Trump e a pandemia de COVID-19: nacionalismo, evasão e ameaças ao multilateralismo
Diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, na sede da organização, em Genebra, 6 de março de 2020
Panorama EUA_OPEU_Trump e a pandemia de COVID-19 v10 n2 Maio 2020
Por Henrique Zeferino de Menezes e Luciana Correia Borges*
Introdução
As instituições multilaterais têm, ou deveriam ter, centralidade no enfrentamento de emergências sanitárias, como é o caso da corrente pandemia de COVID-19, assim como na atuação para minimizar custos econômicos, sociais e humanos de um episódio de tamanha calamidade e complexidade. A coordenação política entre países, a articulação com organizações científicas, médicas e outros atores relevantes, além da possibilidade de colaboração entre diferentes organizações internacionais, permitiriam respostas contundentes e eficazes para frear a disseminação da doença.
O enfraquecimento do multilateralismo nas últimas décadas e as respostas unilaterais dos países, especialmente dos Estados Unidos, têm minado ainda mais a infraestrutura política e institucional internacional que poderia contribuir com a resolução de parte dos problemas vivenciados com a atual pandemia.
Esse texto busca contribuir para o debate contemporâneo sobre o papel a ser desempenhado e as dificuldades vivenciadas pelas instituições multilaterais para responder à pandemia de COVID-19, destacando, obviamente, o papel da Organização Mundial da Saúde (OMS) como ator central no processo, assim como as ações do governo norte-americano, que criam obstáculos ainda maiores para o funcionamento desta agência.
Este Panorama EUA traz informações sobre o papel da OMS – e seus regulamentos específicos – na definição de uma agenda e de uma estratégia para o enfrentamento da COVID-19, assim como discute como outras organizações internacionais contribuem para a redução de práticas que potencializam os danos causados pela pandemia. O texto também aborda a atuação do governo de Donald Trump, marcada pelo questionamento e pelo boicote à OMS. A postura do Executivo americano pode produzir impactos sociais significativos, uma vez que acarreta a redução da capacidade de apoio a países em situações de maior gravidade.
Papel do multilateralismo no enfrentamento da COVID-19
A atual crise global de saúde acentua o papel da OMS na articulação política, na definição e no fomento das melhores iniciativas entre os países e outras organizações científicas e sociais para o enfrentamento da COVID-19.
Cumprindo suas atribuições, em 11 de março, a OMS declarou a COVID-19 como pandemia. Anteriormente, em 30 de janeiro, já havia estabelecido a COVID-19 como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. Trata-se do mais alto nível de alerta internacional, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. Uma emergência dessa natureza se caracteriza como “um evento extraordinário que pode constituir um risco de saúde pública para outros países, devido à disseminação internacional de doenças; e potencialmente requer uma resposta internacional coordenada e imediata”. Além disso, a declaração de uma emergência sanitária internacional dá respaldo para que os países façam o mesmo nacionalmente.
A importância da OMS na condução de respostas a emergências sanitárias internacionais deriva de sua capacidade técnica de tomar decisões baseadas em evidências científicas. Tanto a OMS quanto o novo Regulamento Sanitário Internacional estabelecem um conjunto de regras, protocolos e recomendações que permitem melhores comunicação, coordenação de práticas e atuação estratégica para orientar e subsidiar iniciativas globais de enfrentamento a pandemias e demais emergências sanitárias[1]. Para esse fim, a OMS tem papel específico em algumas frentes:
- Definição de procedimentos e recomendações que servem de guia para a construção das estratégias nacionais de enfrentamento a emergências sanitárias;
- Disponibilização de informações técnicas, com protocolos baseados em evidências, que direcionam a conduta de governos e profissionais, funcionando como instrumento para combater informações distorcidas e mitos construídos sobre o tema;
- Oferta de auxílio financeiro e técnico aos países com limitações orçamentárias, para que possam empreender ações de controle e tratamento, além da aquisição de equipamentos essenciais.
