Protestos nos EUA: o que está em jogo nas relações entre Trump e os militares
Presidente Trump segue para a St. John’s Church, junto com (em segundo plano, da esq. para dir.) o procurador-geral dos EUA, William Barr; do secretário da Defesa, Mark Esper; e do chefe do Estado-Maior-Conjunto, general Mark Milley (Crédito: Brendan Smialowski/AFP)
Por Augusto W. M. Teixeira Júnior*
Em 25 de maio, George Floyd foi morto em decorrência de uma ação policial em Mineápolis, Minnesota. Desde então, cidades dos Estados Unidos assistem diariamente a protestos de grande vulto, inflamados pela tragédia de mais um cidadão negro morto por agentes do Estado. Fatores como racismo, desigualdade social e injustiça mobilizam ondas de manifestações, algumas das quais evoluíram para situações de violência, como saques, depredações de patrimônio e ataques contra forças de segurança. A nova crise que perdura há quase duas semanas trouxe consigo um componente inesperado para os já difíceis desafios enfrentados pela administração Trump: uma possível crise nas relações entre o presidente e os militares.
Em 1º de junho, uma semana após o falecimento de Floyd e com o alastramento da onda de protestos pelo país, o presidente Trump considerou o emprego das Forças Armadas em ações de garantia da lei e da ordem (law enforcement operations) como forma de conter atos de violência perpetrados por manifestantes. Essa ação se daria com, ou sem, o consentimento de governadores, os quais o presidente considerava como fracos, ou coniventes com a situação. Para além do discurso inflamado, Trump realizou um importante ato simbólico para demonstrar força, união de seu gabinete e apelo a valores tradicionais. Logo após o pronunciamento, o presidente seguiu para frente da St. John’s Church, ocasião em que tirou fotos com uma bíblia em punho, imprimindo ao feito um importante simbolismo.
Tentativa de demonstração de força
A jogada arriscada em momento de tensão nacional produziu, no entanto, novas ondas de instabilidade, agora em outro front. Na caminhada mencionada acima, o presidente estava acompanhado de membros de seu governo, com destaque aqui para o secretário de Defesa, Mark Esper, e o chefe do Estado-Maior Conjunto (Joint Chiefs chairman), general Mark Milley. A ida de Trump e de sua comitiva até a St. John’s Church foi possível apenas depois de as forças de segurança expulsarem violentamente os manifestantes e jornalistas que ocupavam o parque Lafayette.
Para um presidente que um dia antes fora obrigado a se refugiar em um bunker na Casa Branca, devido aos protestos, a apresentação de força e liderança no dia 1º de junho buscava marcar posição de Trump como líder resoluto diante da crise, pautando também a diferença de si mesmo em comparação à reação de opositores democratas. Essa tentativa de demonstração de força pode, contudo, ter provocado uma crise com militares, da reserva e da ativa, com importantes consequências para as eleições de 2020 e para as relações civil-militares.
Primeiramente, apesar de episódios de violência terem sido registrados ao redor dos Estados Unidos, os protestos têm sido pacíficos em sua maioria. Ao ameaçar empregar militares “altamente armados” contra a população civil que se manifesta resguardada em seus diretos constitucionais, Trump foi percebido como flertando com o abuso de poder presidencial e de suas prerrogativas. Em segundo lugar, nos locais nos quais ocorrem os protestos, governadores podem fazer uso das Guardas Nacionais, as quais são estaduais e presentes em todos os estados do país. Não apenas os meios disponíveis para debelar episódios de violência não parecem ter sido esgotados, como os governadores não parecem ter sido omissos no tocante às suas responsabilidades na garantia da lei e da ordem. Um terceiro ponto que merece destaque especial é que a afirmação por parte do presidente Trump de fazer uso das Forças Armadas para debelar as ações de violência no contexto dos protestos estaria ligada ao Insurrection Act de 1807.
Mecanismos legais
Utilizado em outros momentos dos EUA por administrações democratas e republicanas, o mecanismo legal foi colocado em vigor de forma exemplar em 1992. Na ocasião, o emprego de forças militares da ativa se deu em resposta a uma onda de violência que tomou conta dos protestos em Los Angeles em decorrência do assassinato de Rodney King. A supracitada legislação constitui uma exceção significativa no tema do uso das Forças Armadas no âmbito doméstico, algo que historicamente se buscou limitar ao longo da história dos Estados Unidos. Mais do que isso, o Insurrection Act permite ao presidente sobrepujar a autoridade do governador, quando diante de um cenário de emergência que a autoridade local não tenha capacidade de enfrentar, ou não esteja disposta a fazê-lo.
Por essa razão, a volta da discussão sobre o supramencionado regramento trouxe consigo outro importante aspecto: o Posse Comitatus Act. Criado em 1878, o Posse Comitatus Act buscou limitar drasticamente o uso de tropas federais nos territórios do sul dos Estados Unidos. A supracitada lei criou um legado robusto para a regulação e, mais importante, limitação das hipóteses de emprego das Forças Armadas no território nacional. O próprio Insurrection Act (10 USC Sections 251-255) consiste em uma excepcionalidade do Posse Comitatus Act.
