China e Rússia

Discriminação de sino-americanos e imigrantes da China: dos Chinese Exclusion Acts ao ‘Chinese virus’

Trump na entrevista coletiva diária sobre coronavírus, em 19 mar. 2020, na Casa Branca (Crédito: Jabin Botsford/The Washington Post)

Por Rúbia Marcussi Pontes*

Em 16 de março, o presidente Donald Trump fez menção, em um tuíte, ao “Chinese virus” e, no dia seguinte, tomou a decisão de revisar seu pronunciamento para sua entrevista coletiva diária, na Casa Branca, para tratar da atual pandemia. Nesse processo, riscou a palavra “corona” e a substituiu por “Chinese”, como mostra o registro fotográfico do correspondente do jornal The Washington Post (em detalhe na foto menor), preferindo substituir o termo “corona vírus” por “vírus chinês”. Tal postura foi criticada, e a Organização Mundial da Saúde reforçou a importância de se nomear a doença causada pelo coronavírus por seu nome científico, COVID-19.

As falas de Trump continuaram, porém, a repercutir, inclusive em discursos do alto escalão do governo. Seriam uma estratégia para acusar a China e desviar o foco da gestão tardia da crise no território dos EUA? Pode-se dizer que sim, mas é preciso ir além e ressaltar a histórica discriminação e racismo em relação a pessoas com descendência asiática (Asian Americans) e, mais especificamente, aos sino-americanos, grupos historicamente marginalizados nos EUA, especialmente em momentos de crises de saúde pública.

Crédito: The Washington Post

Existe um estereótipo, construído desde a primeira onda de imigração chinesa para os EUA, de que pessoas com descendência asiática serão eternos estrangeiros nos EUA e que são vetores de disseminação de doenças, conforme apontado por Charissa Cheah, professora de Psicologia da University of Maryland Baltimore County. São, portanto, vistos como não pertencentes à Nação e, sim, como abjetos.

A percepção de cidadãos dos EUA em relação à China está em seu pior nível desde que o Pew Research Center começou a fazer esse monitoramento, em 2005, com 66% dos entrevistados tendo uma visão negativa da China em março de 2020 – uma diferença significativa de aproximadamente 20% em relação ao início da gestão Trump. Nesse sentido, observa-se que, de diferentes maneiras, a postura oficial do governo estadunidense vem perpetuando uma visão negativa sobre a China, principalmente, além de ignorar cidadãos americanos e imigrantes de grupos historicamente marginalizados, que deveriam ser parte de suas preocupações e políticas.

Discriminação histórica

A discriminação de sino-americanos e de imigrantes chineses não é um fenômeno novo nos EUA. Pelo contrário: é uma tendência histórica, marcada por políticas excludentes e discriminatórias, com destaque para os Chinese Exclusion Acts. Inicialmente, a China era vista como um “país exótico”, fonte de riquezas e de produtos únicos, que interessavam aos habitantes estadunidenses ainda no século XVIII. Mas, como aponta Walter LaFeber, em The American Age: US foreign Policy at Home and Abroad (1994), desde o estabelecimento das primeiras relações comerciais, difundiu-se a visão de que os chineses eram um povo inferior.

Tal visão contribuiu para tornar a relação e a percepção entre EUA e China assimétricas, com tratados (com destaque para os tratados de Wanghia e de Tianjin) que não respeitavam nem a soberania, nem a população chinesas, e atendiam apenas ao duplo objetivo da política dos EUA: a conquista dos mercados comercial e religioso da China. Nesse sentido, destaca-se a presença de missões protestantes estadunidenses em solo chinês, enquanto a presença de chineses nos EUA era crescentemente hostilizada, ao longo do século XIX.

A emigração chinesa para os EUA foi significativa entre 1848 e 1849, principalmente para a Califórnia, atraídos pela chamada “febre do ouro”. Esses imigrantes rapidamente passaram a trabalhar em outras atividades, sobretudo, na construção do sistema ferroviário que ligou a Califórnia ao Utah, nos anos 1860, como relembrado por Jonathan D. Spence, em The Search for Modern China (1990). A assimilação dessa população nos EUA foi, no entanto, marcada pela discriminação e pela hostilidade, com episódios de violência aberta. Essa tensão partia, principalmente, de trabalhadores brancos, que viam os trabalhadores chineses como os causadores da diminuição dos salários nos EUA, por aceitarem trabalhar por remunerações menores.

