China e Rússia

Steve Bannon mira na China para salvar Trump nas urnas

(Crédito: NewStatesman)

Por Solange Reis*

A extrema-direita americana não descobriu a cura, mas já sabe a quem culpar pelo coronavírus. Alguns de seus blogs, jornais e organizações apontam para a China. As acusações vão desde a criação do vírus à negligência no controle da doença.

Por que a China desenvolveria e espalharia uma doença tão letal para os seres humanos e a economia global, da qual ela mesma depende? As respostas dos fundamentalistas também variam, do plano para destruir a ordem ocidental ao interesse em vender máscaras e luvas hospitalares.

Essa demonização da China não acontece de forma espontânea, mas a partir de uma rede de fabricação de fatos. Por trás dessa estrutura, está Steve Bannon. O homem que vinha fortalecendo a extrema-direita no mundo, desde que deixou o governo Trump, volta a Washington para o que sabe fazer melhor. Militância, lobby e desinformação.

Seu objetivo é transformar a correlação entre coronavírus e China em uma tábua de salvação para a reeleição de Trump. Com a economia em queda livre e mais de cem mil mortos na conta de sua desastrosa gestão da pandemia, o presidente precisa de suporte para evitar uma derrota que se torna cada vez mais possível.

Arma biológica

As teses em torno da responsabilidade chinesa são variações do mesmo tema. Pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan, na China, teriam deixado o vírus escapar. Em seguida, o governo chinês teria encoberto o fato ao atribuir a origem do vírus a um “mercado molhado” onde são vendidos animais vivos e abatidos localizado próximo ao instituto. Para piorar, ocultou a gravidade da situação e tardou em agir.

Órgãos de inteligência americanos não constataram a veracidade dessa versão. Revistas científicas de grande reputação, como a Nature Medicine, foram até mais incisivas. A alta afinidade proteica entre o vírus e células em mamíferos vertebrados levou os autores de um artigo publicado na revista a concluir que há “forte evidência de que a SARS-CoV-2 não é o produto de uma manipulação intencional”.

As afirmações científicas e de inteligência não convenceram os novos guerreiros frios. Robert O’Brien, conselheiro de segurança nacional, comparou a reação da China frente à pandemia com a da União Soviética no acidente nuclear de Chernobyl. Bannon também disse que a pandemia é a “Chernobyl biológica” do Partido Comunista chinês.

No seu canal diário no You Tube, Bannon’s WarRoom, o jornalista divulga programas, entrevistas e palestras com conteúdo conspiratório. Desde o seu lançamento em janeiro, o canal se dedica a vincular o vírus à geopolítica chinesa. Um de seus mais recentes vídeos sobre a pandemia é introduzido por imagens típicas de games ou de filmes de segunda categoria. Ao fundo, em tom messiânico, a voz de Trump alerta para a catástrofe e o demônio a ser vencido.

Rede de desinformação

O radical não está sozinho na cruzada contra Pequim, contando com bilionários, mídia, think tanks, políticos e oficiais do governo. Para citar um exemplo, o “furo” jornalístico sobre o laboratório chinês partiu de um artigo com cinco parágrafos publicado no Washington Times. Com base na opinião de um ex-militar da inteligência israelense, o jornal linha-dura reproduziu a suspeita de que o laboratório de Wuhan criou o vírus como parte de um programa de armas biológicas.

Uma figura central desse movimento é o bilionário Guo Wengui, também conhecido como Miles Kwok. Depois de fugir da China sob acusação de suborno e lavagem de dinheiro e outros crimes, Guo se estabeleceu nos Estados Unidos. Em 2018, contratou Steve Bannon para introduzi-lo na mídia e ensiná-lo sobre os padrões da imprensa americana. Os honorários foram de um milhão de dólares americanos. Dessa empreitada, surgiu o G News, um site com vídeos conspiratórios que atribui a si a missão de “derrubar o Partido Comunista da China, trazer a verdade para o mundo”.

Guo e Bannon aparecem juntos em vários vídeos, quase sempre recorrendo a fatos inverídicos ou distorcidos sobre a China e o governo chinês. Foi do site, onde o nome de Steve Bannon aparece como item de menu, que saíram muitas notícias sobre o vírus ser fabricado e espalhado. Ambos também estão produzindo um documentário para “derrubar o mito” do líder chinês, Xi Jinping. O lançamento do documentário está previsto para o Dia do Trabalho, que nos Estados Unidos é comemorado na primeira segunda-feira de setembro. A data estará a pouco menos de dois meses das eleições de 2020.

