Tensão entre EUA e China dispara na pandemia
Crédito: montagem por Nikkei Asian Review, com fotos de Xinhua, AP e Reuters
Por Alexandre Cesar Cunha Leite*
Desde a visita de Richard Nixon, em 1972, e o estabelecimento de laços diplomáticos entre EUA e China (1979) no governo de Jimmy Carter (1977-1981), as relações entre ambos, a despeito de discordâncias em alguns assuntos da agenda global, transcorriam em clima de cordialidade, respeito e, sobretudo, sem agressões que colocassem em risco os vínculos entre estes os dois países e o cenário global. Afirmar que as relações entre EUA e China seguiam um padrão diplomático de cordialidade não significa sustentar que, ao longo deste período, não existiram pontos de tensão, temas de discordância e eventos que elevaram o tom de seus governantes e respectivos staffs diplomáticos. Este final de década tem sido marcado, porém, por uma inflexão mais agressiva, causando turbulência nas relações bilaterais.
A eleição de Donald Trump em 2016 (2017-xxxx) trouxe um novo elemento para o cenário. A insatisfação norte-americana com o avanço chinês se tornou elemento de decisão política de viés reativo. Desde meados da década de 2000, a China tem avançado em seu projeto de inserção internacional. Os instrumentos de inserção são os mais variados. Em 2001, a China foi oficialmente aceita na Organização Mundial do Comércio (OMC), o que favoreceu os interesses comerciais chineses.
Na sequência de sua aceitação à OMC, a China, de forma pragmática, passa a figurar como um dos principais polos comerciais do globo. Rapidamente, tornou-se um dos principais motores da economia global. Ao mesmo tempo, no âmbito político, Pequim marca presença mais ativa na agenda global, com uma maior participação nos principais fóruns políticos internacionais.
Ainda na primeira década do século, a China se torna o principal credor da dívida norte-americana, eleva significativamente seus gastos em defesa e, em 2010, assume o posto de segunda maior economia do globo. Estes são exemplos da atuação global chinesa que afetam diretamente os interesses norte-americanos. Soma-se a estes a política externa chinesa para o continente asiático, reduzindo a influência e entrada norte-americana no continente. É essa ação chinesa que motivou o presidente Barack Obama a promover a estratégia denominada Pivot to Asia.
O cenário que antecede a emergência de Donald Trump como um representante dos interesses de parcela da população norte-americana teria ainda como elemento significativo a eleição de Xi Jinping ao final de 2012. A substituição de Hu Jintao por Xi Jinping eleva o tom e a assertividade política e econômica chinesa. É com a eleição de Xi Jinping que passamos a observar o embate entre o nacionalismo de Donald Trump (America First) e a concepção (idealista) do China Dream de Xi Jinping.
Enquanto Donald Trump demonstra má vontade com o multilateralismo e com as Instituições Internacionais, Xi Jinping tem conduzido a China no sentido contrário: reforça a presença chinesa nas instituições internacionais, defende o multilateralismo como mecanismo de desenvolvimento das nações e busca elevar a participação chinesa nos principais temas da atual agenda global. Não estranha que a atuação chinesa sob Xi Jinping cause incômodo a Trump.
O ‘fator China’ nas eleições 2020
Nas últimas duas semanas (maio/2020), a tensão que já existia entre as nações, devido a uma mal resolvida guerra comercial, a declarações polêmicas de Donald Trump sobre a responsabilidade chinesa na pandemia da COVID-19 (o “China vírus”) e às suas queixas contra as relações entre a OMS e a China, teve novo capítulo. Desta vez, o tema levantado por Donald Trump foi a disputa eleitoral norte-americana de 2020. Sustentando sua plataforma nacionalista e atento à sua popularidade em queda – muito em função da sua lentidão ao tratar a pandemia com seriedade –, Trump fez insinuações de que haveria interesses chineses envolvidos no processo eleitoral norte-americano. Em uma entrevista à agência Reuters, o presidente Trump declarou que “a China vai fazer tudo que puder para que eu perca esta corrida”.
Em recente entrevista à BBC, o economista Jeffrey Sachs alerta para as consequências do que ele classifica como uma tentativa de criar uma Guerra Fria entre EUA e China para o cenário global pós-COVID-19. A criação de um quadro de disputa entre China e EUA, considerando o ambiente conturbado pela pandemia, cria uma expectativa negativa e adiciona incerteza a um ambiente já tenso. As recentes declarações de Trump indicam que sua preocupação se encontra direcionada para a corrida eleitoral. Tendo uma disputa facilitada pelas enfraquecidas campanha e candidatura democratas, entende-se que o maior concorrente de Donald Trump é ele mesmo, seu desempenho econômico doméstico (fragilizado com o impacto da pandemia) e a manutenção de sua agenda reativa e nacionalista, no que concerne a temas da agenda internacional.
Neste contexto, ressaltar o antagonismo entre EUA e China tem sido um instrumento utilizado continuamente por Trump. Em sua alegada tentativa de impedir que a China obtenha vantagens na fragilidade norte-americana, o republicano tem reforçado seu discurso agressivo contra Pequim, incluindo declarações xenófobas que contribuem para estimular sentimentos de rejeição na população norte-americana. As acusações de que a China não informou as autoridades de saúde internacionais sobre o novo coronavírus, levando dúvida sobre a transparência e a veracidade dos dados informados pelo governo chinês, trouxeram mais tensão a uma relação já abalada. Na semana passada (14/5/2020), por exemplo, Trump chegou a sugerir que cortaria relações com a China por não confiar na administração chinesa.
Desde que assumiu o cargo, Xi Jinping tem demonstrado que as declarações de Donald Trump em diferentes áreas e temas não ressoam sem respostas. Além de questionar e rebater as acusações do presidente americano em relação à pandemia, o embaixador chinês nas Nações Unidas, Wang Qun, afirmou que a postura de Trump deteriora o relacionamento bilateral, mina os esforços colaborativos de enfrentamento da pandemia, prejudica a economia mundial e busca, por meio da culpa e da estigmatização da China, encobrir a ineficácia e a incompetência dos EUA na gestão e no controle da pandemia em seu território.
Nas críticas relativas ao tratamento e à transparência sobre a COVID-19, a China tem cooperado com as agências internacionais e com vários países, enquanto os EUA cooperam pouco com o mundo, reafirmando sua postura crítica ao multilateralismo vigente. Enquanto Washington informa o corte de suas contribuições à OMS, a China anunciou, em 18 de maio, que fará uma doação de US$ 2 bilhões por dois anos, como forma de ajuda financeira a ações de combate à pandemia. Xi Jinping também garantiu que, se a China tiver sucesso na busca de uma vacina, ela será um bem público global.
As declarações de Donald Trump têm surtido pouco efeito real nas relações chinesas com o resto do mundo. Internamente, porém, têm conseguido alimentar uma percepção negativa a respeito da China. Um elemento que pode acentuar essa visão está no efeito causado pelas atividades econômicas globais chinesas nas empresas norte-americanas e no emprego dos cidadãos norte-americanos. As repetidas falas de Trump a respeito da COVID-19 e o número de óbitos por coronavírus nos EUA (90.432 até 19 de maio) têm influenciado essa tendência de crescimento de uma visão negativa, com uma evolução semelhante entre democratas e republicanos. Tentar angariar votos, unir a sociedade e ofuscar um desempenho político ruim por meio da criação de um inimigo externo comum é recurso já bem conhecido na terra do Tio Sam, mas não é sempre que funciona.
* Alexandre Cesar Cunha Leite é pesquisador do INCT-INEU e professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
** Texto recebido em 19 de maio de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.