No caso específico do enfrentamento à COVID-19, a OMS publicou o Strategic Preparedness and Response Plan, que identifica as principais medidas de saúde pública a serem adotadas pelos países e os recursos necessários para implementar respostas eficientes no enfrentamento da pandemia. Como complemento ao plano estratégico, disponibilizou diretrizes de Planejamento Operacional e oferta cursos de capacitação on-line para apoiar os países na formulação de políticas para o enfrentamento da doença. O apoio também está sendo oferecido por meio da Rede Global de Alerta e Resposta a Surtos da OMS, na qual especialistas compartilham conhecimento e habilidades técnicas cruciais para o momento de pandemia. São respostas que transformam conhecimento técnico-científico em ações concretas para orientar a construção dos planos regionais e nacionais, de acordo com elementos particulares de cada contexto.
Diante da necessidade de aprofundamento de laços cooperativos, a OMS criou, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o COVID-19 Solidarity Response Fund. Os recursos desse fundo são destinados a: i) garantir procedimentos essenciais para os pacientes no curso da doença; ii) garantir que informações técnicas e equipamentos de proteção individual alcancem os profissionais de saúde que atuam na linha de frente; iii) ao impulsionar as pesquisas e o desenvolvimento de uma vacina para o tratamento da COVID-19; e iv) proteger comunidades vulneráveis.
O objetivo central do fundo é, portanto, subsidiar o desenvolvimento das capacidades dos Estados em termos de assistência à saúde e mitigar o impacto social causado pela propagação do novo coronavírus, em especial nos grupos socialmente vulneráveis.
Em razão da alta transmissibilidade do novo coronavírus, o acesso a equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde é uma demanda essencial. Essa demanda cria pressões comerciais e políticas globais, mas também levou a OMS a acelerar a distribuição desses itens para os países que apresentam necessidades agravadas, por meio do UN COVID-19 Supply Chain System. A força-tarefa também está atuando na garantia do acesso a testes de diagnóstico. Para intensificar a distribuição, a OMS vem-se articulando com o setor privado e com parceiros como a Câmara de Comércio Internacional e o Fórum Econômico Mundial.
O desenvolvimento de uma vacina, a definição de medicamentos e de tratamentos eficazes, além do fortalecimento da capacidade de produção e disseminação de tecnologias associadas ao tratamento da COVID-19, constituem a mais importante das fronteiras a ser desbravada.
Para tanto, a OMS lançou o Solidarity Clinical Trial for COVID-19, voltado para a testagem da eficácia de medicamentos para o tratamento da doença. A iniciativa auxilia no desenvolvimento de pesquisas, avaliação e coleta de resultados, oferecendo também orientação sobre a administração de tratamentos com efeitos ainda não comprovados. Concretamente, trata-se da realização de um “ensaio clínico internacional” para a identificação de um tratamento eficaz para a COVID-19 e para a redução do tempo necessário para tal.
Inicialmente, o foco esteve em quatro medicamentos específicos – Remdesivir, Lopinavir/Ritonavir, Interferon beta-1a e cloroquina e hidroxocloroquina. Em 27 de maio, porém, a OMS suspendeu formalmente as pesquisas com a hidroxocloroquina, em razão das evidências apresentadas pelo periódico The Lancet a respeito dos riscos e dos efeitos agravados para pacientes de COVID-19, associados ao uso do medicamento.
Ainda sobre a colaboração global para acelerar o desenvolvimento, a produção e o acesso equitativo a vacinas e medicamentos, líderes mundiais, em parceria com a OMS, lançaram o Access to COVID-19 Tools (Act) Accelerator. Em reunião virtual, lideranças globais, com o apoio de organizações internacionais e de grandes fundos, comprometeram-se a compartilhar os resultados das pesquisas com os países em desenvolvimento, assumindo sua responsabilidade junto às comunidades mais vulneráveis.
Além de representantes de diversos países, participaram a Fundação Bill e Melinda Gates, a Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (CEPI), a Gavi Alliance, o Fundo Global de Luta Contra AIDS, Tuberculose e Malária (Global Fund), a UNITAID e o Wellcome Trust. A não participação dos Estados Unidos nesse esforço é um sinal importante da postura não colaborativa que o país vem adotando no tratamento da COVID-19. A reunião também representou uma forma de endosso simbólico a este órgão das Nações Unidas e uma resposta de líderes mundiais à campanha norte-americana contra a OMS, a qual resultou na suspensão do repasse financeiro à organização por parte do governo Donald Trump.
