Tombo do pato manco: o ‘último ano’ da política externa de Obama
Obama acena para a multidão em seu discurso de despedida do governo, em Chicago (Crédito: Darren Hauck/Getty)
Por Mateus de Paula Narciso Rocha*
No documentário “The Final Year”, de Greg Barker (2017), são retratadas, em ordem cronológica, as iniciativas, dilemas e constrangimentos da política externa de Barack Obama no último ano do mandato. Como qualquer obra humana, o diretor Barker “selecionou”, com base em suas ideias e nos limites de seu material empírico, aspectos da realidade para construir sua narrativa. O documentário oferece, então, um ponto de vista favorável à política externa de Obama, sugerindo ser ela norteada pelos bons valores – direitos humanos, soluções diplomáticas, mudança climática. Assim, são apresentados: o idealismo dos tomadores de decisão e seu drama humano; a diversidade da equipe de governo; e discursos tocantes, como o de Obama em Hiroshima, e os de Samantha Power para vítimas do Boko Haram e imigrantes.
Desse modo, a obra gerou controvérsias, e alguns críticos notaram um tom de “propaganda” no filme – o que, no geral, não é o caso. Todavia, ao discutir a Síria, o busílis do período Obama, o rótulo tem certa validade, e o relato de Barker ganha contornos maniqueístas. A Rússia e o presidente Vladimir Putin são apresentados como “vilões”, óbices ao papel benévolo que os Estados Unidos desempenhariam. Assim, o documentário joga luz sobre o drama sírio e sobre os discursos estadunidenses, mas não ilumina os interesses estratégicos das duas grandes potências, tampouco menciona o papel americano de financiar e treinar rebeldes para derrubar Bashar al-Assad. Dessarte, o ataque dos Estados Unidos às forças de Assad, em meio ao cessar-fogo, “é” um inegável acidente, enquanto o ataque subsequente ao comboio da ONU “é” uma decisão espúria e calculada dos russos.
O filme é centrado em duas figuras próximas de Obama desde as eleições de 2008. Uma delas é Ben Rhodes, assessor de segurança nacional para comunicações estratégicas, o escritor encarregado dos discursos presidenciais. A outra é Samantha Power, a embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas e uma defensora apaixonada dos direitos humanos. Segundo James Mann, tanto Rhodes como Power podem ser classificados como “Obamians”, personagens novos e relativamente jovens no Partido Democrata com ideias muito próximas às do presidente e que chegaram ao núcleo do poder com a eleição de 2008. Enquanto isso, o então secretário de Defesa, Ashton Carter, não aparece no filme e é limitado o acesso de Barker a Susan Rice (conselheira de segurança nacional), John Kerry (secretário de Estado) e Obama, envolvendo basicamente entrevistas entre os compromissos oficiais, quase sempre post-mortem.
Logo, em grande medida, o relato do diretor se alicerça no segundo escalão do núcleo decisório e fica circunscrito ao nível da “política declaratória”. Em uma cena que simboliza os limites da obra, Kerry entra em uma sala para conversar com o ministro das Relações Exteriores do Egito e fecha a porta em frente à câmera. Já em outro momento, o filme retrata uma reunião interna de Rhodes e seus assessores, discutindo o “assunto sensível” de como a administração deveria se comportar perante a imprensa. Isso não quer dizer que o documentário é insignificante; ao contrário, tem contribuições importantes e permite comparar noções teóricas com aspectos da realidade empírica.
Lições analíticas
O filme evidencia que o Estado e o núcleo decisório não são blocos monolíticos, e o comportamento externo é disputado e conformado por atores com diferentes leituras sobre o interesse nacional e sobre o uso da força. Na questão da Síria, as disputas internas colocaram, de um lado, Obama e Rhodes, adeptos de uma leitura pragmática e contida sobre o uso da força e, de outro, Power, adepta do intervencionismo humanitário por considerar intolerável o desrespeito aos direitos humanos.
Outra contribuição é destacar que os Estados Unidos estão em uma posição de poder extraordinária no mundo – na qual uma reunião em Washington pode decidir o destino de milhões de pessoas na outra ponta do planeta – e, ao mesmo tempo, o raio de ação do Executivo não é ilimitado. Como argumenta Rhodes, esse raio é constrangido pelo Congresso, pela correlação doméstica de poder e pelas leituras de outros governos – em proximidade ao dilema discutido por Stephen Krasner.
É relembrada, também, a importância relativa da experiência histórica para a política externa. O trauma do Iraque está presente nas justificativas que os integrantes da administração Obama oferecem para não fazerem uso da força militar na Síria. Essa experiência também impactou as operações militares de Obama, que privilegiavam o uso de drones, e não de tropas terrestres. Deve-se lembrar, porém, que o distanciamento histórico e a sucessão das gerações reduzem a influência desse aprendizado, como exemplifica o abandono da Doutrina Powell por Bush filho e como sabia Hegel.
O documentário ainda ajuda a realçar que os discursos dos estadistas devem ser avaliados com cautela, visto que, entre outras razões, parte significativa é feita por assessores que não necessariamente representam a corrente de pensamento dominante em uma crise. No caso Obama/Rhodes versus Power, os processos coincidiram, mas não se trata de resultado necessário. Em janeiro de 1950, por exemplo, o então secretário de Estado americano, Dean Acheson, colocou a Coreia fora de sua órbita de defesa e, meses depois, a Casa Branca liderava a resposta militar à invasão realizada pelas forças norte-coreanas.
Além disso, a projeção salienta as implicações da situação de pato manco (lame duck), momento no qual, como um ativo em desvalorização, a proximidade da saída do poder reduz o apoio doméstico e legislativo ao presidente. Nesse momento, a literatura identifica um maior ativismo internacional, com o objetivo de criar um “legado de política externa”, aproveitando-se das menores amarras domésticas para iniciativas mais arrojadas.
No artigo “Lame‐Duck Foreign Policy” (2016), Philip Potter argumenta que, no período eleitoral, o Congresso (e o eleitorado) reduz os constrangimentos em matéria de política externa, pois os congressistas preferem concentrar as atenções em pautas domésticas que geram mais votos. Com isso, o presidente seria mais atado em temas domésticos e mais livre em temas internacionais (“two presidencies”). E um presidente pato manco seria mais livre do que os demais, pois se preocuparia mais com o legado do que com a reeleição. O documentário mostra os limites dessas iniciativas, ao apresentar o ceticismo dos outros estadistas quando firmavam compromissos com a Casa Branca naquele período.
Por fim, o filme reforça que a política externa é feita na contingência, em terra ignota, e que o processo eleitoral tem impacto significativo na política externa dos Estados Unidos. Ao contrário do argumento de Perry Anderson, as eleições podem gerar impactos reais na política exterior, como ilustra a vitória trumpista. A chegada de Trump à Casa Branca não apenas deixou atônitos os obamians, como também dissolveu uma série de árduos esforços diplomáticos – a aproximação com Cuba, o acordo nuclear com o Irã, o acordo climático de Paris e a Parceria Transpacífico (TPP). Além disso, como mostra o filme, tais impactos não ocorrem somente após a posse, mas enquanto se desenrola a corrida eleitoral. Nesse sentido, o tombo em novembro de 2016 não removeu somente o capital político internacional do governo Obama (passando de pato manco para pato morto, dead duck), como precipitou o fim do próprio documentário, ao estrangular seu frágil objeto.
* Mateus de Paula Narciso Rocha é mestre em Relações Internacionais (PPGRI-UFU). Pesquisa a política externa dos Estados Unidos para a China após a Guerra Fria.
** Recebido em 27 de maio de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.