America First
Trump e Bolsonaro na cúpula do G20, em 2019 (Crédito: AFP via Getty Images)
A agenda bolsonarista não foi capaz de gerar qualquer resultado concreto até mesmo em termos dos objetivos propostos de política externa pelos seus formuladores
Por Laís Forti Thomaz e Tullo Vigevani*
A identificação dos pontos relevantes da agenda entre Brasil e Estados Unidos a partir de janeiro 2019 traz elementos significativos a respeito da mudança de orientação da administração Bolsonaro em relação a aspectos importantes da tradição diplomática anterior. Mas também apresenta aspectos de continuidade em relação à administração Temer.
A respeito da possibilidade de modificações extremas da política externa brasileira, há opiniões divergentes. Maiores divergências ainda no que se refere à capacidade de as mudanças produzirem resultados para o interesse nacional. Segundo o ministro Ernesto Araújo em artigo publicado em 2017, no Itamaraty se aprende que o Brasil deve evitar toda submissão a um bloco, visando a uma política externa autônoma. Entretanto, o ministro argumenta a necessidade de profunda identificação com o Ocidente, para ele representado por Trump, e que a política externa do Brasil necessita de uma meta política externa e também uma teopolítica, indicando a necessidade de total reposicionamento.
Há outras análises a respeito do significado das mudanças em curso.
Segundo Sebastião Velasco e Cruz, em artigo de 2019, a interpretação da atual política externa apenas pode ganhar um sentido se adotada a perspectiva instrumental de interesses privados para o fortalecimento do próprio grupo Bolsonaro. O diplomata Paulo Roberto de Almeida, forte crítico da política do Partido dos Trabalhadores, analisa a ação externa da administração Bolsonaro como tendo levado o Brasil a romper totalmente com sua própria história. Argumenta que há alinhamento total com os Estados Unidos, sobretudo com a diplomacia de Trump, e afirma haver extrema subserviência. Guilherme Casarões também defende que há uma separação entre a política externa de Bolsonaro e a de décadas anteriores, a qual prezava por uma aproximação com o Sul Global, sem deixar de ter aproximações com o Ocidente, priorizando a via multilateral. Maria Regina Soares de Lima e Marianna Albuquerque, com argumentação diferente, afirmam que o uso ostensivo da ideologia e mesmo o alinhamento com os Estados Unidos não são novos na política brasileira. Os elementos novos, para elas, seriam os métodos utilizados e a busca instrumental do caos.
Apesar de Trump e Bolsonaro compartilharem afinidades e valores ideológicos, quando analisados episódios que compuseram parte significativa da agenda da administração brasileira a partir de janeiro 2019, ou acordos assinados em seu mandato, é evidente a falta de real reciprocidade. Pensemos em alguns casos, tais como a fusão da Boeing com a Embraer, o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) de Alcântara e o Acordo de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação (RDT&E) e a isenção de vistos aos norte-americanos, bem como a posição dos EUA e o interesse do governo pelo ingresso na OCDE. Pensemos também nas relações econômico-comerciais em geral.
A fusão assimétrica da Embraer com a Boeing, em negociação há anos, acelerada no governo Temer e concluída depois da posse de Bolsonaro, estava em linha com a proposta dos formuladores da política econômica. Por um lado, portanto, do ponto de vista dos interesses da administração, a venda teria sido levada a bom termo. Por outro, não se tratava efetivamente de fusão, mas de venda, onde o grupo Embraer original, pelo contrato deteria 20% do capital da nova empresa. A venda tornaria a tecnologia de projeto, segundo seus críticos e a literatura internacional sobre o tema, também subordinada ao novo proprietário. O Brasil perderia capacidade de desenvolvimento de P&D. A crise econômica iniciada em 2020, com reflexos intensos no setor de aviação, e a desistência da Boeing do negócio em 25 de abril confirma as consequências negativas do acordo. Mesmo antes de conhecido seu fracasso, sob o ponto de vista da capacitação nacional, a avaliação é negativa.
O Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) de Alcântara e o Acordo de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação (RDT&E) tiveram suas negociações iniciadas em governos anteriores. O governo Bolsonaro acredita em ganhos estratégicos a partir da parceria militar e tecnológica com os Estados Unidos. No entanto, há críticas às consequências deles. Diferentes segmentos na sociedade – elites políticas, econômicas, científicas e militares – avaliam esses acordos segundo seus valores no tocante a autonomia, soberania, multilateralismo e possibilidades de ganhos específicos. As críticas que avaliam negativamente os acordos, mostram como os riscos existem, sem que qualquer dos resultados apontados pelo governo estejam assegurados.
