Acordo comercial Brasil-EUA: mais um jogo de soma zero em favor da potência hegemônica
Winsor McCay, Buy American Policy, Editorial Cartoon Illustration Original Art (New American, c. 1930s)
Por Robson Coelho Cardoch Valdez*
O Observatório de Política dos Estados Unidos (OPEU) publicou, em 13 de junho, um informe (America First) que pontua como a política externa bolsonarista foi incapaz de gerar resultados concretos a partir de seus objetivos que contemplam, dentre outras coisas, o alinhamento com os Estados Unidos. O primeiro ano de governo Bolsonaro, afirma o estudo, foi marcado pela falta de reciprocidade do governo americano em relação às várias ações voluntaristas do governo brasileiro que visavam ao estreitamento das relações entre os dois países.
“Apesar de Trump e Bolsonaro compartilharem afinidades e valores ideológicos, quando analisados episódios que compuseram parte significativa da agenda da administração brasileira a partir de janeiro 2019, ou acordos assinados em seu mandato, é evidente a falta de real reciprocidade. Pensemos em alguns casos, tais como a Fusão da Boeing com a Embraer, o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) de Alcântara e o Acordo de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação (RDT&E) e a isenção de Vistos aos Norte-Americanos, bem como a posição dos EUA e o interesse do governo pelo ingresso na OCDE. Pensemos também nas relações econômico-comerciais em geral” (AMERICA FIRST, 2020).
No que diz respeito às relações comerciais com os Estados Unidos, a política externa do Presidente Bolsonaro demonstra um desejo ingênuo e amador de firmar um acordo comercial com os Estados Unidos que, apesar do discurso do livre-comércio, impõe restrições (quotas, sobretaxas, restrições técnicas e fitossanitárias) à entrada do açúcar, do aço, do suco de laranja, dos calçados, dos têxteis, das carnes bovinas e de aves, do etanol e das frutas e legumes no mercado norte-americano. Os Estados Unidos condenam todas as políticas de conteúdo nacional do Brasil e a atuação de fomento do BNDES, mas defendem sua mais famosa política de conteúdo local, o Buy American e a atuação do seu principal órgão de apoio às exportações americanas, o Ex-Im Bank.
Ainda que se diga o contrário, quando se trata de acordos bilaterais, esses tratados são na maioria das vezes um jogo de soma zero em que o país “mais forte” sempre ganha. Quando se trata de um acordo multilateral, os países “mais fracos” veem essas perdas serem atenuadas por conta de cláusulas especiais que beneficiam países em desenvolvimento. Vale lembrar que o governo Bolsonaro aceitou renunciar ao seu status de país em desenvolvimento no âmbito da OMC como condição à promessa americana de acesso à OCDE. Esses resultados de soma-zero se explicam pela gritante assimetria entre os diversos graus de desenvolvimento econômico e social que acabam se refletindo na competitividade dos países na cena internacional. Tomemos, então, como exemplo os acordos de livre-comércio dos Estados Unidos.
De acordo com os dados do United States Trade Representative (USTR), os Estados Unidos possuem tratados de livre-comércio e investimentos em vigor com 20 países. São eles: Austrália, Barein, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Guatemala, Honduras, Israel, Jordânia, Coreia do Sul, México, Marrocos, Nicarágua, Omã, Panamá, Peru e Singapura. De um lado, tem-se os EUA com um PIB de US$ 21,4 trilhões e um mercado consumidor de 329 milhões de habitantes; do outro, os países mais populosos dessa lista de parceiros comerciais são Colômbia (50,3 milhões), Coreia do Sul (51,8 milhões) e México (125,9 milhões). Em seguida, têm-se nove países com menos de 10 milhões de habitantes, quatro países com até 20 milhões de habitantes e quatro países com até 40 milhões de habitantes. Desses países, somente México, Canadá, Coreia do Sul e Austrália possuem PIB superior a US$ 1 trilhão. O PIB dos países centro-americanos que assinaram acordos de livre-comércio com os EUA varia de US$ 12,53 bilhões a US$ 89,48 bilhões.
A única coisa em comum entre esses parceiros comerciais dos Estados Unidos é que todos eles possuem um mercado doméstico relativamente pequeno e pouco atrativo para os fluxos de investimento estrangeiro direto (IED). Tal característica os conduz, quase que naturalmente, ao mercado internacional como principal estratégia para o desenvolvimento do país. A elevada participação do comércio internacional na formação dos seus respectivos PIBs também pode ser observada. Excluindo-se Austrália, Canadá, Chile e Coreia do Sul, todos os demais países são países subdesenvolvidos.
Ainda que as relações dos EUA com Austrália, Canadá e Coreia do Sul sejam menos assimétricas, elas seguem sendo assimétricas. As tropas americanas estacionadas na Coreia do Sul têm alguma influência sobre as relações comerciais entre os dois países? Certamente! Já quando a assimetria é bem reduzida, os acordos de livre-comércio são mais difíceis de serem concluídos. É o caso por exemplo do Japão e da União Europeia.
Isso ajuda a entender, por exemplo, porque os EUA ainda não fecharam um acordo comercial com o Japão, que tem um PIB de US$ 5,15 trilhões, uma população de 125 milhões de habitantes, elevados níveis de desenvolvimento econômico e social e uma indústria altamente competitiva. Os EUA buscam, também, desde meados dos anos 1990, estabelecer um acordo de comércio e de investimento que se transformou na proposta da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento com a União Europeia. O bloco europeu tem um PIB de US$ 18,29 trilhões e uma população de 511,33 milhões de habitantes. Observa-se, nesses casos, que não são questões ideológicas que dificultam a celebração desses acordos, como muitas vezes se pensa sobre o acordo entre o Mercosul e a União Europeia. A demora pode ser atribuída ao fato de que quanto mais simetrias houver entre as partes, mais complexa será a negociação entre os diversos grupos de interesse dos países interessados em proteger suas posições domésticas e ansiosos para explorar o excedente econômico no novo mercado a ser consolidado.
Assim, levando-se em consideração que a busca do excedente econômico internacional por meio do estabelecimento de acordos de livre-comércio e de investimento é um dos objetivos básicos dos países que buscam uma inserção competitiva no sistema internacional, qual seria, então, a capacidade do estado de El Salvador, da Nicarágua, do Barein, da Guatemala, da Colômbia (que também conta com tropas norte-americanas instaladas em seu território), ou do México, que exporta 80% dos seus produtos para os EUA, de fazerem frente à projeção de poder dos Estados Unidos e de suas empresas nas negociações comerciais? A resposta para essa pergunta retórica lança luz sobre a forma amadora como a política externa brasileira vem sendo tratada nesse primeiro ano da administração Bolsonaro, desconsiderando a condição de subdesenvolvimento do país e como tal condição interfere nos diferentes graus de sensibilidade e de vulnerabilidade do Brasil no âmbito do sistema internacional.
* Robson Coelho Cardoch Valdez é pós-doutorando em Relações Internacionais IREL/UnB, doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS) e pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos/IREL-UnB. Autor dos livros Política Externa e a Inserção Internacional do BNDES no Governo Lula (Appris, 2019) e Subindo a Escada – a internacionalização de empresas nacionais no Governo Lula (Appris, 2019).
** Artigo originalmente publicado no site Sul21, em 16 de junho de 2020. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.