China e Rússia

As relações EUA-Arábia Saudita sob pressão

(Crédito: Eliot Blondet/AFP/Getty Images)

Por Solange Reis*

O Pentágono ordenou a retirada de alguns recursos militares do território saudita. Conforme apurou o Washington Post, na semana passada, há planos futuros de reduzir a presença marítima na região.

Segundo fontes militares, os ativos serão removidos porque o Irã não representa mais uma ameaça tão grande. O assassinato do general Qassei Soleimani pelos Estados Unidos e os efeitos socioeconômicos da pandemia teriam fragilizado o país militarmente.

É possível que a menor importância iraniana seja meia-verdade, ou nem isso. Em fins de abril, o Irã lançou seu primeiro satélite de reconhecimento militar, entrando para um seleto grupo de países. Essa capacidade leva o jogo bélico para outro patamar e impõe cautela aos demais, mesmo às superpotências.

Ao mandar retirar os equipamentos e soldados, os Estados Unidos talvez estejam mais motivados por outros fatores geopolíticos, como concentrar forças contra grandes potências fora do Oriente Médio. E isso apenas confirma a política externa realista que Donald Trump defendeu em campanha e, de forma menos consistente, na presidência.

Poupando ativos

O plano de retida abrange quatro baterias de mísseis Patriot, 300 soldados e dois esquadrões aéreos. Duas baterias protegem instalações de petróleo. As demais não foram identificadas, mas estariam em bases americanas no país ou em outro local no Oriente Médio. Todas foram posicionadas no ano passado, durante a escalada da tensão com o Irã.

Para o porta-voz do Pentágono, Sean Robertson, esse tipo de movimentação é normal. Já os militares disseram ao jornal que o motivo é realocar os ativos na Ásia. Cresce entre os oficiais a percepção de que o foco estratégico precisa ser deslocado para o eventual conflito com grandes potências, sobretudo China e Rússia.

A reorientação tem sido defendida pelo secretário de Defesa, Mark Esper, e coincide com a visão de Donald Trump antes e após a eleição. Se for levada adiante, como já pretendia o presidente Barack Obama com seu Pivot Asiático, significará um retorno à política tradicional do pré-Guerra Fria.

Afinidades eletivas

A atitude também representa uma quebra de padrão no relacionamento com a Arábia Saudita. A bordo de um navio militar, em 1945, o presidente Franklin D. Roosevelt se encontrou, sigilosamente, com o rei Abdul Aziz Ibn Saud para selar o pacto que embasou a relação bilateral e condicionou vários eventos da política internacional no pós-guerra.

O presidente desejava acesso às reservas sauditas para empresas privadas americanas e a reconstrução da Europa. Embora os Estados Unidos fossem o maior produtor na época, era sabido que suas reservas não atenderiam ao crescimento global que se projetava.

A superpotência já era a garantidora mundial de segurança, enquanto a Arábia Saudita caracterizava-se como o que o autor realista, Hans Morgenthau, chamou de Estado por “cortesia semântica”. Institucionalmente fraca, a monarquia viu no apoio militar americano sua sobrevivência no longo prazo. Estabeleceu-se, então, o intercâmbio de petróleo e segurança.

Aspirante militar

Os próprios sauditas passaram a interferir militarmente em sua região, um caminho traçado desde a Revolução Iraniana, em 1979. O país serviu como contraponto ao Irã, mas também a outros atores estatais e não estatais. Por diversas vezes, atuou como instrumento de pressão americana sobre Israel, Iraque, Egito e outros. Sem esquecer que foi em seu território, com a anuência de Washington, que surgiram grupos terroristas do pós-Guerra Fria.

Em sua investida mais explícita, a Arábia Saudita trava hoje uma guerra no Iêmen contra os houthis, etnia que conta com apoio iraniano. A ação tem suporte tático e político da Casa Branca, mas vem sendo criticada pelo Congresso. Sobretudo depois da morte do jornalista Jamal Khashoggi, um residente americano assassinado no consulado saudita, em Istambul. É essa indisposição recente da classe política que Donald Trump usa como pressão sobre o aliado para interesses energéticos e militares.

Interdependência

De 1945 para cá, a Arábia Saudita se tornou um dos maiores produtores de petróleo e nacionalizou a produção. Manteve, no entanto, estreitas relações comerciais com empresas e governos americanos. Com as maiores reservas convencionais do mundo, o país tem atuado como um pêndulo da balança nos preços globais.

Depois dos anos 1970, os Estados Unidos se tornaram muito dependentes do petróleo saudita. Quer seja para consumo próprio, salvaguardar os interesses das petrolíferas privadas ou equilibrar o preço global do produto.

Mesmo depois do desenvolvimento das reservas de xisto, a partir de 2011, continuaram a importar muito petróleo saudita. Isso deve-se ao fato de que boa parte das refinarias americanas foi projetada para processar um tipo de petróleo mais parecido com o saudita do que o de xisto.

