Felipe Loureiro: Pandemia e o eixo Trump-Bolsonaro
Trump recebe Bolsonaro, em Mar-a-Lago, na Flórida. Várias pessoas da comitiva presidencial brasileira deram positivo para COVID-19 após a viagem (Crédito: T.J. Kirkpatrick/The New York Times)
Governo brasileiro mantém um alinhamento automático e unilateral com os Estados Unidos, algo que vai muito além do plano diplomático
Por Felipe Loureiro*
Virou moeda corrente dizer que Bolsonaro está entre os poucos líderes do mundo que negam a gravidade da pandemia da covid-19. Dentro dessa perspectiva, estaríamos junto com um seleto grupo de países, como Nicarágua, Bielorrúsia e Turcomenistão, que taparam o sol com a peneira, transformando-se em párias do sistema internacional.
Apesar de essa comparação não ser de todo inválida, ela esconde a principal aproximação que está por trás da abordagem de Bolsonaro para lidar com a crise do coronavírus: sua grande aderência aos Estados Unidos de Donald Trump.
É no trumpismo, e não no Turcomenistão, cujo governo vem literalmente negando a própria possibilidade de cidadãos serem infectados, tendo reportado a incrível façanha de não ter tido um único caso da doença até agora, que devemos procurar paralelismos e buscar respostas para entender a irresponsabilidade e a falta de sensibilidade do governo brasileiro diante da pandemia.
É verdade que a administração Trump, depois de ter minimizado a gravidade da crise, recuou em 16 de março, defendendo medidas de isolamento social, ao contrário de Bolsonaro, que continua fazendo guerra à quarentena.
É verdade também que Trump apresentou, em 16 de abril, em consonância com as recomendações da equipe técnica que trabalha no combate à pandemia, especialmente do epidemiologista Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, diretrizes aos Estados apontando para um relaxamento gradual e responsável das quarentenas.
Trata-se, mais uma vez, de uma postura bem diferente da de Bolsonaro, e que levaria à bombástica troca de comando do ministro da Saúde, motivada pela defesa de Luiz Henrique Mandetta às medidas de isolamento social.
Mandetta vinha desempenhando junto à opinião pública brasileira um papel semelhante ao de Anthony Fauci nos Estados Unidos; com ele fora do governo, Bolsonaro ficou sem contraponto no nível federal, ao contrário de Trump, sempre acompanhado por Fauci, ou por outros membros técnicos da força-tarefa quando dá entrevistas.
Apesar dessas concessões ao bom senso, o cerne das ações de Trump vai exatamente no mesmo sentido das atitudes de Bolsonaro, colocando em risco a saúde da população.
Um dia após ter apresentado diretrizes aos Estados para um retorno gradual e controlado de atividades sociais, Trump lançou uma série de tuítes escandalosos incitando a população de Michigan, Minnesota e Virginia – todos governados pelo Partido Democrata – a se revoltar contra medidas de isolamento, engrossando protestos, liderados principalmente por grupos de extrema-direita, a favor do direito de ir e vir e em prol do retorno imediato ao trabalho.
Não foi uma atitude isolada. Na realidade, desde o início da quarentena, Trump vem travando verdadeira guerra contra governadores sobre a necessidade de uma reabertura rápida da economia.
Trump inicialmente declarou que exercia poderes absolutos sobre os Estados, enfatizando que decidiria sozinho sobre se, quando e como a quarentena deveria ser implementada; depois, tendo recebido uma enxurrada de críticas de juristas, que negaram que o presidente tivesse tal prerrogativa, Trump recuou, passando a criticar governadores pelas quarentenas e a pressioná-los publicamente a acabar com restrições às atividades econômicas.
De novo, o paralelismo com o Brasil de Bolsonaro é impressionante. João Doria e Wilson Witzel, governadores de São Paulo e Rio de Janeiro, estão para Bolsonaro como Andrew Cuomo e Gretchen Whitmer, líderes dos Estados de Nova York e Michigan, estão para Trump.
Para além de confrontar governadores e apoiar protestos, Trump busca atingir a reabertura da economia a outros meios a qualquer custo. Chama atenção sua defesa desesperada a favor de remédios alternativos e sem comprovação científica contra a doença, indo da promoção da hidroxicloroquina à recente afirmativa, que imediatamente entrou para os anais como talvez a mais irresponsável e criminosa já feita por um presidente na história dos Estados Unidos, acerca da potencial plausibilidade de se injetar desinfetante para “limpar” o corpo do vírus.
Bolsonaro já aderiu efusivamente à hidroxicloroquina. Seu próximo passo pode ser a defesa do desinfetante.