Outro importante marco nas deliberações multilaterais na procura por soluções para a pandemia foi a aprovação da Resolução International Cooperation to Ensure Global Access to Medicines, Vaccines and Medical Equipment to Face COVID-19, por parte da Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução 74/274). A proposta de resolução foi apresentada pelo México e por parte da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e foi patrocinada por 75 países. EUA e Brasil ficaram entre os 14 países que não endossaram o documento.
No texto, os países afirmam a necessidade de que haja “acesso oportuno e equitativo a testes, suprimentos médicos, medicamentos e futuras vacinas contra o coronavírus para todos, especialmente países em desenvolvimento”. Busca-se, ainda, o fortalecimento de ações para estimular a pesquisa e o desenvolvimento de vacinas, métodos de diagnóstico e medicamentos por meio da cooperação científica e tecnológica. E, mais uma vez, reafirma-se a centralidade da OMS na coordenação das ações de enfrentamento à COVID-19.
Para compreender melhor as bases legais e técnicas de atuação da OMS para lidar com emergências sanitárias e pandemias, é preciso destacar alguns pontos do Regulamento Sanitário Internacional. Com a adesão de 196 países, o regulamento vigente foi aprovado em 2005 e estabelece as regras para o alerta, controle e enfrentamento das emergências sanitárias internacionais. Pelas regras da OMS, ele tem caráter vinculante para todos os Estados-membros que subscrevem seu texto, consolidando-se como base normativa desde 2007, quando passou a vigorar. A revisão do regulamento trouxe mudanças normativas e táticas, buscando maior efetividade no fortalecimento das capacidades de prevenção, proteção, controle e respostas aos surtos de doenças e demais crises sanitárias.
O regulamento instituiu tipos de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional associadas à proliferação de doenças infectocontagiosas, ou ameaças (bioterrorismo), que apareçam de forma extraordinária e com potencial de propagação mundial, requerendo uma resposta internacional coordenada. Nessa versão do regulamento, não há definição exaustiva das doenças relevantes, mas a forma como elas se disseminam determina a caracterização como emergência.
Chama atenção no documento a ênfase dada ao multilateralismo para o enfrentamento de emergências em saúde, ao mesmo tempo em que reconhece a responsabilidade primária dos Estados no desenvolvimento de capacidades nacionais de vigilância e respostas para impedir a propagação global de doenças – ou seja, afirma a necessidade de respostas cooperativas para o compartilhamento de informações e de conhecimento, seguindo o padrão estabelecido para comunicar riscos no curso de emergências.
De forma mais objetiva, o regulamento estabelece regras a serem seguidas em situações de emergências e pandemias, tanto no que concerne à obrigação de notificar a potencial emergência (art. 6), quanto ao compartilhamento de informações precisas e detalhadas de saúde pública em relação à mencionada situação (art. 6 (2)).
Contemporaneamente, as mudanças no campo da Saúde Global, associadas à globalização, ao aprofundamento das mudanças climáticas e ao aumento e adensamento populacional, impactam direta e indiretamente os determinantes socioeconômicos da saúde, assim como criam conexões transfronteiriças que afetam as causas dos surtos de doenças e os respectivos efeitos na saúde pública[2]. A interconexão entre saúde, meio ambiente, segurança, comércio internacional e desenvolvimento social pressiona por respostas holísticas e por ações coordenadas para enfrentar as emergências sanitárias. Esses fatores ressaltam a importância do papel coordenador de organizações internacionais para poder lidar com a multiplicidade de variáveis que incidem sobre os resultados em saúde.
A disseminação da COVID-19 expôs ainda mais a necessidade de tratar a saúde de forma integrada, multissetorial e atrelada aos Direitos Humanos. Em um cenário de pandemia, que aprofunda os problemas associados à desigualdade social, a implementação de políticas públicas que ofereçam respaldo às intervenções e iniciativas voltadas para o enfrentamento da doença se mostra crucial. Ainda, a devida atenção aos determinantes sociais da saúde se torna fator-chave para a contenção dos danos decorrentes da crise sanitária, que atinge de forma mais violenta as populações vivendo sob condições socioeconômicas e ambientais precárias.
Desse modo, as instituições multilaterais têm a função de coordenar ações além da contenção da doença, entre elas minimizar os danos e custos da disseminação do novo coronavírus. Os problemas sociais e humanitários que se potencializam no contexto pandêmico (o agravamento das crises alimentares, aumento do desemprego e empobrecimento, ameaça ao meio ambiente, aumento da violência e violência de gênero) demandam uma atuação conjunta e coordenada da OMS com outros organismos internacionais.
