Menos profissionais, mais subordinação: Pompeo cobra explicações da OPAS sobre ‘Mais Médicos’
Crédito da foto: Yamil Lage/AFP via Getty Images
Por Henrique Zeferino de Menezes e Daniela Prandi*
O presidente Donald Trump tem acusado a Organização Mundial da Saúde (OMS) de negligência e incapacidade de gerir a crise de saúde internacional gerada pela disseminação da COVID-19. Recentemente, após anunciar a suspensão do repasse de recursos, afirmou que os Estados Unidos cortariam todos os laços com a organização. Em mais um capítulo da pressão norte-americana sobre a OMS, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, durante uma entrevista coletiva, acusou a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) de contribuir com a exploração de trabalho forçado dos profissionais de saúde cubanos enviados em missões sanitárias internacionais, normalmente para países em condições de grave vulnerabilidade social, ou em situação de calamidade pública. De forma clara e direta, o secretário mencionou o programa brasileiro “Mais Médicos”, ao afirmar que exigirá da OPAS explicações sobre seu papel no acordo celebrado entre Brasil e Cuba.
Ingerência e pressão dos EUA
Fazendo uso da mesma retórica utilizada por Trump em suas acusações e ameaças à OMS, Pompeo afirmou que os Estados Unidos continuarão a pressionar as organizações internacionais que fazem uso de recursos dos contribuintes norte-americanos a serem mais transparentes em suas decisões e na destinação destes repasses. Em termos abstratos, exigir mais transparência nos processos decisórios de organizações internacionais e mais clareza na utilização de recursos é algo justo e desejável. Entretanto, a fala de Pompeo externaliza mais um capítulo da pressão norte-americana sobre a OMS, agora, por intermédio de sua regional do continente americano. Ainda, amplia as pressões sobre Cuba, que tem na cooperação médica internacional uma fonte de status e de receita, além de expor o governo brasileiro a mais uma situação constrangedora de uma relação de subordinação aos EUA já acentuada.
Em outra ocasião, representantes da administração Donald Trump, incluindo o próprio Pompeo e o embaixador norte-americano junto à Organização dos Estados Americanos (OEA), Carlos Trujillo, já haviam criticado Cuba e suas práticas de cooperação internacional, alegando que seriam formas contemporâneas de tráfico de pessoas e de exploração de trabalho forçado. Sempre em tom ameaçador, recomendaram que os países deixassem de aceitar apoio médico cubano, alertando que esses não mais poderiam alegar não conhecer “as verdades” por trás das práticas da Ilha.
A tensão entre governo Trump e o país caribenho não causa estranheza, mas Pompeo também direcionou suas críticas a dois países aliados, Catar e África do Sul, por receberem mais de 400 profissionais cubanos, em meio ao desafio de lidar com a pandemia do novo coronavírus. Nas palavras de Pompeo, ecoando o discurso trumpiano, Cuba estaria se aproveitando de uma pandemia para manter um sistema de exploração de trabalhadores.
Havana tem um longo e mundialmente reconhecido histórico de cooperação internacional em saúde, tendo como mote o envio de profissionais para regiões carentes, ou em situação de calamidade. Aos interessados, já existe uma ampla literatura sobre o tema, com destaque para a obra de Julie M. Feinsilver. Recentemente, uma brigada de profissionais de saúde do país caribenho desembarcou no norte da Itália, para fortalecer um sistema de saúde abalado pela pandemia. Ao todo, 22 brigadas sanitárias se mobilizaram na luta contra a COVID-19 em mais de 20 países. Em 2014, Cuba respondeu aos apelos da OMS e ofereceu ajuda no combate ao Ebola na África Ocidental, em outro caso de grave emergência internacional de saúde, como relatam e analisam Enrique Chaple e Mary Mercer, no artigo “The Cuban Response to the Ebola Epidemic in West Africa: Lessons in Solidarity”, publicado em 2017 no periódico International Journal of Health Services.
Ampla agenda de colaboração
Não é apenas em situações de emergência que Cuba oferece apoio mundialmente. No caso da cooperação com o Brasil, que levou à construção do projeto “Mais Médicos para o Brasil” (PMMB), o objetivo era tentar reverter um quadro histórico de oferta inadequada e de má distribuição geográfica de médicos na Atenção Primária à Saúde (APS) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de problema reconhecido desde as primeiras estratégias de expansão do Programa Saúde da Família (PSF) e das diversos tentativas de atração e fixação de profissionais médicos em pequenos aglomerados urbanos e regiões remotas.
