EUA na corrida pela vacina: caso Sanofi e o financiamento público em biotecnologia
Crédito da imagem: Reuters
Por Edna Aparecida da Silva*
O caso Sanofi é mais um episódio da corrida pela vacina para a COVID-19 e das disputas entre os Estados pela pole position, o que vem sendo chamado de nacionalismo da vacina. A declaração da empresa de que os EUA teriam prioridade no acesso à vacina em razão do financiamento provocou fortes reações políticas. Lembra-se, porém, que o objetivo do presidente Donald Trump – conseguir a vacina para os americanos antes de todos – já tinha sido anunciado por ocasião desse mesmo debate no caso da alemã Curevac.
A Autoridade Biomédica de Pesquisa e Desenvolvimento Avançado (Barda, na sigla em inglês), agência do sistema de inovação dos EUA, está investindo milhões de dólares, por meio de parcerias de risco, em dezenas de empresas com potencial para descobrir e produzir rapidamente a vacina. Cabe lembrar que “rapidamente”, segundo especialistas, significa no mínimo de 12 a 18 meses. Na lista das dez “big pharmas”, a Sanofi tem um projeto avançado de vacina e estaria apta para produzi-la em escala, participando de dois projetos: um, com a rival britânica GlaxoSmithKline (GSK), que recebeu apoio financeiro da Barda; e outro, com a empresa americana Translate Bio.
A Sanofi é uma transnacional de base francesa, na qual 37,3% dos acionistas são franceses, e 60%, investidores estrangeiros. Destes, 28,1% são americanos. Entre eles, destacam-se Trump, com participação na Sanofi por meio do fundo Dodge & Cox, e o secretário de Comércio, Wilbur Ross, pelo grupo de investimento Invesco.
Segundo artigo do jornal The New York Times, a Sanofi produz o Plaquenil, uma versão da hidroxicloroquina que vinha sendo defendida por Trump para o tratamento de coronavírus. Até aí as informações não causam espanto, já que Trump e importantes membros de sua equipe, como Ross e o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, são empresários que têm participações, ou relações, com grandes grupos de investimento.
Há, no entanto, outros aspectos importantes postos em evidência no caso Sanofi, como: a corrida das grandes corporações por recursos estatais e a alteração dos padrões regulatórios de testes e autorizações de medicamentos, as particularidades dos modelos nacionais de financiamento público de ciência e inovação, as diferenças em termos de capacidade de produção dos medicamentos dos países e o debate político sobre a noção de bem público. Esses temas revelam a complexidade do cenário global e as questões envolvidas na disputa entre os Estados pela descoberta e produção da vacina para o coronavírus.
Os recursos dos programas de pesquisa e desenvolvimento em biotecnologia e dos fundos públicos aprovados em caráter de emergência estão sendo mobilizado pelos Estados para o investimento em pesquisa nas maiores empresas do setor biofarmacêutico. As grandes corporações privadas de pesquisa e produção de fármacos estão em franca negociação com governos para terem acesso, além dos recursos, aos contratos de compras governamentais e para acelerar os processos de autorização das agências reguladoras.
A pesquisa de vacinas tem sido um campo menos atrativo e de baixa prioridade para as biofarmacêuticas, em razão dos riscos associados ao mercado, à regulação e a aspectos técnicos. Os dados mostram a redução do número de empresas de 26 em 1967, para 17 em 1980, e cinco em 2004, sendo que, destas cinco, as vacinas geraram apenas 10% da receita total. É o que apontam Jason Matheny, Michael Mair, Andrew Mulcahy e Bradley T. Smith, no artigo “Incentives for Biodefense Countermeasure Development”, publicado no periódico Biosecurity and Bioterrorism: Biodefense Strategy, Practice, and Science, em 2007.
Isso porque as empresas têm maior retorno financeiro com medicamentos de doenças crônicas e suas vendas repetidas. Dessa forma, mecanismos de financiamento público procuram responder a essas “preferências” e motivos, pelos quais o setor privado tem diminuído o investimento em pesquisas e desenvolvimento de vacinas.
Agora, no contexto da pandemia, as maiores empresas de biotecnologia de Estados Unidos, Europa e Japão têm estabelecido parcerias globais, entre as corporações e com os Estados. A chinesa SINOVAC e a parceria CanSino Bio e Instituto de Produtos Biológicos de Wuhan, de propriedade estatal, estão respectivamente nas fases 1 e 2 de testes para a vacina. Segundo dados da agência Bloomberg, os desenvolvedores têm mais de 100 projetos de vacina em andamento. O cenário sugere mais do que uma corrida. É uma guerra pela vacina.