Os meios de comunicação usados por Bannon para caça às bruxas da Covid-19 e contenção da China são apenas um braço da estrutura ideológica. Ele também é um dos líderes do Committee on the Present Danger – China/CPD-C (Comitê sobre o Perigo Presente), uma espécie de grupo de defesa de interesses ultraconservador. O objetivo do comitê é educar a população e os políticos sobre os perigos existenciais que a China representa sob a direção do Partido Comunista. Seus integrantes são pessoas que trabalharam, ou trabalham, como militares, congressistas, pastores, acadêmicos, membros de governos e muitos outros. Em uma das publicações do comitê, Henry Kissinger é descrito como o arquiteto do declínio americano, por seu realismo idealizado e aproximação com a China.

Na história dos Estados Unidos, é a quarta vez que esse tipo de agrupamento, chamado CPD, mapeia um perigo existencial. Inderjeet Parmar, professor de política internacional na Universidade de Londres, explica que o CPD foi criado, em 1950, para combater o expansionismo soviético. Voltou a ser acionado contra a União Soviética na chamada Segunda Guerra Fria, em fins dos anos 1970. Após o 11 de setembro, os neoconservadores o reativaram para impedir o “terrorismo islâmico”. Em sua quarta rodada, o perigo se materializa na China e seu suposto projeto de inversão da ordem global e destruição de valores cristãos. Assim, o foco do CPD-C é deslegitimar o Partido Comunista e suas lideranças e, ambiciosamente, promover a mudança de regime. O comitê, para surpresa de poucos, também é financiado por Guo Wengui.

Segundo resgate a Trump

O retorno de Bannon a Washington tem, ao menos, duas motivações. A primeira é navegar na crise do coronavírus para radicalizar o discurso e a percepção geral contra a China de Xi Jinping. Apologético de nacionalismo econômico e supremacia racial, ele prega a detração da China como a maior ameaça ao poder americano e ao “Ocidente judaico-cristão”. Embora sua metralhadora oratória seja vasta nacionalismo econômico, racismo, xenofobia, misoginia, antidemocracia, revisionismo não é exagerado dizer que a China é o alvo central no quesito política externa. A obsessão é bem antiga, já tendo sido constatada quando Bannon era editor do site ultrarradical, Breitbart News.

O segundo motivo para Bannon voltar com força aos bastidores políticos em Washington é o risco, cada vez mais real, de que a epidemia custe a reeleição para Donald Trump. Não seria a primeira vez que o estrategista tenta reverter uma tendência de derrota eleitoral do republicano. No livro ‘Medo – Trump na Casa Branca’, o jornalista Bob Woodward conta como Bannon entrou na campanha para salvá-la. Faltavam, então, três meses para a eleição.

Depois de bem-sucedido naquela missão, Bannon participou brevemente do governo eleito como estrategista-chefe. Sua saída da Casa Branca aconteceu em apenas sete meses, após uma entrevista na qual criticava seus pares no governo, a política para a Coreia do Norte e a indicação de uma mulher para o Departamento de Estado.

Na entrevista, Bannon também falou de sua obsessão. “A guerra econômica com a China é tudo. E temos de estar maniacamente focados nisso. Se continuarmos perdendo isso (o foco), acho que, em cinco anos, dez anos, no máximo, chegaremos a um ponto de inflexão do qual nunca conseguiremos voltar”.

A demissão de Bannon também teve outro motivo. Dias antes, uma marcha da extrema-direita na cidade de Charlottesville resultara na morte de uma pessoa e em confrontos violentos com antirracistas. Apesar das faixas com símbolos nazistas carregadas pelo movimento ‘Unite the Right’ (Unir a Direita), Bannon aplaudiu quando Trump disse que havia gente “boa” nos dois lados da briga. A frase reverberou mal; outros assessores do presidente pressionaram pela queda de Bannon, para evitar um vínculo ainda maior do presidente com o nacionalismo étnico de seu estrategista-chefe.

Extremismo sem fronteiras

Depois de ser demitido, Bannon tornou-se empreendedor da ideologia extremista no resto do mundo. Concentrou-se na Europa, mas ajudou a fazer o movimento crescer em outros lugares. Suas táticas contribuíram para difundir a ideologia e eleger candidatos de extrema-direita na Europa e no Brasil, como é o caso do atual governo brasileiro.