Além disso, é preciso defender os interesses de exportação do aliado. Uma Arábia Saudita enfraquecida economicamente não tem utilidade para os objetivos estratégicos americanos no Oriente Médio. A própria estabilidade do país depende do projeto “Visão 2030”, implementado pelo príncipe Mohammed bin Salman (MBS).

Assim, as relações EUA-Arábia Saudita contemporâneas acrescentam uma lógica inversa à anterior. Os sauditas ganham importância no campo da segurança, enquanto os americanos equilibram o mercado de petróleo.

Preços em agonia

Os interesses dos produtores de petróleo de xisto têm um ponto de contato com a retirada dos recursos militares. Tudo começou em março, quando a OPEP+ (que reúne membros e não membros da OPEP) não conseguiu definir o volume de produção que sustentaria preços competitivos face à desaceleração econômica que já se anunciava.

A Rússia não aceitou reduzir a produção como queria a Arábia Saudita. Essa decidiu ver o circo pegar fogo, aumentando o próprio volume. O impasse fez os preços sofrerem a maior queda em dezessete anos, indo para menos de US$ 20.

Há especulações de que houve convergência entre russos e sauditas para ferir mortalmente a indústria de petróleo de xisto nos Estados Unidos. Embora seja difícil dar números – cada empresa tem um ponto de equilíbrio variável conforme o tipo e grau de esgotamento das reservas – o barril cotado a menos de trinta dólares é fatal para os produtores americanos.

Com o agravamento da pandemia de Covid-19, os preços sofreram uma queda abrupta. Em abril, o preço foi de US$ 23 a US$ 5, chegando a ficar negativo nos contratos com vencimento em maio. Valores negativos significam que os compradores pagam para que o produto não seja entregue na data de execução dos contratos por falta de demanda e, consequentemente, de local para armazenar o estoque encalhado.

Washington reage

Trump alertou o príncipe MBS de que não conseguiria impedir o Congresso de passar medidas pela retirada de tropas, caso Riad não cortasse a produção. Senadores ligados a estados produtores de petróleo nos Estados Unidos também enviaram uma carta ao príncipe apelando por “bom senso”.

Dias depois, MBS ordenou o corte de sua produção e, assim como os Estados Unidos, forçou outros países a aderir. Hoje, o barril está novamente próximo de US$ 30. Longe do ideal, mas mais perto do chamado break-even (ponto em que custos e receitas se igualam).

Algo semelhante pode estar acontecendo com a relação entre os dois governos, especialmente porque Trump não cumpriu o acordado com MSB. Usou o porrete sem entregar a cenoura, por assim dizer. No médio e longo prazo, o gesto da Casa Branca pode empurrar a Arábia Saudita para os braços de outros produtores armamentistas, como a Rússia.

Fator doméstico

Há também a ideia de que o presidente visa a acalmar o Congresso sem ter de mostrar-se leniente. Em 7 de maio, Trump aplicou mais um veto, o sétimo em quase quatro anos e o quinto relacionado com o Oriente Médio. Dessa vez, foi para derrubar uma resolução que impedia ações militares contra o Irã sem prévia autorização legislativa. Dessa forma, a retirada de recursos militares da Arábia Saudita seria uma maneira de sinalizar que não haverá nenhuma investida, mas sem demonstrar fraqueza política.

Com as eleições chegando, essa versão ganha peso. Afinal, Trump prometeu drenar o pântano da política. Ceder ao sistema o faria ser visto como parte da velha política que seus eleitores rejeitam. A narrativa sobre conter a China também funciona eleitoralmente para Trump. Com a popularidade arranhada pela incompetência no enfrentamento do coronavírus, qualquer ponto ascendente nas pesquisas compensa o remanejamento de sistemas de defesa de mísseis, caças e tropas. No tudo ou nada da reeleição, vale até escantear um velho aliado.

Normalização da segurança

Para além de todas as motivações citadas, há o aspecto ideológico. O governo Trump seria mais reformista do que revolucionário em política externa. E nada mais tradicional nas relações internacionais do que a política de poder entre grandes nações e a percepção de que somente as guerras entre elas são válidas.

Embora errático e costumeiramente ambíguo, o presidente não vê em terroristas, jihadistas e talibãs a maior ameaça à segurança nacional. Tampouco acredita que seja do interesse nacional intervir em outros países, sobretudo nos chamados “Estados delinquentes”. A saída da Síria e o acordo feito com o Talibã, no Afeganistão, são indícios da preferência por alocar forças longe de conflitos assimétricos.

O coronavírus surge como um desafio a Trump, mas também como oportunidade geopolítica. Em um contexto de antagonismo extremado com a China, seria muito mais fácil convencer quem quer que seja de que o real inimigo não está no Oriente Médio, mas na Ásia.

 

*Doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). 

** Recebido em 16 maio. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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