Entendendo o caso Sanofi
Em entrevista à Bloomberg TV, em 14 de maio, o CEO da Sanofi, Paul Hudson, declarou que a empresa concederá acesso prioritário aos Estados Unidos quando descobrir a vacina para a COVID-19. “The U.S. government has the right to the largest preorder because it’s invested in taking the risk”, disse ele. Ou seja, a produção atenderia primeiro aos Estados Unidos e, depois, aos demais países. Hudson também se justificou dizendo que a agilidade dos mecanismos dos Estados Unidos contrasta com a lentidão da Europa para ajudar os esforços da indústria na busca pela vacina contra o novo coronavírus.
A Sanofi tem feito lobby para que a Europa adote o modelo de financiamento da Barda, que investe fundos públicos para subsidiar os estágios finais de desenvolvimento de produtos, o que inclui testes clínicos e produção. É considerado mais ágil e eficiente do que o Innovative Medicines Initiative (IMI), parceria entre a União Europeia e as indústrias farmacêuticas.
As reações do governo francês à declaração de Hudson foram imediatas.
“A vacina deve ser um bem público”, salientou o presidente Emmanuel Macron, que considerou, junto com sua secretária de Estado da Economia, Agnés Pannier-Runacher, “inaceitável” a posição da Sanofi. Políticos franceses lembraram que a empresa usufrui de benefícios fiscais de milhões de euros e que 80% de seu volume de negócios tem origem na seguridade social francesa. O primeiro-ministro Édouard Philipe enfatizou que o acesso de todos não pode ser negociável e que a vacina precisa ser retirada das leis de mercado. A mesma posição – a de que a vacina precisa ser um bem público – foi expressa pela Comissão Europeia e pela China.
Diante do caso, a França e a Comissão Europeia declararam que vão ampliar esforços para o financiamento das pesquisas. No Twitter, Macron prometeu: “A crise da COVID-19 nos lembra da natureza vital da pesquisa científica e da necessidade de investir em massa no longo prazo. Decidi aumentar nosso esforço de pesquisa em 5 bilhões de euros, um esforço sem precedentes desde o Pós-Guerra”.
Assim, este episódio repete os desdobramentos do caso Curevac. As declarações de possíveis privilégios aos EUA, em razão do aporte de recursos, tensionam o debate nacional e internacional. Também contribuem para que as empresas consigam mais investimentos dos Estados – não apenas recursos, mas também modelos de financiamento e regulações relativas aos processos nacionais para autorização da vacina.
Em entrevista à BMF TV, o presidente da Sanofi France, Olivier Bogilot, esclareceu a posição da empresa, enfatizando que, quando a vacina for descoberta, todos terão acesso ao mesmo tempo. Ao ser questionado diretamente pelo jornalista sobre se ”A França terá acesso ao mesmo tempo que os Estados Unidos?”, Bogilot abriu um sorriso enigmático e respondeu: “sim, se os franceses forem tão rápidos quanto os americanos na produção da vacina”.
Os executivos da Sanofi destacaram que, embora a empresa tenha três unidades em cada país, suas plantas europeias não estão capacitadas para produzir as vacinas que utilizam a tecnologia do DNA recombinante, usada na vacina em teste, segundo artigo no Financial Times. No caso dos EUA, a parceria com a Barda considera esse nível do processo, aspectos técnicos de produção, revisões de autorização e comercialização, o que certamente favorecerá o sucesso dos norte americanos na descoberta, ou no acesso à vacina.
Embora alguns tenham interpretado as explicações da empresa como um recuo diante da pressão das autoridades francesas, a fala de Bogilot destacou dois aspectos cruciais no contexto das tensões sobre a vacina. Longe de traduzir um recuo, a Sanofi explicitou a natureza das condições do financiamento de pesquisa que confere prioridade de acesso aos EUA. Também diferenciou o que se entende por acesso à vacina: descobrir a vacina, tarefa da pesquisa, não é o mesmo que produzir em escala. A produção envolverá acesso aos materiais, equipamentos e expertise, que serão exigidos para cada tipo de tecnologia usada na plataforma da vacina.
Essa questão, como destacou Hudson, envolve a discussão da soberania nacional do sistema de saúde. Isso significa que, quando houver uma vacina, os EUA e outros países terão acesso à inovação, e a Sanofi responderá a demanda do território onde está instalada. Já a produção dependerá da capacidade das plantas produtivas em cada país. O que está claro é que os países concentrarão seus esforços para atender prioritariamente sua demanda doméstica, já que a corrida pela vacina envolve a retomada da economia.