A epidemia de Covid-19 o fez voltar a concentrar esforços em casa. Sua missão agora é colocar o plano de reeleição do republicano novamente no rumo. Antes da Covid-19, Trump contava com a máquina burocrática, tempo de exposição na mídia e economia em fase positiva. Poucos duvidavam de seu segundo mandato. Três meses depois e com uma gestão desastrosa da pandemia, Trump perde espaço midiático para o coronavírus, derrapa frente a protestos antirracistas que assolam o país, derrete diante de quarenta milhões de desempregados e não tem a menor ideia de como interromper a queda do PIB, estimada em 40% no segundo trimestre.

A reeleição está em perigo, e Bannon volta para resgatar sua criatura. Ainda não se pode prever se o jornalista-marketeiro conseguirá repetir o feito de 2016, mas já é possível identificar sua marca na Abordagem Estratégica dos Estados Unidos para a República Popular da China, lançada em 28 de maio. Nela são apontadas as necessidades de redefinir as cadeias logísticas, levar fabricantes americanos de volta para os Estados Unidos e impor novas tarifas sobre produtos chineses.

Ventríloquo problemático

O desafio exigirá de Bannon certa acrobacia tautológica, pois ele terá que atribuir à China erros que Trump cometeu muitas vezes mais. Entre eles, falta de testes, carência de equipamentos e materiais, descoordenação, negação da ciência, agressão aos governadores, incitação à desordem, desprezo pelo isolamento social. Sem contar que o sistema de saúde do país, que Trump recusa-se a melhorar, mostrou-se muito aquém da necessidade.

Além de minimizar a pandemia por várias semanas e chegar a dizer que não haveria nenhum caso de Covid-19 nos Estados Unidos, Trump desperdiçou duas semanas cruciais em março. Se tivesse agido mais cedo e de forma menos irregular, teria poupado dezenas de milhares de vidas. O coronavírus poderia ter sido o passaporte expresso para o segundo mandato, mas o presidente escolheu dobrar a aposta no descaso.

Quando confrontado com o fato de que Trump demorou a agir na pandemia e o fez de forma inapropriada e inconsistente, Bannon culpou os governadores. “Tínhamos um programa chamado ‘30 Dias para Salvar a América’. Queríamos um fechamento, não queríamos voos domésticos. (…). A decisão do presidente foi a de que, no nível do Executivo, (a ação) cabia aos governadores. Queríamos uma política nacional. Mas entendo a lógica de ter os governadores executando”.

Boia de salvação

Apesar de não fazer mais parte do governo desde 2017, Bannon tem aliados poderosos na Casa Branca. Alguns deles são Mark Meadows, chefe de gabinete, Peter Navarro, czar do comércio, e o conselheiro Stephen Miller; todos afiados na retórica contra Pequim. Navarro prometeu retaliar comercialmente contra a China, Miller nunca escondeu suas credenciais racistas ao propor a suspensão de vistos para estudantes chineses, e Meadow é um forte crítico da violação de direitos humanos na China.

Não se trata apenas de culpar um país estrangeiro e rival pelo vírus. Existe uma estratégia eleitoral para sensibilizar uma população aterrorizada pelo risco de morte e falência pessoal. Responsabilizar a China pelo coronavírus cai como uma luva para manter a base inicial de Trump. Trazer manufaturas de volta, controlar as fronteiras e destruir o que os adeptos do slogan MAGA (Make America Great Again) chamam de “globalismo” é poesia para os republicanos mais conservadores.

Há também a expectativa de capturar parte dos eleitores progressistas que não apoiam o pré-candidato democrata, Joe Biden, apelando a temas sensíveis como nacionalismo econômico. Por isso, Bannon rejeita o rótulo ‘nacionalismo étnico’, que não fala aos ouvidos da esquerda, e prefere ‘nacionalismo cívico’, um termo bem mais vago.

De acordo com Parmar, Bannon se prepara para uma grande guerra em nome do Ocidente. Antes, porém, precisa destruir os democratas e eliminar os republicanos. Um projeto tão megalomaníaco como derrubar o regime chinês. Delírios à parte, para isso Trump tem que permanecer no cargo mais quatro anos. Assim como aconteceu em 2016, a entrada de Bannon no jogo indica que o barco da reeleição começou a fazer água.

 

*Doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). 

** Recebido em 31 maio. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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