Da mesma forma, Trump vem tendo uma atitude irresponsável sobre a questão da disponibilidade de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) às equipes de saúde e, especialmente, sobre a oferta de testes tanto para diagnóstico da doença quanto para aferição de imunizados.
É consenso na comunidade científica que um fim responsável da quarentena depende da ampla disponibilidade desses insumos. Caso contrário, profissionais da saúde correrão sérios riscos e formuladores de política pública pilotarão no escuro, sem saber como a doença está evoluindo nas localidades sob sua jurisdição.
Nesse âmbito, Trump lança mão de tática mista: para além de ter deixado nas mãos dos próprios Estados a responsabilidade de adquirir materiais e equipamentos de saúde, competindo irracionalmente entre si e com o próprio governo federal norte-americano para a compra desses insumos, Trump investe contra governadores quando há reclamação de falta de materiais, acusando-os de incompetentes.
Além disso, em vez de confrontar as recomendações científicas sobre a importância da testagem para uma reabertura segura da economia, Trump decidiu confrontar os próprios fatos, inflando a quantidade de testes que vêm sendo realizada e pintando o país como muito mais preparado para a fase pós-quarentena do que realmente está. Passa-se, nesse sentido, uma sensação de falsa segurança à população.
Por aqui, Bolsonaro é mais direto: nem toca na questão da ajuda a Estados para a compra de insumos e muito menos se importa com a brutal subnotificação de casos da doença devido à falta de testes.
Há, assim, apenas uma aparente contradição no governo Trump. Os sinais no sentido de apoiar um planejamento responsável para o fim da quarentena se dissolvem diante da enxurrada de pressões lançadas pelo próprio presidente a favor do retorno imediato das atividades econômicas paralisadas. Para cada crítica ou aceno ao bom senso – vide, por exemplo, sua surpreendente repreensão ao mandatário da Geórgia por ter decidido reabrir a economia estadual muito cedo -, Trump desfecha um caminhão de ataques para minar quarentenas, independentemente dos custos em doentes e mortos.
As diferenças de abordagem entre Trump e Bolsonaro diante da pandemia são, portanto, menos de fundo e mais de tática. Essas diferenças se explicam, sobretudo, por duas especificidades do contexto norte-americano.
Primeiro, é mais difícil para Trump fazer um confronto claro contra a política de isolamento social tendo em vista os efeitos catastróficos que a pandemia vem produzindo nos Estados Unidos. Até então, a covid-19 ceifou por lá dez vezes mais vidas do que no Brasil, deixando um rastro de mais de 1,2 milhão de infectados.
Em segundo lugar, os Estados Unidos terão eleições presidenciais no fim do ano, o que torna os efeitos da pandemia para Trump muito mais consequentes no curto prazo.
Antes da pandemia, Trump surfava na onda de uma economia que apresentava forte dinamismo e baixíssimo desemprego; agora, a economia norte-americana enfrenta uma recessão histórica, tendo atingido mais de 30 milhões de desempregados.
Logo, entende-se o desespero de Trump para forçar uma reabertura da economia, apostando em uma recuperação rápida no segundo semestre a fim de impulsionar sua reeleição, apesar de muitos defenderem que o PIB norte-americano dificilmente atingirá o patamar pré-pandemia tão cedo.
O problema desse impulso a favor de uma reabertura a qualquer custo é que idosos, o maior grupo de risco da pandemia, têm um peso grande dentro do eleitorado trumpista. Se radicalizar no discurso de reabertura da economia, Trump arrisca alijar uma fatia crucial de sua base.
Assim, a falsa ambiguidade do presidente americano é proposital. Força a porta pelo fim das restrições às atividades econômicas, como Bolsonaro faz aqui, mas mantém uma espécie de seguro contra as mortes que já vieram e contra as muito mais que infelizmente virão, utilizando-se dos parcos momentos em que defendeu isolamento social e término responsável da quarentena para culpar governadores pelo caos na saúde pública, já que a administração da crise e as principais decisões sobre quarentena couberam aos próprios governadores, como Trump constantemente nos lembra.
Bolsonaro já ensaiou o mesmo movimento por aqui: no último dia 29, quando perguntado sobre o recorde de mortes diárias no Brasil, o presidente disse que a responsabilidade pelas mortes seria dos governadores, e não dele.
Como se vê, o alinhamento automático e unilateral que Bolsonaro mantém com os Estados Unidos vai muito além do plano diplomático. A forma pela qual o governo federal brasileiro responde à pandemia também tem em Trump um verdadeiro inspirador.
* Felipe Loureiro é professor do Instituto de Relações Internacionais da USP e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU).
** Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico, em 8 de maio de 2020. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.