A segurança alimentar e o acesso a alimentos, mesmo que de forma emergencial, passam a ser um fator determinante para o enfrentamento da COVID-19 e seus efeitos. Ainda não há clareza sobre os impactos reais que a pandemia produzirá sobre a segurança alimentar e os sistemas agroalimentares, apesar de já haver abalos em toda cadeia produtiva e nos consumidores. Experiências históricas mostram que, em outras crises sanitárias, as restrições adotadas para conter a disseminação de doenças afetaram a circulação e a disponibilidade de alimentos – o que demandou ações cooperativas emergenciais para sanar problemas humanitários associados à alimentação.
Tal preocupação levou representantes da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), da OMS e da Organização Mundial do Comércio (OMC) a publicarem uma declaração conjunta, alertando sobre os riscos de uma escalada do protecionismo sobre a segurança alimentar e a saúde global. Ainda no contexto da United Nations Global COVID-19 Humanitarian Response Plan, a FAO tem ajustado suas práticas e programas junto a alguns parceiros, como World Food Programme, Global Food Security Cluster e Global Network Against Food Crises Partnership Programme, para reduzir custos e obstáculos para as ações voltadas para a segurança alimentar e a subsistência das populações mais vulneráveis e que já experienciam situações de crise alimentar.
A garantia de renda básica e emprego para reduzir os impactos sociais também deve ser uma máxima dos países e das organizações internacionais. A pandemia de COVID-19 tem causado uma devastação sobre o trabalho e os salários em uma proporção maior do que a da crise financeira de 2008-09, como informa a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Os setores mais intensivos em trabalho e os trabalhadores em situação de informalidade – a imensa maioria da força de trabalho mundial – são também os mais afetados pela disseminação da doença. A intensidade do aumento do desemprego mundial vai depender, claro, das políticas públicas implementadas pelos países, assim como os efeitos sociais associados poderão ser agravados, ou minimizados, por outro conjunto de políticas e ações de colaboração e ajuda a países em condições de maior vulnerabilidade.
Nesse ponto específico, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e agências de cooperação e ajuda internacional de países desenvolvidos terão o papel de criar fundos e condições para contribuir com a minimização dos efeitos da COVID-19, além de garantir apoio para a construção de capacidades para lidar diretamente com a disseminação da doença.
Ainda sobre a mitigação dos danos provocados pela pandemia, a Resolução n. 1/2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, intitulada Pandemia y Derechos Humanos en las Américas, pode subsidiar a OMS na observância dos desafios políticos e sociais que os Estados se deparam durante o enfrentamento da COVID-19, especificamente os países do continente americano. Ao passo que a resolução versa sobre obrigações positivas e negativas em tempos de enfrentamento da pandemia, o diagnóstico de medidas arbitrárias, de risco democrático e restrições aos Direitos Humanos se torna mais factível. Diante de posturas negacionistas, como a dos governos dos Estados Unidos e do Brasil, e dos recorrentes ataques à atuação da OMS, a utilização da recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pode funcionar como um importante instrumento de fiscalização jurídica e de controle político.
Trump e o aprofundamento da crise do multilateralismo em meio à pandemia
Não resta dúvida de que o multilateralismo enfrenta grandes desafios há pelo menos duas décadas, e não apenas os Estados Unidos são responsáveis pela diminuição da legitimidade de importantes instituições multilaterais. De qualquer modo, é incontestável que a chegada de Donald Trump à Presidência dos EUA levou a uma radicalização do discurso antiglobalização e de crítica ao papel das instituições multilaterais, assim como acelerou e aprofundou uma agenda de enfraquecimento de algumas delas. Até então, a OMC e o regime multilateral de comércio eram as principais “vítimas” desse ativismo norte-americano. Agora, a OMS se soma a essa lista, transformando-se no mais novo “bode expiatório” do presidente norte-americano.
É verdade também que a OMS enfrenta dificuldades para dar respostas às crises sanitárias há algum tempo e, no caso da COVID-19, não é diferente[3]. A principal limitação da organização está relacionada a seu subfinanciamento, o que mitiga sua capacidade operacional e restringe os mecanismos necessários para cumprir seu papel. A OMS é fortemente dependente de fundos voluntários, que chegam a compor 80% do orçamento da organização. Uma consequência dessa vinculação orçamentária é a priorização de pautas ligadas aos interesses específicos de seus doadores.
