Redes de ultradireita promovem marchas anti-isolamento
Crédito: Associated Press
Por Solange Reis*
Com armas, cartazes e bandeiras confederadas, manifestantes marcharam contra a quarentena estabelecida por governadores nos Estados Unidos. Na semana que passou, pelo menos dezoito estados foram palco de protestos pelo fim do isolamento social e retorno das atividades econômicas.
O descontentamento surge quando o número de desempregados explode no país e previsões indicam que mais da metade da força de trabalho não terá um contracheque no mês de maio. Ainda que o fim da quarentena não seja consensualmente a melhor ideia.
A adesão às manifestações não foi grande ‒algumas poucas centenas ou milhares de pessoas‒ mas trouxeram uma agenda variada. Além do fim das restrições, os manifestantes protestaram contra aborto, vacinas e a favor de armas e liberdade de religião. Por trás dessas iniciativas supostamente orgânicas, existe o trabalho bem organizado e financiado de grupos ultraconservadores, alguns de extrema-direita.
Ventríloquos
O movimento não é espontâneo, assemelhando-se aos eventos que originaram o Tea Party. Em 2009, Barack Obama tinha acabado de ser eleito com uma plataforma mais intervencionista do que tolera o padrão político do país. Foi também um ano de crise financeira e resgate de grandes corporações pelo Estado.
Para frear o que poderia se tornar uma tendência, empresários e articuladores juntaram-se à mídia ultraconservadora para organizar uma campanha contrária. O movimento reunia libertários na economia e conservadores nos costumes, muitos ligados ao neopentecostalismo, passando de uma ideia “popular” à formação de uma ala radical no Partido Republicano. Embora a agenda do presidente fosse incansavelmente atacada, o foco era o programa de saúde que viria a ser conhecido como Obamacare.
Essa história se repete hoje, com grande potencial de tragédia. Apesar de os Estados Unidos registrarem o maior número de mortos e infectados pela Covid-19, e seu sistema de saúde privado e público mostrar-se débil frente à doença, conservadores radicais são novamente incentivados a desafiarem as diretrizes comunitárias.
Para Theda Skocpol, professora de Governo e Sociologia na Universidade de Harvard, os manifestantes atuais estão realmente contrariados com as medidas restritivas. São parte de uma classe média branca, conservadora e pouco cosmopolita. A insatisfação, no entanto, é instrumentalizada por grupos reacionários.
Por trás do apoio estão, entre outros, alguns idealizadores do Tea Party. É o caso de Mark Meckler, que pretende transformar os protestos atuais em algo maior. Presidente da organização Convention of States, Meckler lançou o site Open the States para facilitar o envio de petições contra o ‘lockdown’. Adam Brandon, presidente da FreedomWorks e ex-organizador do Tea Party, identifica o mesmo DNA nos dois movimentos.
Grandes financiadores do Tea Party, como as empresas do grupo Koch, também contribuem para os protestos anti-isolamento. Um exemplo dessa ligação é a Idaho Freedom Foundation (IFF), responsável pela campanha ‘Desobedecer a Idaho’. Lá, como no Brasil, a religião uniu-se à milícia. O líder da IFF é o pastor Diego Rodriguez, que criou um site para atacar o governador republicano, Brad Little, pelo fechamento das cidades. No domingo de Páscoa, Dominguez convidou Ammon Bundy para falar em sua igreja. Bundy é o miliciano que ocupou um parque nacional, em 2016, recusando-se a reconhecê-lo como propriedade do governo federal.
Outro apoio do grupo Koch vai para a campanha ‘Save Our Country’, organizada por Stephen Moore, membro da conservadora Heritage Foundation e conselheiro de Donald Trump. Há também a organização Minnesota Gun Rights, ligada a uma família de extrema-direita que milita no próprio estado e em Iowa. Por meio de um perfil no Facebook e redes associadas, seus líderes difundem notícias falsas sobre medicamentos e aterrorizam a população dizendo que os governadores irão obrigá-la a se vacinar contra o vírus no futuro próximo.
Tripé da calamidade
“A América enfrenta agora três calamidades: um contágio mortal, um presidente caprichoso e uma infraestrutura de direita bem financiada, disposta a desvalorizar a vida humana na busca de sua agenda política”, diz Lisa Graves, curadora dos Documentos Koch.
As chamadas para os protestos foram organizadas principalmente nas redes sociais. Em perfis do Facebook que fazem menção à Operação Gridlock (Operação Bloqueio), o público foi incitado a sair em defesa da liberdade e contra as ações estaduais “draconianas”.
A National Rifle Association (NRA) é outro grupo a articular os protestos, já que o comércio de armas foi afetado pelas restrições de duas formas. Em alguns estados, as lojas fecharam por serem atividades não essenciais. Mesmo tendo reaberto em muitos deles, por ordem do governo federal, os estabelecimentos de armas e munição perderam receita com o desemprego e confinamento.
Em geral, os articuladores do movimento contra os governadores são advogados, milicianos rurais, religiosos, jornalistas, empresários e até membros do governo federal. Em Michigan, por exemplo, o movimento foi financiado pela família da secretária de Educação, Betsy DeVos. Com tanta gente influente, não surpreende que o procurador-geral, William Barr, ameace processar os governadores que insistirem no fechamento.
Estado arruaceiro
A lista de grupos e pessoas de extrema-direita contra os governadores, mídia e CDC (Centros para Prevenção e Controle de Doenças) é grande. Nenhum de seus integrantes, no entanto, é mais poderoso do que o presidente do país. Em meio ao comportamento contraditório que tem marcado sua atuação na pandemia, Trump apoiou abertamente as manifestações.
Na sexta-feira (17), quando o país registrava mais de 700 mil infectados e 36 mil mortos, o presidente alardeava no Twitter: “LIBEREM Minnesota”, “LIBEREM Michigan”, “LIBEREM Virgínia e salvem a sua grandiosa Segunda Emenda. Ela está sitiada”. A Segunda Emenda da Constituição assegura aos cidadãos o direito de organizar milícias armadas. As mensagens de Trump foram direcionadas a muitos governadores, mas principalmente ao da Virgínia. No início do ano, o democrata Ralph Northam, tentou passar uma lei dificultando o uso de armas.
Na véspera de incentivar as marchas, Trump tinha sugerido, sem maior estratégia, que os estados saíssem do confinamento. Mas recomendou que cada um o fizesse em ritmo próprio. No dia seguinte, repassou o poder de decisão aos cidadãos, ao afirmar que os manifestantes são “pessoas muito responsáveis”.
O incentivo à resistência reflete mais do que diretrizes erráticas no combate à pandemia. Trata-se de opor um lado rural, onde está sua base mais fiel, a um urbano. Trump espera que os governadores contenham a doença, mas paguem o preço político pelo fechamento das cidades. Com mais tempo de exposição na TV e alcance verdadeiramente nacional, o presidente reinaria como um príncipe maquiaveliano. Aquele que sabe usar a prudência na economia e sorte no coronavírus, contra o qual ele recomenda doses intravenosas de desinfetante e aplicação massiva de radiação ultravioleta.
Faltam seis meses para a eleição, embora o contágio e as mortes estejam longe de serem contidos. O discurso incendiário e irracional do presidente pode atiçar mais protestos pela liberação apressada das cidades, mas talvez não garanta outros quatro anos na Casa Branca. Até os republicanos já começam a acreditar nessa hipótese e no efeito colateral sobre a maioria do partido no Senado.
*Doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu).
** Recebido em 26 abr. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.