Boeing rescinde acordo com Embraer
Crédito: Erik Simonsen/Getty Images
Por André Jorge Dias de Moura Junior*
A crise econômica causada pela COVID-19 tem mais um atingido: o Acordo Global de Operação (Master Transaction Agreement, MTA, na sigla original em inglês) entre a estadunidense Boeing e as brasileiras Embraer e Yaborã Indústria Aeronáutica. Esta última foi criada pela Embraer para incorporar a divisão comercial da empresa, de modo que pudesse concluir a transferência para a Boeing sem comprometer bens, ativos e passivos das outras divisões (executiva, defesa, agrícola e serviços).
Segundo a Boeing, o rompimento veio por causa do descumprimento de prazos por parte da empresa brasileira, “que não atendeu as condições do Acordo”. A Embraer respondeu em nota que, na verdade, “(…) a Boeing rescindiu indevidamente o Acordo Global de Operação (MTA) e fabricou falsas alegações, como pretexto para tentar evitar seus compromissos de fechar a transação e pagar à Embraer o processo de compra de US$ 4,2 bilhões”.
Sucessão de erros
A rescisão do acordo, que deve ser levada às instâncias judiciais, vem em um momento de tensão na economia global, causado pelo isolamento para conter o avanço da pandemia de COVID-19. Além disso, a Boeing enfrenta a maior crise de sua história, acumulando prejuízos da ordem de US$ 4 bilhões por trimestre para os envolvidos na cadeia produtiva de uma de suas aeronaves, o 737 MAX, como aponta artigo da revista The Economist (2019).
A própria Embraer também fez questão de citar em seu posicionamento sobre a rescisão do acordo que “… acredita que a Boeing adotou um padrão sistemático de atraso e violações repetidas ao MTA, devido à falta de vontade em concluir a transação, à sua condição financeira, ao 737 MAX e a outros problemas comerciais e de reputação”.
O fato é que a rescisão foi anunciada em 25/04/2020 pela Boeing e terá um impacto direto no futuro das duas empresas. O mercado aeronáutico é complexo, especialmente quando tratamos das maiores fabricantes de aeronaves comerciais do mundo. As principais características do setor de fabricação de aeronaves, como tecnologia avançada, força de trabalho altamente qualificada, alto valor agregado e uso civil-militar, fazem essas empresas serem ativos estratégicos para seus Estados-sede.
Por esse motivo, quando falamos de aquisições, fusões e vendas dessas grandes empresas do setor, não estamos submetidos apenas às regras do mercado, como anunciou o então ministro da Defesa, Raul Jungmann, enquanto o governo brasileiro analisava a possibilidade de veto à aquisição da Embraer pela Boeing.
Embora o governo soubesse da importância da Embraer para o Brasil, a venda para a estadunidense Boeing foi aprovada. Desde então, as tratativas para a conclusão do negócio progrediam, incluindo a publicação do Master Transaction Agreement em 24 de janeiro de 2019, já em domínio público para consulta.
O interesse da Boeing pela Embraer veio no momento em que a principal concorrente da estadunidense, a europeia Airbus, anunciou que havia adquirido 50,01% de uma família de aeronaves da canadense Bombardier, a originalmente C-Series. Com essa movimentação, os europeus entraram em um segmento da aviação que era dominado pela Embraer e pela Bombardier com aeronaves de até 150 assentos para voos regionais.
Para impedir o avanço da Airbus em um segmento em que não conseguiria fazer frente, a Boeing se viu com algumas alternativas. A primeira delas seria desenvolver, desde a concepção mais básica, uma aeronave para o segmento de até 150 assentos, destinada para aviação regional. A segunda seria fazer uma parceria, ou adquirir uma outra empresa que detivesse essa tecnologia e, melhor seria, o produto pronto. A terceira e última opção seria a de não investir no segmento e se dispor ao risco de ver sua principal concorrente disparar na liderança do segmento.
A opção escolhida pela estadunidense foi adquirir a líder mundial na produção de jatos comerciais regionais, a brasileira Embraer. Assim, desde o anúncio pelo CEO da empresa brasileira, até o rompimento do Acordo no último dia 25, dois anos e meio se passaram. Nesse mesmo período, a Boeing mergulhou em uma crise inédita em sua história, resultado, principalmente, de uma série de erros no projeto do avião 737 MAX, que contabilizou duas quedas em um intervalo inferior a seis meses, totalizando 346 mortes.
Além da crise do 737 MAX, a empresa enfrenta dificuldades no projeto militar KC-46A, atrasos na entrega do 777X e redução da produção do 787 Dreamliner.