Nesse ponto, a multiplicação de atores e de instituições dedicadas aos temas de saúde amplia a concorrência para que a OMS se mantenha como a liderança técnica e política no campo da saúde global. Organizações filantrópicas, como a Fundação Bill e Melinda Gates, e outros arranjos como a GAVI e o Fundo Global de Combate à AIDS, Tuberculose e Malária, competem com a OMS na definição das pautas prioritárias internacionais.
Outra dificuldade que se potencializa durante os cenários de emergência é a falta de mecanismos de enforcement para assegurar o cumprimento dos protocolos e regulamentos emitidos pela organização. Mesmo diante da classificação da COVID-19 como uma pandemia, alguns Estados seguem encontrando dificuldades na internalização das diretrizes sanitárias estabelecidas, ou apresentam dificuldades técnicas e financeiras para adotá-las.
Não obstante as limitações elencadas, o principal legado deixado pela experiência de enfrentamento a pandemias e no trato da COVID-19 é a importância da liderança da OMS. Como mencionado, a atuação desta agência do sistema ONU, em conjunto com as agendas interconectadas à saúde global, tem grande potencial no apoio a países em desenvolvimento no fortalecimento de suas capacidades de vigilância sanitária, implementação de respostas satisfatórias e melhoria de seus sistemas de saúde.
Nesse momento de pandemia, com consequências severas, a OMS sofre, no entanto, uma campanha de descrédito em relação à sua capacidade técnica e à sua responsabilidade na gestão das políticas de combate à COVID-19 por parte de alguns países – especialmente dos Estados Unidos.
O Brasil, por meio de seus representantes políticos de alto escalão, também tem tentado deslegitimar a organização, inclusive com ofensas pessoais a seu diretor-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus, e com a divulgação de notícias falsas no perfil on-line do presidente da República, Jair Bolsonaro. Apesar de graves, as ações de representantes do governo brasileiro, incluindo o próprio presidente, são insignificantes para a governança internacional da saúde, causando danos maiores à reputação brasileira do que o inverso.
Desde a campanha eleitoral, Donald Trump estabeleceu o multilateralismo como um adversário. Sua rejeição ao multilateralismo se sustenta em uma retórica antiglobalista (que afirma a necessidade de proteger a soberania e a independência dos EUA, limitando a capacidade de “intervenção” das organizações internacionais sobre temas de interesse nacional); e em ações que criam ameaças concretas sobre importantes instituições e organizações internacionais. Como já mencionado, a OMC é um dos principais alvos de Donald Trump, ao ponto de o veto sistemático à indicação de árbitros para ocupar vagas no Órgão de Apelação da organização levar à paralisia de seu mecanismo de solução de controvérsias.
Outra decisão do governo Trump, dentro dos mesmos elementos de retórica e ação, foi a saída do Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas. Além disso, os EUA também se retiraram formalmente da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Agora, em meio à maior pandemia em um século, que reforça a necessidade de coordenação política e de ações responsáveis por parte dos países para lidar com os efeitos da disseminação global do vírus, qual o papel desempenhado pelos Estados Unidos?
O governo Trump é responsável diretamente por ataques extensivos à OMS, questionando a capacidade técnica da organização e suas intenções e motivações políticas no trato da pandemia. Além disso, decidiu boicotar algumas das agendas da OMS, assim como suspender o repasse de recursos à organização.
Desde o começo da pandemia, Trump vem aumentando o tom das críticas e o peso das ameaças à OMS. Em um discurso na Casa Branca, o republicano afirmou que os EUA iriam “suspender os fundos direcionados para a Organização Mundial da Saúde”, além de afirmar que o país iria se engajar na busca por reformas significativas nesta agência.
Mais recentemente, voltou a atacar a organização, ameaçando, em uma carta endereçada a seu diretor-geral, cortar permanentemente o financiamento e reconsiderar a permanência do país na organização. As ameaças chegaram ao ponto de o presidente Trump anunciar, em 29 de maio, que os EUA “cortarão todos os laços” com a organização.