Sobre a isenção de vistos para turistas norte-americanos e outros países pelo Brasil, o governo considerou que o interesse da indústria do turismo deveria se sobrepor à tradição diplomática brasileira e mesmo ao princípio da reciprocidade, consagrado pelo direito internacional. A crítica é que essa medida representou uma concessão unilateral estranha aos princípios defendidos pelo Ministério das Relações Exteriores. Comprometeu a capacidade de barganha do Brasil em tema que, em princípio, poderia ser negociado visando a contrapartidas equivalentes. Ainda que esteja negociando a adesão ao Global Entry – de interesse dos empresários brasileiros –, esse episódio evidencia a baixa reciprocidade no atendimento da parte norte-americana das demandas brasileiras.
Em relação ao interesse pelo ingresso na OCDE, a cooperação do país com esta organização tem um longo histórico. O apoio dos Estados Unidos a partir de janeiro de 2019, e mesmo antes, ao ingresso pleno é interpretado como parte da parceria, ainda que sem reciprocidade. Por isso, a administração brasileira se dispôs unilateralmente a renunciar ao status de país em desenvolvimento na OMC. Entretanto, a oscilação do apoio do governo norte-americano reforça a ideia de concessões. Os reiterados posicionamentos de Trump e de de seu secretário de Comércio, Wilbur Ross, indicam a capacidade de utilização de seu excesso de poder em relação a outros países para seus próprios interesses. A agenda brasileira apresentou baixo poder de barganha. Adicionalmente, os Estados Unidos retiraram o Brasil dos benefícios de seu Sistema Geral de Preferências e, com isso, poderão impor mais barreiras à importação de produtos. Se fosse o caso, o Brasil poderia ter-se utilizado de uma estratégia de aliança conjunta com os demais países do BRICS para negociar sua adesão à OCDE e, assim, vislumbrar maiores ganhos estratégicos, fortalecendo o multilateralismo.
No plano das relações comerciais, é observada uma agenda fortemente demandante de parte dos empresários, em geral representados por associações como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Conselho Empresarial Brasil Estados Unidos (CEBEU) e a Câmara do Comércio Americana no Brasil (Amcham). Essas demandas do empresariado não apresentam novidades substantivas quando comparadas a períodos anteriores. A ideia de redução de barreiras tarifárias e acesso ao mercado consumidor dos Estados Unidos é uma pauta histórica. A partir da administração Temer, essas demandas tiveram maior projeção. Com Bolsonaro, a expectativa desses grupos empresariais é de avançar em um acordo de regras comerciais, que está na agenda do Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR) desde março de 2020, após o encontro dos dois presidentes na Flórida.
A estratégia empresarial seria não entrar em questões tarifárias nesse primeiro momento, para não precisar da aprovação parlamentar e não provocar questionamentos no quadro do Mercosul. As associações empresariais também pressionam para um acordo mais abrangente que pudesse caminhar para uma área de livre-comércio no longo prazo. Os representantes do Partido Democrata – que têm maioria na Câmara dos Deputados dos EUA – na Comissão de Orçamento e Tributos (Ways and Means), em 3 de junho de 2020, declararam que são contra qualquer acordo comercial com o Brasil de Bolsonaro. Vale ressaltar que esta é a comissão mais importante no Congresso norte-americano. A CNI, em documento divulgado em maio de 2020, mostra interesse na manutenção do Mercosul pela importância que tem uma união alfandegária para a enfraquecida indústria brasileira. Portanto, demonstra-se difícil qualquer acordo, exatamente pela imagem do governo Bolsonaro.
O que surge como novidade a partir de 2019 na área comercial é a postura do governo brasileiro envolvido pela crença da absoluta prioridade da melhora das relações com os Estados Unidos e a administração Trump. Como estamos examinando, esta postura não encontra qualquer reciprocidade. Claro exemplo é a ampliação unilateral da cota de importação do etanol, que beneficia diretamente os produtores dos Estados Unidos, sem ter negociado a abertura do mercado do açúcar brasileiro com os norte-americanos. Nesta mesma direção, a criação da cota sem incidência de tarifas para o trigo dos Estados Unidos, apesar das regras do Mercosul, o que atingiu negativamente as relações do Brasil com a Argentina, e também foi criticada pelo produtores de trigo do Rio Grande do Sul. Mesmo com tais medidas, Trump não poupou declarações e ameaças às exportações brasileiras de aço e alumínio, alegando que o Brasil estaria, propositalmente, desvalorizando sua moeda. Tampouco se comprometeu e não assumiu nenhuma posição que assegurasse não voltar a utilizar as sobretaxas. A sinalização é clara: os Estados Unidos, apoiados em sua posição assimétrica favorável, não fazem promessas. A concretização dos objetivos da agenda brasileira dependerá do atendimento de parte dos Estados Unidos de seus próprios interesses, como o lema evidenciado pelo slogan “American First”.
