China e Rússia

A retórica anti-China de Trump e sua tendência de continuidade em 2020

Crédito da imagem: Lazaro Gamio/Axios

Por Mateus de Paula Narciso Rocha*

No início de 2020, o governo Trump esfriou a retórica contra a China, em meio à assinatura da Fase Um do acordo comercial com Pequim. Nesse período, o presidente até elogiou a forma como Pequim reagiu ao coronavírus. Em meados de março, contudo, a disseminação do coronavírus revelou a gravidade da crise, implodindo o sistema de saúde de alguns países e dissolvendo os mercados financeiros. Destarte, foi iniciado o jogo da batata quente e, quase simultaneamente, oficiais chineses lançaram teorias de que os Estados Unidos teriam produzido a pandemia, e Trump voltou ao ataque contra a China. No fim de março, Trump lançou a possibilidade de o coronavírus ter sido criado em um laboratório na China e passou a classificar a COVID-19 como o “vírus chinês”. Por uma série de razões, a retórica de Trump contra a “ameaça chinesa” dificilmente será revertida antes das eleições presidenciais.

Em primeiro lugar, a crítica à China é recorrente em tempos eleitorais. Em 1980, Ronald Reagan rechaçou o abandono de Taiwan que Jimmy Carter teria efetivado. Em 1992, Bill Clinton contestou a fraqueza da resposta de George H. W. Bush a Tiananmen. Em 2000, quase o oposto, Bush filho criticou a ideia de Clinton de que a China seria uma “parceira estratégica”. No pleito de 2012, o candidato republicano Mitt Romney fulminou a fraqueza e a ineficácia da política para a China de Barack Obama, propondo maior assertividade para responder às práticas comerciais de Pequim. Nas eleições de 2016, Trump afirmou que a China era uma inimiga dos Estados Unidos e criticou duramente as práticas comerciais de Pequim por roubarem empregos norte-americanos. Com isso, conquistou o voto de parte do eleitorado de pendor democrata, em função do protecionismo. Nesses processos, ainda que a oposição tenha sido o principal vetor de ataque, a situação também adotou um discurso mais duro, de modo a diminuir a eficácia dessa carta política.

Outra razão é que a crítica trumpista à China não é apenas retórica. Há uma agenda substantiva contra Pequim, a qual tem apoio bipartidário e envolve ações no plano econômico, diplomático, estratégico e cultural. Em 2017, Trump formou uma equipe de governo com indivíduos de ideias notadamente anti-China, com nomes como Robert Lighthizer, Steve Bannon e Peter Navarro. Em sequência, o governo Trump afirmou em documentos como a National Security Strategy e a National Defense Strategy que a China era uma potência revisionista a ser contida. Desde março de 2018, o discurso começou a ser materializado. Naquele mesmo mês, Trump iniciou a tarifação de produtos oriundos da China, gestando a guerra comercial.

Entrementes, a Casa Branca lançou uma campanha diplomática contra a empresa de tecnologia chinesa Huawei, com o objetivo de impedir que ela participasse da implementação do 5G em terceiros países. Pari passu, o governo americano bloqueou vendas de empresas no ramo de semicondutores por receios relacionados a Pequim e protestou contra os países que mudavam o reconhecimento diplomático de Taiwan para a China. Em 2019, Trump acordou a venda de dois pacotes de armas para Taiwan – envolvendo caças F-16, radares, mísseis antiaéreos, entre outros – em um cifra total que ultrapassa US$ 10 bilhões, a maior venda em décadas. Em grande medida, essa agenda é uma resposta à ascensão econômica da China, com profundas raízes estruturais e burocráticas.

Dados do Pew Research Center.

Figura 1 – A percepção sobre a China na sociedade norte-americana, 2005-2020

Além disso, o eleitorado estadunidense passou a perceber a China de modo muito mais negativo nos últimos anos. Em 2020, 66% da sociedade americana tem uma visão negativa com relação à China, segundo dados do Pew Research Center (figura 1). Outro incentivo para uma retórica mais dura.

Em acréscimo, a atuação errática e ineficaz de Trump na crise do coronavírus pode reforçar a necessidade de um boi de piranha para atravessar a tormenta eleitoral. Após semanas desprezando a crise, o presidente reverteu o curso, mas quando ela já havia se alastrado pelos Estados Unidos. Os Estados Unidos se tornaram o país com o maior número absoluto de mortes decorrentes da pandemia, totalizando mais de 89 mil óbitos oficiais em 17 de maio. Enquanto isso, forma-se uma grave crise econômica que parece ser comparável apenas à Grande Depressão da década de 1930. A taxa de desemprego nos Estados Unidos passou de 3,5% em fevereiro para 14,7% em abril, o maior valor mensal na série histórica iniciada em 1948 pelo U.S. Bureau of Labor Statistics.

Nesse contexto, há fortes incentivos eleitorais para o líder político requentar a ideia de inimigo externo, divertindo as atenções do público e construindo a união nacional em torno de si. Ademais, deve-se lembrar da personalidade de Trump e de seu gosto pelo espetáculo e pela hipérbole, o que torna ainda mais provável a continuidade do atual discurso anti-China. Sob esse prisma, a recorrência histórica, a substância da agenda anti-China, os incentivos eleitorais e as dificuldades sanitárias e econômicas gestadas pela pandemia favorecem o enfrentamento para consumo doméstico. Alguns processos podem atuar, porém, contra o curso atual.

A atual crise, paradoxalmente, aumenta a popularidade e a margem de manobra de muitos governantes. Em abril de 2020, enquanto a pandemia se aprofundava, os índices de aprovação de Trump apresentaram uma leve melhora. Dessarte, a descoberta de uma vacina, ou de um tratamento eficaz, contra a COVID-19 por parte dos Estados Unidos pode propiciar maior apoio a Trump, criando uma pequena janela para o retorno da estratégia de distensão retórica. Outro ponto que pode fazer Trump calibrar a retórica é a necessidade de cooperar com Pequim para adquirir os insumos e os equipamentos necessários para combater a pandemia.

Por fim, é importante destacar por um lado, com Susan Strange, que o futuro social é, em grande medida, aberto, e a ciência social não deve aspirar a prevê-lo, pois a ciência social que mais tentou isso – a economia – tem um histórico terrível de acerto. Por outro, deve-se lembrar, com Henry Kissinger, que projetar o futuro não é o mesmo que esperar a repetição sucessiva do presente. A correção dessas duas ideias não deve apagar, porém, o entendimento de que o futuro próximo é feito com base em tendências e forças que atuaram no passado e atuam no presente. Se não é possível prevê-lo, é possível observar alguns de seus contornos e tendências. Pelos elementos mobilizados, é improvável que o presidente Trump diminua as críticas à China nos próximos meses.

 

* Mateus de Paula Narciso Rocha é mestre em Relações Internacionais (PPGRI-UFU). Pesquisa a política externa dos Estados Unidos para a China após a Guerra Fria. Foi bolsista da CAPES e orientando do prof. dr. Filipe Mendonça (UFU), pesquisador do INCT-INEU e um dos responsáveis pelo podcast Chutando a Escada.

** Recebido em 19 de maio de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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