As razões apontadas pelo presidente norte-americano para a decisão de romper com a OMS residiam, inicialmente, no fato de a organização ter falhado na gestão da crise e não ter feito esforços suficientes para barrar a epidemia desde a identificação do primeiro caso do novo coronavírus na China. Em um discurso, Trump afirmou que “a OMS falhou em seu dever básico e deve ser responsabilizada”. Agora, os Estados Unidos acusam a OMS de ter falhado na implementação das reformas necessárias, segundo a perspectiva do próprio país, e por estar, nas palavras de Donald Trump, totalmente sob controle da China.
A crítica e as ameaças de Trump à OMS se aproximam do discurso geral sustentado pelo presidente norte-americano em relação às instituições multilaterais – ou seja, de que haveria uma tendência da organização de agir contra os interesses dos EUA e de interferir nos assuntos domésticos do país. Diretamente associada às falhas do governo em conter a disseminação da pandemia e à multiplicação dos mortos, a crise política doméstica tem dado fôlego a uma retórica evasiva de Trump, buscando responsabilizar a OMS pela tragédia no país.
Para o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, esse não é o momento de se ameaçar, ou agir contra, a organização que cumpre o papel mais crítico e relevante no combate à pandemia. Internamente, a American Medical Association também criticou a decisão do presidente, afirmando que suspender o apoio financeiro à OMS em meio à pandemia é temeroso e que os EUA deveriam procurar soluções cooperativas.
A decisão mais recente de cortar todos os laços com a OMS e as justificativas usadas vêm deixando cada vez mais claro que o que move a campanha acusatória dos EUA, além da retórica antiglobalista norte-americana, seria a competição com a China e a necessidade de camuflar a letargia do governo em responder à pandemia, que já infectou quase 2 milhões de indivíduos e vitimou mais de 100 mil pessoas no país.
Também significa o isolamento do país das grandes discussões e decisões e o enfraquecimento norte-americano junto à organização.
Além das acusações de omissão e de ineficiência, os Estados Unidos insistem em que a OMS se mantém conivente com a China. Na visão americana, o governo chinês poderia ter barrado a disseminação do novo coronavírus, mas optou por não informar o surto em tempo razoável, além de mentir sobre o perigo da nova doença. Para piorar – completa Washington –, a OMS estaria agindo de forma “China-centric”, ou seja, sendo enviesada na forma como orienta as respostas ao surto e como lida com a eventual responsabilização dos chineses sobre a pandemia.
Para Trump, porém, qualquer motivo seria razão para procurar culpados, fora de seu governo, para a disseminação da COVID-19 nos EUA, como apontam Michael Shear e Michael Mason, no jornal The New York Times:
Over the past several months, Mr. Trump has repeatedly accused the news media, governors, Democratic members of Congress and former President Barack Obama of being responsible for the number of cases overwhelming the nation’s hospitals.
Além do enfraquecimento geral da organização, a decisão de cortar os repasses para a OMS poderá acarretar uma violência contra as populações mais vulneráveis em países que mais demandam apoio internacional no enfrentamento da pandemia. Para se ter uma ideia da magnitude do peso dos EUA, eles são, isoladamente, responsáveis por aproximadamente 28% do orçamento da organização (dados referentes ao biênio 2018-2019). No referido biênio, os EUA contribuíram com US$ 893 milhões, sendo US$ 656 milhões como doações voluntárias. Abaixo dos EUA, em termos de contribuição, está a Fundação Bill e Melinda Gates, com recursos da ordem de US$ 531 milhões. Segundo país em contribuições, o Reino Unido totalizou no biênio o empenho de US$ 435 milhões. Interessante notar que, entre os 20 maiores doadores, oito não são governos.
Assim, considerando-se a magnitude da contribuição norte-americana, transformar a disputa política com a OMS em uma cortina de fumaça pode trazer consequências sociais e humanas significativas. O gráfico abaixo ilustra o peso dos recursos provenientes dos EUA e destrincha as informações apresentadas acima:
Gráfico 1 – Principais contribuidores para a OMS (2018-2019)
A aprovação da Resolução WHA73.1 – ‘COVID-19 Response’ pela Assembleia Mundial da Saúde em meados de maio é certamente um passo importante na consolidação de direitos e ações em resposta à pandemia. Os Estados Unidos se mantiveram fortemente reticentes em relação às versões apresentadas do texto, mas, ao final do processo, o governo americano não se colocou contrário à aprovação da resolução, aprovada por consenso. Imediatamente depois, no entanto, os EUA se “afastaram”, por meio de nota pública, das inserções no texto acerca da possibilidade de licenciamento compulsório das tecnologias para COVID-19 (item 8.8 da resolução).