A inovação do PMMB estava na utilização das potencialidades dos arranjos de cooperação técnica já desenvolvidos pelo Brasil e na interseção entre uma política pública essencial e as prerrogativas de uma política externa autonomista. A presença de médicos cubanos nos quadros da APS brasileira não se limitava ao aumento da oferta de profissionais e a uma distribuição mais homogênea dos mesmos – o que de fato aconteceu com grande sucesso. A proposta também tinha como missão o compartilhamento de expertise que levasse a transformações reais no sistema de saúde brasileiro. Ou seja: realizar aquilo que se afirma no discurso sobre as práticas de cooperação Sul-Sul. Análise do programa dentro dos marcos da política internacional de cooperação do Brasil e seus efeitos pode ser encontrada na dissertação de Mestrado de Daniela Prandi, “Avaliando a cooperação internacional para o desenvolvimento: análise dos efeitos do Programa Mais Médicos para o Brasil na Paraíba”, defendida em 2019, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
No Brasil, especificamente, o Programa Mais Médicos envolveu três eixos: a requalificação das Unidades Básicas de Saúde (Requalifica UBS); a reestruturação dos componentes curriculares dos cursos superiores de Medicina; e a melhoria na oferta e distribuição de médicos na atenção primária à saúde. A atração de médicos para o país era apenas um dos eixos, e a colaboração com OPAS e Cuba se deu apenas após a impossibilidade de completar os quadros necessários com médicos brasileiros registrados nos conselhos nacionais de Medicina, com médicos brasileiros habilitados no exterior e com médicos estrangeiros habilitados no exterior. Assim, o acordo internacional firmado com o país caribenho ganhou o nome de projeto “Mais Médicos para o Brasil”, como parte do “Mais Médicos”.
Coube à OPAS o papel de articulação entre os governos brasileiro e cubano para garantir a plena execução do projeto. A organização estruturou o Projeto de Cooperação para o Mais Médicos (PCMM), responsável por estruturar o modus operandi, a administração de recursos financeiros, a seleção, o deslocamento e a alocação dos médicos cooperados. Também coube à OPAS a formalização do contrato com a Sociedad Mercantil Cubana Comercializadora de Servicios Medicos Cubanos S.A, empresa pública responsável pelo gerenciamento das contratações dos médicos cubanos, como relatam Joaquín Molina, Renato Tasca e Julio Suares no artigo “Monitoramento e avaliação do Projeto de Cooperação da OPAS/OMS com o Programa Mais Médicos: reflexões a meio caminho”, de 2016. A parceria Brasil-OPAS-Cuba produziu, na verdade, o maior e mais robusto programa de cooperação internacional em saúde já gerido por esta organização regional.
Silêncio do Planalto e do Itamaraty
A pressão dos EUA sobre a OPAS e Cuba, fazendo uso de um projeto implementado pelo Brasil, representa mais um episódio de vexame para a diplomacia brasileira e quase um atentado à soberania nacional, em razão do silêncio das nossas autoridades. Conforme mencionado, o programa “Mais Médicos” foi uma experiência bem-sucedida de cooperação internacional, assim como uma resposta pública a um problema crônico no Brasil. Alcançou resultados expressivos em melhoria dos indicadores de saúde no país, ao atender, em especial, os rincões mais afastados e historicamente invisibilizados do Brasil.
É verdade que as manifestações de 2013 foram o gatilho para a adoção da política, entretanto, trata-se de uma decisão pública soberana para lidar com um problema social grave, fazendo uso da política externa e da cooperação internacional como instrumentos para catalisação de respostas comprovadamente eficientes e já testadas em outros países e ocasiões. Apesar da profunda e, em muitos casos, grosseira politização do tema e do programa no Brasil, tanto a inconstitucionalidade como a ilegalidade da forma de contratação dos médicos foram afastadas por decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior do Trabalho, que esclareceu quaisquer dúvidas sobre a relação jurídico-administrativa dos profissionais com o governo federal.
A ausência de qualquer resposta por parte do governo brasileiro, mesmo a publicação de uma nota protocolar, sinaliza mais uma vez a subserviência do Brasil aos Estados Unidos no momento atual, incapaz de sustentar a legalidade de suas decisões e reafirmar o direito à saúde como um compromisso do país. No mesmo sentido, demonstra um alinhamento subalterno e inconsequente à agenda norte-americana de enfraquecimento das instituições internacionais de saúde. Muito diferente da postura do presidente brasileiro diante das acusações e ameaças vindas dos Estados Unidos, o presidente cubano as rebateu, alegando que se tratam de mentiras e calúnias com o propósito de prejudicar um programa de cooperação internacional histórico e bem-sucedido.
* Henrique Zeferino de Menezes é pesquisador do INCT-INEU e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Daniela Prandi é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba.
** Recebido em 11 de junho de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.