Quando examinados os dados macroeconômicos, em especial os da balança comercial, o Brasil é um dos poucos países no mundo que vem mantendo há anos déficit no seu balanço justamente com os Estados Unidos. Considerando os poucos países com os quais os Estados Unidos têm superávits, nota-se que, em relação ao Brasil, o superávit a favor dos norte- americanos aumentou US$ 3,9 bilhões de 2018 para 2019. Configurando-se o Brasil o país com o qual os Estados Unidos tiveram maior crescimento deste mesmo superávit. Mesmo sabendo que a importância das relações bilaterais vai bem além dos números do comércio, o fato é que este déficit não é objeto de negociação.
Considerando esses fatos, podemos perceber uma mudança radical de orientação internacional. É importante sinalizar que muitas das negociações não tiveram origem neste governo, porém a forma pela qual foram levadas adiante demonstraram a alteração de valores e estratégias.
No que se refere aos ganhos esperados por essa mudança, nossa interpretação é que no balanço geral, a resposta depende da Weltanschauung da qual se parte. O argumento das áreas econômicas da equipe de Bolsonaro é que a aproximação com os Estados Unidos é importante pelos seus potenciais benefícios. Posição essa que havia sido defendida no período dos governos do PT pelos seus opositores. Parte do núcleo duro da administração Bolsonaro considera a estreita relação com o governo norte-americano como necessária e de interesse maior para o Brasil. Tanto no plano econômico, quanto no estratégico e no político. Os ganhos esperados, em especial pela ala econômica do governo, seriam no sentido de posicionar o Brasil como um país confiável para os países desenvolvidos e assim atrair mais investimentos, reforçando as demandas pela maior inserção nas cadeias globais de valor. Segundo seus formuladores, passaria por uma estratégia de diminuição do papel do Estado na economia. Até fevereiro de 2020, portanto antes da depressão resultante do COVID-19, não havia qualquer resultado positivo.
Fica a pergunta: se a estratégia é perdedora, a posição brasileira vai se enfraquecendo pela deterioração da confiabilidade internacional no Brasil em razão da crescente crise de suas instituições, o que estimula a administração a perseguir este caminho de alinhamento subalterno?
Atualmente, prevalece a concepção de uma nova guerra-fria, daí os ataques sabidamente absurdos aos potenciais adversários dos Estados Unidos, como a China. O motor que impulsiona as relações com os Estados Unidos são o alinhamento, portanto a rejeição do multilateralismo, da prevalência do direito internacional, o afastamento da América Latina e dos BRICS, etc.. São questões totalmente afastadas dos objetivos históricos declarados da política externa, conforme artigo publicado em 8 maio de 2020 na Folha de S. Paulo de todos os ex-ministros das Relações Exteriores desde 1990.
Bolsonaro aponta para a rejeição de tecnologias não desenvolvidas pelos Estados Unidos, inclusive nos campos inovadores e definidores para o século XXI, como 5G, inteligência artificial, etc., na expectativa de ganhos com os norte-americanos. Entretanto, Trump anfitrião do próximo G7, propõe chamar também Rússia, Coreia do Sul, Índia e Austrália quando a reunião acontecer, mas o Brasil não é citado, ao menos até este momento. Quando o presidente norte-americano cita os países com pior desempenho no combate à COVID-19, o Brasil é sempre citado com destaque, e por isso, tem adotado medidas para evitar que os brasileiros tenham acesso a seu país.
O estudo da verificação da agenda e do processo de negociações bilaterais com os Estados Unidos demonstra que as expectativas e demandas são constantemente frustradas. A agenda bolsonarista não foi capaz de gerar qualquer resultado concreto até mesmo em termos dos objetivos propostos de política externa pelos seus formuladores. Se não foi capaz de produzir qualquer resultado em relação ao país com o qual foram feitas as maiores concessões, o enfrentamento a grande parte da comunidade internacional, países e organizações como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU), terá custos altos, que poderão ser sanados apenas em décadas.
* Laís F. Thomaz é professora da Universidade Federal de Goiás (UFG). Tullo Vigevani é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC). Ambos são pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
** Artigo originalmente publicado no site A terra é redonda, em 10 de junho de 2020. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.