‘Segredos Oficiais’: revisitando a Guerra do Iraque de George W. Bush
Ator Matthew Goode, como Peter Beaumont, o repórter que cobriu a guerra para o jornal The Observer
Por Mateus de Paula Narciso Rocha*
Lançado no fim de 2019, o interessante filme “Segredos oficiais” (“Official Secrets”, no original) rediscute a Guerra do Iraque pelo drama ético da espiã britânica Katharine Gun, interpretada pela atriz Keira Knightley. Tradutora de Mandarim do centro de Inteligência britânico GCHQ – um dos cinco olhos da aliança de Inteligência nucleada nos Estados Unidos –, Katharine recebeu ordens, em janeiro de 2003, para espionar os representantes de seis membros do Conselho de Segurança. As ordens vinham de um memorando supersecreto da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), uma iniciativa subterrânea de Bush filho para, constrangendo a posição desses países, legitimar o ataque pelo corpo multilateral e cimentar a aliança plurilateral de guerra.
Contrária à ordem, a idealista Katharine decide agir e tenta fazer a informação chegar à imprensa para, assim, solapar o esforço de legitimação e, quem sabe, a própria guerra. Ela, uma “whistleblower” pouco conhecida fora da Inglaterra, foi a julgamento, acusada de violar a Lei de Segredos Oficiais britânica.
Fiel ao recontar os eventos que antecederam o ataque dos Estados Unidos ao Iraque, a narrativa é uma oportunidade ímpar para revisitar as razões reais e anunciadas que levaram a Casa Branca ao conflito.
Justificativas forjadas para uma guerra ilegítima
Para invadir o Iraque de Saddam Hussein, o presidente George W. Bush apresentou inúmeras justificativas. Entre elas, que o ditador havia tentado matar seu pai em um atentado em 1993, ou que implementar a Agenda da Liberdade, levando a democracia ao Iraque, faria transbordar a liberdade política para outros países sucessivamente – ou seja, mais um uso para a “teoria do dominó democrático”.
Em janeiro de 2002, no discurso do “State of the Union” (SOTU), G.W. Bush também lançou uma cruzada maniqueísta contra o eixo do mal, expressão criada para se referir ao Iraque, à Coreia do Norte e ao Irã. Ao longo do ano, Bush filho começou a “inflação da ameaça”, construindo Saddam como um perigo similar a Osama bin Laden, então líder da rede Al-Qaeda, culminando no longo trecho dedicado ao Iraque no SOTU 2003.
Mais de um ano depois, em março de 2003, o secretário de Estado Colin Powell – até então notado como o moderado da Doutrina Powell –, defendeu a guerra em um discurso histórico, lastreado em inverdades, no Conselho de Segurança. Entrementes, essa campanha gerou apoio doméstico, com grande parte dos norte-americanos acreditando que Saddam estava associado ao 11 de Setembro. No final de 2002, o Congresso aprovou, com apoio bipartidário, uma lei autorizando o uso da força contra o Iraque.
A administração Bush apontou duas razões fundamentais para atacar o Iraque: a ligação de Bagdá com o terrorismo e a existência de armas de destruição em massa. Tais motivos não subsistiram aos fatos: não foram encontradas armas de destruição em massa no Iraque, tampouco foi identificado envolvimento de Bagdá com o atentado de 11 de setembro de 2001.
No Reino Unido, como retratou “Official Secrets”, também se vendeu a guerra como a luta do bem contra o mal. Outra ideia era a necessidade de “defender” o país, pois seria iminente um ataque iraquiano aos britânicos. Se a primeira hipótese não dava conta de responder o porquê do momento, a segunda hipótese era ainda mais surreal, tendo em vista a distância geográfica e a fraqueza econômica, militar e social iraquiana em decorrência das sanções desde a primeira guerra do golfo. É consabido que o regime Baath praticaria um suicídio, se atacasse um membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
A guerra foi, portanto, uma operação de bandeira-falsa (false flag). O uso de métodos espúrios para legitimá-la também envolveu coações reais. Em 22 de abril de 2002, os Estados Unidos, por meio do belicista John Bolton, articularam e destituíram o diplomata brasileiro José Maurício Bustani da “Organização para a Proibição de Armas Químicas” (OPAQ). No processo para derrubá-lo, Bolton chegou a ameaçar os filhos de Bustani. O diplomata brasileiro tentava realizar uma fiscalização séria sobre as armas de destruição em massa iraquianas, o que provavelmente solaparia os interesses de Washington na guerra e nos seus espólios.
A destituição de Bustani e a ação revelada por Katharine evidenciavam um paradoxo: pode uma guerra legitimada por valores morais – “democracia” e “liberdade” – ser construída com métodos imorais? Mais do que isso, pode a guerra moderna, que envolve a morte de inocentes e o desespero dos sobreviventes, ser um instrumento para implantar os ditos “bons valores”?
Pelas razões discutidas e falsidades apresentadas, nota-se que não eram a democracia, a liberdade, ou os direitos humanos, o norte da iniciativa. No entanto, se não foi o idealismo humanista a real substância da iniciativa de G.W. Bush, qual foi?