A preocupação em restringir o uso do poder militar no âmbito doméstico está vinculado ao credo democrático liberal, à subordinação castrense ao poder civil e ao entendimento de que, como instrumento de Estado, as Forças Armadas não devem ser politizadas. Essa leitura ganha aderência quando se leva em conta que, ao se discutir sobre as Forças Armadas dos EUA, refere-se a forças que possuem, desde a década de 1940, um perfil expedicionário, que se preparam majoritariamente para operações de combate de alta intensidade e que prezam manter um elevado nível de prontidão operacional para agir em contingências em qualquer lugar do globo.
Seguindo a tradição da república romana, na qual um general não deve cruzar o Rubicão com suas tropas, nos Estados Unidos o emprego doméstico do Exército e da Força Aérea (outros ramos como U.S. Marine Corps possuem regramentos limitantes próprios) é mormente raro, temporário e calcado em uma legislação que reverbera o valor da subordinação do poder militar às autoridades civis constituídas. Por essa razão, mesmo que ligada ao U.S. Army, a existência de uma força intermediária como a Guarda Nacional é tão importante.
Diante de tal cenário, a possibilidade de invocação do Insurrection Act por Trump foi percebida por membros da comunidade de defesa nos Estados Unidos como uma possível transgressão da tradição de autorrestrição quanto a prerrogativas presidenciais. No caso, percebeu-se o potencial efeito de trazer consequências para as Forças Armadas daquele país, tais como o uso político no âmbito doméstico do instrumento militar e, pior, a politização de uma instituição de Estado.
Politização das Forças Armadas
Em pleno ano eleitoral, no qual o presidente se encontra em confronto com governadores democratas, o uso de militares federais em situações de contestável legalidade foi percebida como um risco de uso político das Forças Armadas. Mais do que isso, a “Photo Op” diante da St. John’s Church, próximo à Casa Branca, teve como efeito trazer para o espectro da politização a figura do secretário da Defesa e de militares da ativa.
Em decorrência do ato e de suas repercussões negativas, surgiram vozes dissonantes em relação à postura do presidente por parte de importantes atores, tais como o chefe do Estado-Maior Conjunto, o secretário da Defesa, Mark Esper, o ex-secretário da pasta James Mattis, entre outros. Entre os pontos centrais de divergência, está a contrariedade, por parte dos militares, em perceber que as ruas dos Estados Unidos não podem ser entendidas, nem tratadas, como um espaço de batalha a ser dominado, o que reverbera uma posição negativa à militarização da resposta aos conflitos políticos no mundo civil.
Subordinados à Constituição a qual juraram proteger, militares da reserva e da ativa, como os generais Mattis e Mark Milley, rompem o véu do debate público sobre as atribuições das Forças Armadas, os limites constitucionais das prerrogativas presidenciais e a defesa dos valores basilares da república estadunidense. No debate atual, é possível saudar a atitude de homens e mulheres de farda de romperem o silêncio para chamar a atenção para a necessidade de impor limites a possíveis abusos do presidente, potencialmente danosos à democracia e ao caráter apolítico das Forças Armadas. Entretanto, esses avisos não vêm sem custos.
Nos Estados Unidos, a subordinação militar ao poder civil é um preceito básico não apenas da democracia liberal, mas também uma premissa na garantia da liberdade que data da Revolução Americana. Não obstante o prestígio junto à população, as Forças Armadas devem ser atores apolíticos e apartidários. Instrumento de Estado controlado constitucionalmente pelo poder civil, por princípio, não é bem-vindo a se manifestar politicamente. Como bem ilustra o caso do general Stanley McChrystal, então prestigiado comandante das forças dos EUA e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no Afeganistão, foi retirado do comando pelo presidente Barack Obama por se pronunciar criticamente ao mandatário e seus aliados em artigo da revista Rolling Stones.
Voltando ao cenário atual, embora o canto da sereia possa ser tentador sobre empregar os militares em ações de garantia da lei, visando a potenciais ganhos eleitorais, o custo político de tal curso de ação pode ser alto demais. Como ilustra a crise entre Trump e os militares, o tema em tela traz à tona, mais uma vez, o delicado problema das relações civil-militares em cenário marcado por instabilidade dentro e fora dos Estados Unidos.
* Augusto W. M. Teixeira Júnior é doutor em Ciência Política (UFPE), com estágio de Pós-Doutorado em Ciências Militares (ECEME). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais (PPGCPRI – UFPB). Pesquisador do INCT-INEU. Foi pesquisador do Núcleo de Estudos Prospectivos (NEP) do Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEEx/EME) entre 2018 e 2020. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI/UFPB).
** Recebido em 5 de junho de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.