Em resumo, a perspectiva é que o cenário de cooperação e as parcerias entre as corporações globais e os Estados para o desenvolvimento da vacina mudem, quando se colocar em questão as diferenças de capacidades de produção industrial.
De onde vêm os recursos de Trump?
O modelo dos EUA capaz de acelerar a pesquisa, citados por Hudson e Bogilot, refere-se às parcerias público/privado utilizadas no financiamento de pesquisas em biotecnologia pela Barda. A agência tem hoje um orçamento de US$ 5 bilhões para a pesquisa da vacina de COVID-19, segundo divulgou a Reuters. No fundo emergencial aprovado pelo Congresso, dos US$ 8,3 bilhões, US$ 3 bilhões foram destinados para o desenvolvimento da vacina.
A Barda é uma agência do gabinete do secretário assistente de Preparação e Resposta do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. Como relata Michael J. Eicheberg, no artigo “Public Funding of Clinical-Stage Antibiotic Development in the United States and European Union”, publicado na revista Health Security, em 2015, foi criada pelo Congresso em 2010 para fornecer investimento federais em estágios finais do desenvolvimento de contramedidas para bioterrorismo e pandemias, assim como para coordenar investimentos em projetos de inovação, pesquisa e desenvolvimento, aquisição e produção de vacinas, drogas, instrumentos de diagnósticos, produtos não farmacêuticos para lidar com ameaças de segurança em saúde, doenças infecciosas e projetos com aplicação clínicas e em biodefesa. Em conjunto com a Food and Drugs Administration (FDA, a agência americana reguladora do setor de alimentos e remédios), tem como objetivo a segurança e a proteção da saúde pública relativas aos produtos biológicos de uso humano e recursos médicos.
Desde 31 de janeiro, quando ocorreu a declaração de emergência pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos, a Barda e a FDA iniciaram as parcerias público-privado para o desenvolvimento de vacina. Em fevereiro de 2018, a Janssen Pharmaceutical Companies, da Johnson & Johnson, e a Sanofi entraram em parceria público/privada com a Barda para desenvolvimento da vacina. Outras empresas que estão avançadas na pesquisa, como havia sido declarado por Trump, também receberam recursos da Barda. Entre elas, a Sanofi, que recebeu US$ 30 milhões; e as americanas Moderna Inc., de Cambridge, Massachusetts, e Janssen Pharmaceutical Companies, da Johnson & Johnson, que receberam US$ 483 milhões e US$ 456 milhões, respectivamente.
Em relação ao modelo de financiamento da agência, cabe lembrar que seu propósito tem sido o de estabelecer parcerias com o setor privado para o desenvolvimento de produtos de biotecnologia, de aplicação dual, que respondam aos objetivos de biodefesa e ao mesmo tempo gerem produtos comercializáveis, com partilha de riscos. Trata-se de um modelo de negócios no campo dos setores estratégicos, de biodefesa e saúde, desenhado para o mercado. Assim, as declarações polêmicas sobre a concessão de acesso exclusivo, ou prioritário para os Estado Unidos, em que pese o espanto, estão previstas nos contratos estabelecidos com a Barda. Não se sabe os termos específicos do contrato com a Sanofi.
No modelo Barda, segundo o Bayh-Dole Act, que é a Lei de Emenda à Lei de Marcas e Patentes (Pub. L. 96-517, December 12, 1980), da Federal Acquisition Regulation (FAR), a empresa permanece com os direitos de propriedade intelectual, e o governo usufrui de licença não exclusiva para usar a propriedade intelectual desenvolvida no âmbito do contrato.
Ainda conforme Eicheberg, “a propriedade intelectual desenvolvida com fundos federais também está sujeita a uma “preferência pela indústria dos EUA”, exigindo que os produtos derivados comercializados sejam fabricados nos EUA, embora possa haver isenções. No que diz respeito aos colaboradores, “um contratado deve permitir especificamente que subempregados sem fins lucrativos ou pequenas empresas mantenham licença para o propriedade intelectual que desenvolvem, sujeito aos termos da Bayh-Dole”.