O mesmo acontece com a proposta apresentada pelo governo da Costa Rica para a implementação de um Technology Intellectual Property Pool, que busca garantir acesso a tecnologias existentes e futuras que possam ser úteis para prevenção, controle e tratamento da COVID-19. Os Estados Unidos também tem apresentado importantes reticências em relação à proposta, sinalizando para saídas unilaterais e privadas para o desenvolvimento de tecnologias para controle e tratamento da COVID-19. Já são vários os casos relatados de ações unilaterais dos EUA para garantir o acesso à vacina e a tratamentos para a COVID-19, assim como propostas não alinhadas com a concepção de que o tratamento deve ser um bem público global[4].
No mesmo sentido das regulações internacionais em saúde e do papel desempenhado pela OMS, o comércio internacional e a OMC têm também uma importância significativa na gestão dessa crise. O livre fluxo de mercadorias – equipamentos médicos, insumos, remédios e alimentos – é essencial para a manutenção da estabilidade política e para o planejamento adequado das ações de resposta à COVID-19.
Muitos países têm dedicado esforços ao tratamento emergencial da doença, com a ampliação da infraestrutura hospitalar (leitos ambulatoriais e de tratamento intensivo, disponibilização de respiradores e equipamentos de segurança para os profissionais de saúde). Considerando-se que a produção desses bens é regionalmente concentrada, isso exigiria ações coordenadas e colaborativas para garantir o suprimento em quantidade e preços adequados. O que se vê, contudo, é uma verdadeira corrida, uma disputa por acesso a esses equipamentos sem qualquer capacidade de coordenação, ou de intermediação por parte da OMC.
Os Estados Unidos foram acusados de “pirataria moderna” por autoridades alemãs, quando se apropriaram, durante uma troca de aeronaves na Tailândia, de 200 mil máscaras compradas na China e que teriam como destino a Alemanha. Algumas ações unilaterais dos Estados Unidos têm sido caracterizadas também como “roubo de contratos”. Além de aumentarem excessivamente a demanda por produtos médicos, os EUA elevam os valores das propostas e se utilizam de sua Força Aérea para transportar produtos previamente vendidos para outros países. França e Brasil fizeram reclamações sobre o comportamento não colaborativo e egoísta dos americanos.
Recentemente Trump fez uso de uma legislação aprovada durante a Guerra da Coreia, na década de 1950, o Defense Production Act, para proibir a empresa americana 3M de exportar seus produtos para outros países. Na Ordem Executiva publicada com esse fim, destaca-se a possibilidade de “uso de toda e qualquer autoridade disponível nos termos da Lei para adquirir, de qualquer subsidiária, ou afiliada, da 3M Company, o número de respiradores N-95 que o Administrador julgar apropriados”. De acordo com matéria publicada pelo Financial Times, o governo americano também tentou obrigar a empresa a exportar dez milhões de unidades da máscara dessa mesma linha, produzidas na fábrica de Singapura, para os EUA.
O uso político da pandemia por parte do governo norte-americano é uma das facetas de todo esse enredo, com implicações não apenas para a política doméstica[5], mas, fundamentalmente, para as relações internacionais. Em pronunciamento, o presidente Donald Trump anunciou que suspenderá a imigração para os EUA, de forma temporária e por meio de um Decreto Executivo, por causa do surto do novo coronavírus. A decisão despertou inúmeras reações e especulações sobre a possível utilização da pandemia para reprimir a imigração – uma de suas agendas de campanha de mais destaque. O presidente afirmou que seu objetivo, com este Decreto, é assegurar empregos e salários para os cidadãos norte-americanos, assim como interromper o surto da COVID-19[6] no país.
Pela fala do presidente, não ficou claro quem seria diretamente afetado pelas medidas, nem quando elas entrarão em vigor. A tendência é que a medida interrompa o fornecimento de novos greencards e vistos de trabalho. Também houve a restrição de voos provenientes da China e de alguns países da Europa e novas imposições na fronteira com o México.