Literatura oferece hipóteses menos celestiais
Para muitos autores, a guerra decorreu da influência das ideias neoconservadoras dentro do governo G.W. Bush. Para Mearsheimer e Waltz, o ataque foi fruto também da atuação do lobby de Israel, influente à época. Para Perry Anderson, resultou dos interesses profundos dos Estados Unidos e do Pentágono, não estando vinculada à propalada captura do Estado pelos neoconservadores, porquanto a ponta de lança do ataque eram figuras tradicionais como Donald Rumsfeld, Dick Cheney e Condi Rice. Sob um outro prisma, Michael Klare destaca a conexão da guerra com a “Doutrina Carter”, de 1980, que afirmava, em meio à Revolução Iraniana, que o livre fluxo do petróleo do Golfo era um interesse vital dos Estados Unidos, a ser defendido pela força militar, se necessário. Outros, como o diretor Michael Moore, defenderam que o lobby das petroleiras internacionais estaria subjacente ao ataque.
Chalmers Johnson, ex-analista da CIA, elencou hipóteses fortes para a intervenção. Uma, o interesse nas reservas de petróleo iraquianas – as segundas maiores do planeta e, ainda, um petróleo de alta qualidade e mais barato, pois de fácil acesso. Os Estados Unidos precisariam de muito petróleo para sua indústria automobilística e, nas palavras de Johnson, “também gostariam de poder controlar estrategicamente as terras petrolíferas do Oriente Médio e da Ásia Central, a fim de supervisionar o suprimento para regiões cada vez mais dependentes de petróleo importado e que, um dia, poderão vir a contestar a supremacia global americana”.
Outra leitura indicada por Johnson envolveria a influência da direita israelense sobre Washington, que quer manter a superioridade regional do país no Oriente Médio, e existiriam muitos elos entre o Partido Likud, de Benjamin Netanyahu, e a administração de Bush filho. Uma terceira leitura afirma que a campanha tinha fins domésticos, visando a intervir nas midterms (eleições de meio de mandato) de 2002 e na eleição presidencial de 2004.
Johnson defende que existe lastro para as três leituras, mas que o objetivo-chave foi a pressão do militarismo e do imperialismo. Segundo ele, os Estados Unidos não entravam no Iraque apenas para mudar o regime (regime change), mas para implantar bases militares no país, de modo a ampliar seu controle sobre o Oriente Médio. De fato, e contra o argumento de Mearsheimer e de Walt sobre o caráter acessório do petróleo nessa intervenção, o controle sobre o Oriente Médio e o escasso recurso petrolífero são cruciais estrategicamente tanto para a produção econômica quanto por razões bélicas. É, conforme Gowan ou Brzezinsky, uma alavancagem crítica sobre aliados e adversários.
Influência no Oriente Médio e controle do petróleo
No plano documental, sabe-se que, desde a década de 1990, o Iraque era notado como um inimigo, com neoconservadores e hegemonistas do Project For the New American Century (PNAC) advogando o uso da força militar para derrubar o regime iraquiano. No início de 2001, também veio à tona o Relatório Cheney. Nele, ressaltava-se a importância de ampliar o controle e a produção de petróleo para manter o fluxo de energia para os Estados Unidos, país que demandaria cada vez mais esse recurso.
Em junho de 2001, o então secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, demonstrou recear a queda do governo saudita para extremistas, o que ejetaria os Estados Unidos do país e dificultaria o controle da região. Pouco após o 11 de Setembro, Rumsfeld já considerava utilizar a comoção gerada pelo episódio para avançar sobre o Iraque. É conhecido, também, que um dos maiores estrategistas do Pentágono, Andrew Marshall, disse que era fundamental estabelecer bases no Iraque após a guerra, no esforço para direcionar o foco estratégico do país para a Ásia e controlar a ascensão da China: “Iraq: Initiate planning now for a post-war, treaty-based US basing structure that will support rapid and sustainable US regional intervention both in the Gulf region and in Central Asia”. E, como evidenciou o episódio recente onde foi aventada a saída do Iraque, é cristalino o interesse estratégico do Pentágono em manter as bases no Iraque, independentemente do custo econômico e político envolvido.
Desse modo, e também tendo em vista que várias figuras do Pentágono foram ativas promotoras do ataque de 2003, é mais do que razoável afirmar que se decidiu pela guerra por razões estratégicas – ampliar o controle do Oriente Médio e do petróleo, diversificar as bases na região, ampliar a influência sobre aliados e adversários – e, depois, foram buscados os meios para legitimá-la. Tendo em vista a maquiagem realizada, a legítima defesa preventiva da Doutrina Bush – envolvendo destruir as armas de destruição em massa – não parece estar na substância dessa iniciativa.
Enfim, essa guerra foi propiciada pelo clima gerado no 11 de Setembro e pela confluência de diversos interesses, como os militaristas dos neoconservadores, os estratégicos do Pentágono e os interesses do lobby de Israel. O ataque gerou milhões de mortes, uma devastação nas condições humanas, o esfacelamento do Iraque, o aumento da instabilidade regional, o aumento da influência regional do Irã e a criação do Estado islâmico. Embalada em inverdades, corroeu parte do soft power dos Estados Unidos, danificando a credibilidade de seus diplomatas. Foi constituída, como demonstra a parte final de “Official Secrets”, por mentiras e coações.
Feita ao arrepio da Carta das Nações Unidas, evidencia que o sistema internacional continua na lógica da selva, na qual os grandes animais devoram os menores, se isso for conveniente. Nessa singular cadeia alimentar, convém manter o ceticismo em relação às palavras dos fortes, sobretudo, se o clima for favorável, a presa estiver desgarrada, e os falcões, no ar.
* Mateus de Paula Narciso Rocha é mestre em Relações Internacionais (PPGRI-UFU). Pesquisa a política externa dos Estados Unidos para a China após a Guerra Fria. Foi bolsista da CAPES e orientando do prof. dr. Filipe Mendonça (UFU), pesquisador do INCT-INEU.
** Recebido em 20 abr. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.