No trecho selecionado, os dois pontos citados pela Sanofi estão muito claros. Na parceria realizada com a Barda, estão envolvidos o direito de uso da propriedade intelectual e sua produção nos Estados Unidos. Não é casual que os maiores volumes de recursos estejam sendo direcionados para as empresas que têm projetos avançados de vacina e que têm instalações no território americano. Cabe lembrar que as parcerias da agência são abertas a empresas americanas e estrangeiras, e no IMI, por exemplo, apenas europeias.
A Moderna, que acaba de anunciar resultados positivos de testes em humanos, é um exemplo de como funciona a coordenação entre agências americanas nas parcerias da Barda. Com a “fast track designation” da FDA, a empresa passa a discutir o plano de desenvolvimento com a agência reguladora, elegendo-se para o “Accelerated Approval and Priority Review”. Esses mecanismos permitem acelerar os prazos de autorização para que um medicamento seja comercializado.
Alguns aspectos políticos merecem destaque nesse contexto:
1. A vacina tem alta prioridade na agenda Trump, tanto para suas expectativas de reeleição quanto para a reabertura da economia. O presidente declarou à Fox News: “We are very confident that we’re going to have a vaccine at the end of the year, by the end of the year”. Suas ações para “obter a vacina antes dos demais”, coerente com seu discurso de colocar os EUA antes de todos, mostra seu esforço para ofuscar sua inação e indiferença no início da pandemia. Ao chamar o coronavírus de “vírus chinês”, o republicano tem explorado o sentimento anti-China que é cada vez mais presente nos EUA, reforçando a xenofobia e o racismo.
Considerando-se o volume de recursos, a natureza da parceria com agências estadunidenses, o estágio avançado das pesquisas e o fast track concedido pelas agências reguladoras para acelerar o processo de testes, há indícios de que os Estados Unidos poderão chegar na frente na corrida da vacina. O que certamente será um trunfo eleitoral para Trump.
2. O caso Sanofi mostra como o setor de biotecnologia, em face da pandemia e das pressões para a retomada das economias, beneficia-se da concorrência entre os Estados e das diferenças entre os sistemas nacionais de inovação pra abocanhar grandes fatias de investimentos públicos. O que também favorece sua posição de barganha para influenciar os padrões de aprovação de medicamentos das autoridades regulatórias dos países para que a vacina seja produzida mais rapidamente.
As críticas apontam que, provavelmente, mesmo com a injeção de milhões de dólares, vários desses projetos fracassarão. Isso representa um dispêndio de recursos e de fundos públicos que poderiam ser aplicados no socorro aos grupos mais vulneráveis atingidos pela pandemia. Nos EUA, por exemplo, a proposta de uso dos recursos dos fundos de emergência para remunerar licença-saúde de 14 dias para os trabalhadores, apresentada em março pela senadora Patty Murray (D-WA) e pela representante Rosa DeLauro (D-CT) parece ter poucas chances de aprovação.
3. O debate sobre a natureza de bem público versus direitos exclusivos coloca em foco a necessidade de discussão sobre mecanismos multilaterais para a coordenação internacional das questões envolvidas no acesso, produção e distribuição da vacina em escala global. A proposta da vacina como bem público global tem sido defendida por organizações internacionais, como a Vaccine Alliance, pela Comissão Europeia e pelo presidente chinês, Xi Jinping.
Outra iniciativa é a aliança global entre líderes mundiais e a cúpula da Organização Mundial da Saúde (OMS) para criar um fundo de financiamento de pesquisas de vacina e de terapias e para a distribuição para os países mais pobres. Desde abril, o encontro virtual, sem a participação de Trump, contou com a presença da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e de líderes de França, Alemanha, Espanha, Itália, Canadá, Japão, Jordânia, Noruega, Israel, e África do Sul.
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Para finalizar, cabe uma observação sobre a trajetória do governo Trump na gestão da pandemia. O quadro de fragilidade social, precariedade dos direitos de saúde e do trabalho nos Estados Unidos fez emergir expectativas de que políticas de Bem-Estar Social seriam postas em marcha diante dos graves impactos humanos e sociais da pandemia. O que se verificou no governo Trump foi, no entanto, o aprofundamento das políticas que privilegiam os grandes grupos econômicos – seja por meio de pacotes de ajuda, seja com isenções fiscais –, ao lado da redução de recursos para os programas sociais, como mostram suas propostas de orçamento. Dessa forma, o Estado transfere a riqueza dos pobres para os mais ricos, radicalizando o cenário das desigualdades da sociedade americana no contexto da pandemia.
* Edna Aparecida da Silva é cientista política e pesquisadora do INCT-INEU.
** Recebido em 18 de maio de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.