Essa crise escancarou uma versão assustadora, ainda que não surpreendente, da Pátria do mercado: as autoridades já sabiam dos problemas do projeto, mas eles foram ofuscados para não impedir as vendas e os lucros da empresa americana, como já indicou o relatório da Comissão de Transporte da Câmara dos Representantes dos EUA. Pouco tempo antes, em outubro de 2019, em matéria publicada no jornal The New York Times, foi revelado que um graduado engenheiro da Boeing, que participou do desenvolvimento do 737 MAX, já havia feito uma denúncia sobre a necessidade de um sistema de proteção que aumentaria a segurança de voo do avião. De acordo com a mesma fonte, a diretoria da Boeing havia recusado a solução para “reduzir custos e aumentar o lucro da empresa”.
Negócio bom para quem?
Era nesse contexto que o Acordo entre Boeing e Embraer avançava, apesar dos percalços ocasionados por essa crise. A Boeing depositava na Embraer a esperança da entrada em um novo segmento da aviação comercial, e, ainda, a renovação de seu corpo de engenheiros, já que passava por uma crise sem precedentes sobre sua reputação e capacidade de desenvolver uma aeronave efetivamente segura.
A Embraer, em contrapartida, estava em expansão, com poucos elementos que debilitassem sua consagrada reputação internacional na produção de aeronaves confiáveis e econômicas. Com novos aviões em três segmentos distintos de aviação, o comercial, de defesa e executivo, a empresa tinha pela frente um cenário favorável que tinha como adversidade o avanço da parceria entre Airbus e Bombardier. Este é apontado como o principal motivo para os acionistas terem aceitado a venda para a Boeing.
O negócio era, portanto, ideal para a Boeing e desfavorável para a Embraer nos termos em que foi feito. Nele, 80% do segmento de aviação comercial, o segmento responsável pela maior parcela da receita da empresa brasileira, passaria a ser integralmente comandado pela estadunidense, sem cláusula que impedisse a aquisição dos 20% restantes, além de uma joint-venture para apoio de vendas do C-390 Millenium que continuará vigente.
O Acordo não foi concluído, porém. Seu rompimento veio em uma circunstância de inquestionável retração da economia mundial, cujos impactos serão invariavelmente sentidos no setor de transportes em geral. E talvez seus efeitos se imponham com maior força no setor de aviação comercial, considerando-se a provável redução dos voos intercontinentais e o aumento dos voos regionais – estes últimos, o nicho das aeronaves Embraer – por causa do temor gerado pelo novo coronavírus.
Com a rescisão do acordo, o cenário que se apresenta para a empresa brasileira é desafiador, como também seria com a parceria com a estadunidense em profunda crise. No curto prazo, o impacto da crise atingirá todos os atores do setor, como atingiu em 2001, após os atentados do 11 de Setembro, e na crise financeira de 2008. O olhar da empresa brasileira deve ser para sobreviver aos impactos de agora e planejar as parcerias no médio e longo prazo, que serão necessárias, como sempre foram, e a Embraer soube fazer com muita inteligência.
Ao que tudo indica, a Boeing encontrou pequenezas para justificar sua saída do acordo, o que ratifica a severidade da crise que enfrenta – e também nos faz compreender seu pedido de auxílio ao governo americano de um apoio da ordem de US$ 60 bilhões.
Assim como nos Estados Unidos, o apoio do Estado brasileiro não é novidade mesmo para a Embraer já privatizada, processo que ocorreu em 1994. Além de assumir 70% da dívida da empresa no momento em que ela foi privatizada para que pudesse torna-lá ainda mais atrativa para o capital privado, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) continuou exercendo um papel imprescindível para o sucesso da Embraer. Recorrer ao Banco, ao que tudo indica, deverá ser a opção dos administradores para o enfrentamento da atual crise.
Sobre o Acordo, a empresa brasileira não pode abrir mão das cláusulas que a protegiam, caso houvesse rescisão. As mudanças estruturais já estavam em curso na fabricante brasileira, e a possibilidade de fusão com a estadunidense fez engenheiros deixarem a empresa com medo de perderem seus empregos. Todo este imbróglio levou a Embraer a perder parte de sua principal riqueza: seus engenheiros altamente qualificados.
O futuro para os fabricantes de aeronaves comerciais é de difícil previsão, mas certamente exigirá soluções inteligentes da Boeing e da Embraer para que sobrevivam. Para a empresa brasileira, será preciso, como foi outras vezes em sua trajetória, traçar mais uma inteligente estratégia de mercado para preencher lacunas, permanecer na liderança do setor e enfrentar a fusão entre Airbus e Bombardier no segmento em que vinha liderando há mais de cinco anos seguidos. Já para a Boeing, resta-nos esperar para ver se o Estado americano financiará sua recuperação, ou se ela, ao contrário, terá de se reinventar para resgatar seu prestígio dos últimos 104 anos de história.
* André Jorge Dias de Moura Junior é especialista e mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e trabalha com temas relacionados à Indústria Aeronáutica.
** Recebido em 27 abr. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.