Como acontece com a maioria das comunidades imigrantes, os chineses se estabeleceram em bairros próprios, conhecidos como Chinatowns. Crescentemente, essas localidades foram sendo vistas como espaços onde a prostituição e o consumo de ópio floresciam, não condizendo, portanto, com os padrões morais e culturais estadunidenses. Tal visão fomentou políticas no sentido de excluir os imigrantes chineses. Entre 1850 e 1870, por exemplo, o estado da Califórnia aprovou medidas como licenças especiais para estabelecimentos chineses, assim como para impedir a naturalização desses imigrantes. E, em 1880, mais um tratado desigual foi realizado entre os EUA e a China, o Angell Treaty, que permitiria que os EUA restringissem a imigração chinesa nos anos vindouros.

Barreiras migratórias

Na esteira desse tratado, o Congresso estadunidense aprovou, em 1882, a primeira grande medida de restrição imigratória da história estadunidense, o Chinese Exclusion Act, que suspendeu a imigração de trabalhadores chineses (qualificados, ou não) por dez anos. Isso fez a imigração chinesa declinar de 39.500 pessoas, em 1882, para dez pessoas, em 1887. No ano seguinte, o Congresso foi além e aprovou o Scott Act, que proibiu o retorno, aos EUA, de quem tivesse visitado a China – inclusive de antigos residentes legais nos EUA. Enfim, em 1892, o Congresso renovou a exclusão por mais dez anos, com o Geary Act, que compôs os Chinese Exclusion Acts.

Diversas manifestações contra a presença chinesa, em solo estadunidense, espalharam-se pelos EUA nesse período. Os presidentes reforçaram tanto a política de exclusão quanto a visão pejorativa difundida dos chineses. O presidente Grover Cleveland, por exemplo, afirmou que, após anos de tentativa, a assimilação de chineses e de seus hábitos por parte do povo dos EUA foi desastrosa para ambas as Nações, um entendimento reiterado por administrações vindouras. É o que se vê no seguinte trecho: “a experiência de mistura dos hábitos sociais e das idiossincrasias mútuas de raça das classes trabalhadoras chinesas com aquelas do grande corpo do povo dos Estados Unidos provou ser, após 20 anos e desde o tratado de Burlingame de 1868, uma experiência insensata, precipitada e nociva para ambas as Nações”.

É importante ressaltar que, até 1924, todos os imigrantes de descendência asiática (o que incluía chineses, japoneses, coreanos e indianos) foram proibidos de adquirir cidadania americana e de serem proprietários de terras. Foi somente em 1943 que os Chinese Exclusion Acts foram suspensos, em um contexto de aceno favorável dos EUA à China, sua aliada na Segunda Guerra Mundial. Já as restrições imigratórias a asiáticos permaneceram pelo menos até 1965, quando, por pressão do movimento de direitos civis nos EUA, cotas anuais de imigração de até 20.000 pessoas por país foram estabelecidas – o que revela a profundidade da política de exclusão da imigração chinesa e asiática, em geral, nos EUA, até um período relativamente próximo.

Já conhecido pela política imigratória amplamente criticável de sua administração e por incontáveis falas racistas e misóginas, o presidente Donald Trump continua agindo e discursando no sentido de incentivar a discriminação de grupos historicamente marginalizados, com destaque para imigrantes chineses residentes nos EUA e sino-americanos, em meio à pandemia de corona vírus.

Essa postura não passa despercebida, especialmente pelo eleitor. De acordo com pesquisa do Democratic Congressional Campaign Committee, os Asian Americans tendem a votar em candidatos democratas nas eleições gerais por uma margem de 33 pontos e, nas eleições presidenciais, tendem a preferir o candidato democrata a Donald Trump por uma margem de 28 pontos. Seu impacto nas urnas não deve, portanto, ser desconsiderado, especialmente em um ano eleitoral e nos battleground states, onde a disputa entre democratas e republicanos é intensa.

Além disso, segundo dados do Pew Research Center, estima-se que, até 2055, os Asian Americans se tornem o maior grupo de imigrantes nos EUA e que, até 2065, eles correspondam a aproximadamente 38% de toda população imigrante dos EUA. Essa presença significativa não implica, contudo, que essa população será assimilada na sociedade americana, tanto no curto quanto no longo prazo, nem que sino-americanos deixarão de ser vistos como “eternos estrangeiros”. Pelo contrário, o cenário que se desenha é o de continuidade da discriminação e da ideia de que existe um “nós” e um “eles”.

 

* Rúbia Marcussi Pontes é doutoranda e mestra em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP-IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisadora do INCT-INEU e bolsista CAPES. rubiamarcussi@gmail.com.

** Recebido em 30 de maio de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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