O alvo mais recente do país foi o Brasil. De acordo com a Casa Branca, “o potencial de transmissão não detectada do vírus por indivíduos infectados que tentam entrar nos Estados Unidos oriundos do Brasil ameaçam a segurança do nosso sistema de transporte e infraestrutura e a segurança nacional”. Assim, está proibida a entrada de estrangeiros que estiveram no Brasil nos 14 dias que antecedem seu ingresso em solo americano.
Em síntese, as medidas de saúde pública implementadas nos EUA permitem que as autoridades nacionais anulem leis de imigração e que processos de expulsão de migrantes possam ser agilizados.
Em vez de estimular práticas de colaboração e acentuar o papel coordenador de importantes organizações internacionais, a pandemia de COVID-19 está sendo tratada como justificativa para o acirramento de retóricas políticas (e eleitorais) antiglobalização, baseadas no aprofundamento de práticas unilaterais e nacionalistas. Os Estados Unidos são certamente o grande destaque nesse processo descoordenador, anticolaborativo e antimultilateralismo. Esse desacerto político internacional está produzindo efeitos sobre o papel da OMS, que, já castigada pelo tempo, vem sendo ainda mais fortemente abalada pela pressão norte-americana.
A verdade é que o impacto da pandemia de COVID-19 foi maior nos EUA do que em qualquer outro país do mundo.
E isso não apenas em relação ao número de vidas perdidas, que já ultrapassam os 100 mil óbitos, mas também no número de desempregados. Quase 39 milhões de americanos perderam seu emprego nas últimas semanas, o que corresponde a mais de 10% de toda a população e a mais de 20% da população economicamente ativa. A taxa oficial de desemprego em maio atingiu 14,7%, o que significa um número inédito desde a Grande Depressão da década de 1930.
Como consequência, a popularidade do presidente cai, alcançando seu nível mais baixo desde 17 de novembro. De acordo com o site Real Clear Politics, que calcula a média diária de pesquisas de opinião, em 25 de maio, o índice de aprovação de Trump chegou a 43,9%, e a rejeição, a 53,9%. Esse cenário pode levar a uma maior radicalização do discurso e das ações do governo Trump, como parece ser o caso do rompimento com a principal organização internacional responsável pelas coordenação das políticas de enfrentamento da maior pandemia em um século.
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[1] Para conhecer melhor as atribuições da OMS e uma parte de sua trajetória histórica, consultar: BEDER, Yves. The World Health Organization: Achievements and Failures. Routledge, 2018.
[2] MARMOT, Michel. “Social Determinants of Health Inequalities”, The Lancet, 365: 1099–104, 2005.
[3] Ver, por exemplo: KAMRADT-SCOTT, Adam. WHO’s To Blame? The World Health Organization and the 2014 Ebola Outbreak in West Africa. Third World Quarterly, v. 37, n. 3, 2016.
[4] O caso Sanofi é emblemático do que vem sendo chamado de nacionalismo da vacina. O mesmo aconteceu com a tentativa dos EUA de garantir acesso prioritário à vacina em produção pela empresa alemã CureVac, conforme artigo “EUA e União Europeia: soberania econômica e inovação na saúde em tempos de coronavírus”, de Edna Aparecida da Silva, publicado no OPEU.
[5] Para uma análise dos impactos e uso da pandemia de COVID-19 nas disputas políticas e eleitorais nos EUA, ver o texto de Edna Aparecida da Silva “Coronavírus nos EUA: impactos no governo Trump e nas eleições americanas”, publicado no OPEU.
[6] Para uma análise específica sobre os efeitos da decisão sobre os países da América Central, consultar o artigo “COVID-19, la suspensión de inmigración por Trump y los efectos para Centroamérica”, de Stefany Lorena Ramos Escobar e Renata Peixoto de Oliveira, publicado no OPEU.
* Henrique Zeferino de Menezes é pesquisador INCT-INEU e professor do Departamento de Relações Internacionais e do Programa de Pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Contato: hzmenezes@ccsa.ufpb.br. Luciana Correia Borges é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais (UFPB) e mestre em Saúde Global e Desenvolvimento pela University College London (UCL). Contato: l.borges.17@ucl.ac.uk
** Recebido em 11 de maio de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
*** [Edit em 16 jul. 2020] Correção no volume do Panorama: v. 10, n. 2, Maio de 2020