PM 2,5 está associado a um incremento de 8% nas mortes causadas pelo vírus. Ou seja, basta um pequeno acréscimo na exposição de longo prazo a materiais particulados finos para que haja grande elevação nas mortes associadas à COVID-19. Para além das limitações inerentes à metodologia empregada – e eventuais correções necessárias após revisão –, os resultados sublinham a importância de continuar aplicando as regulações relativas à poluição do ar para proteger a saúde humana tanto durante como após a pandemia. Tendo em vista os demais elementos trabalhados, não restam dúvidas de que os negros norte-americanos estão sendo desproporcionalmente afetados pela pandemia, e os fatores que explicitam essa dinâmica são muitos, remontando à escravidão. O aumento da poluição e a degradação histórica dos ambientes ocupados por essa parcela da população reiteram essa desigualdade.

Em semelhança aos resultados obtidos por Satcher (et al., 2005) na área da saúde, ao avaliar a desigualdade ambiental nos Estados Unidos entre 1990 e 2014 – mensurada a partir da exposição a poluentes industriais atmosféricos –, Salazar (et al., 2019) identificou que, mesmo após três décadas de ativismo e 20 anos de desenvolvimento da política pública, ainda que seja possível verificar melhorias na qualidade ambiental, houve poucos avanços na redução da desigualdade entre negros e brancos. Os autores tomaram como referência pesquisa a nível nacional realizada por Ard (2015) entre 1994 e 2005, e que identificou resultados similares.

Nesse contexto, se as comemorações do Juneteenth – marcadas em 2020 pelo assassinato de George Floyd e pela subsequente profusão de manifestações e de movimentos, inclusive o Black Lives Matter –, entre outros, reiteram que a justiça para os negros nos Estados Unidos sempre veio de forma tardia, trabalhos como de Satcher (et al., 2005), Ard (2015) e Salazar (et al., 2019) explicitam facetas contemporâneas desse racismo estrutural.

Sob a administração de Trump, os retrocessos na política ambiental implicam tanto o alargamento da dimensão temporal desse atraso, como o aprofundamento da desigualdade racial nos seus mais variados aspectos. E, se a queda na saúde e na qualidade de vida associada à flexibilização das normas de meio ambiente não parece ser suficiente para sensibilizar a sociedade norte-americana, os registros do número de negros, latinos e demais minorias infectados e mortos pelo vírus explicitam de forma pública, flagrante e diária o alargamento da desigualdade racial no país.

 

* Pedro Vasques é pós-doutorando pelo INCT-INEU, pesquisador associado do Cedec e doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

** Recebido em 27 jun. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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