A universidade e os desafios da pandemia de 2020
Por Pedro Chadarevian*
Os primeiros relatos da transformação radical na rotina da vida universitária causada pelo alastramento do coronavírus vieram da China, naturalmente, onde tudo começou em meados de janeiro de 2020. Em poucos dias, demo-nos conta da existência de uma enorme cidade no centro do país, até então uma completa desconhecida para a maioria de nós: a hoje famosa Wuhan, na densamente povoada província de Hubei. A região montanhosa acolhe também a não menos imponente Universidade de Hubei, cujo campus da capital abriga milhares de estudantes, do mundo inteiro, inclusive do Brasil[1].
De início desordenada, a quarentena logo se impôs no país, e as universidades chinesas também tiveram de fechar as portas. De lá, também nos chegaram informações sobre as primeiras medidas adotadas para tentar manter o funcionamento das atividades acadêmicas, mesmo com trabalhadores, estudantes e docentes impedidos de saírem de suas casas. Um desafio gigantesco e trabalhoso.
China e a solução digital
Não demorou muito até a solução ser encontrada: mover o conteúdo pedagógico para a rede de Internet, ou, o que está se convencionando chamar de educação remota, ou on-line. Diferentemente do ensino a distância, EaD, que envolve uma infraestrutura específica de produção de conteúdo digital, o ensino remoto (on-line) é uma ferramenta simples de interação, troca de conteúdos e de mensagens, que se aproveita de aplicativos existentes e universalmente disponíveis para a realização de aulas, atividades, conferências e reuniões remotas em tempo real.
Precursora nesta empreitada, a Universidade de Zeijiang, no leste da China, com sete campi espalhados pela província de mesmo nome, moveu seus mais de 5.000 cursos para o modo on-line. Em apenas duas semanas.
Aparentemente, a instituição se beneficiou da infraestrutura já oferecida pelo governo nas ferramentas digitais e de ensino a distância (a China é o país onde o EaD na educação superior é o mais desenvolvido, com milhões de pessoas nas áreas rurais sendo atingidas anualmente), além de treinamento específico oferecido aos servidores antes de adotar o regime de trabalho remoto e de aulas (e defesas, conferências, reuniões) virtuais. Uma questão que muito preocupa em países mais pobres, como o Brasil por exemplo, é o que fazer com o contingente de excluídos digitais, sem acesso a banda larga. A China tampouco os deixou de lado, possibilitando acesso a todo conteúdo gravado de aulas e a documentos digitais.
Outro gigante do mundo da pesquisa a ser impactado duramente pela crise do coronavírus são os Estados Unidos. Em uma transformação radical, o país assiste a uma inimaginável guinada para a dimensão virtual.
As listas que consultamos nesta pesquisa, e os sites das instituições onde buscamos números mais atualizados, relatam um fechamento total das universidades americanas neste momento. Estas informações foram compiladas com base no levantamento originalmente organizado por Bryan Alexander, pesquisador e entusiasta da educação a distância, e por nós atualizadas até 25 de março de 2020.
A exceção fica por conta das universidades da área da saúde, como a University of Arkansas for Medical Sciences, que ainda mantêm aulas presenciais (neste caso, por razões óbvias, ou seja, garantir a pesquisa ativa sobre o coronavírus e o atendimento no hospital universitário); e das unidades com sede no exterior (Líbano, Israel, Filipinas), que se regem por normas locais. As demais, ou seja, as outras cerca de 280 universidades em solo americano estão retomando o semestre após o spring break (a semana de férias de março) com aulas on-line, ou ensino remoto.
Desafios nos EUA
Apesar desta reação impressionante das universidades americanas em tempo tão curto, engana-se quem pensa que alguém estava preparado para o que viria. Via de regra, agiu-se como diante de uma catástrofe – pois é exatamente disso que se trata. Sem aviso prévio, os campi foram fechando, um a um, muitos chegando inclusive a evacuar os alunos de suas residências universitárias. A maior parte decretou de início a suspensão das atividades, estendendo o spring break, e usou este tempo para preparar servidores com treinamento no uso das plataformas virtuais.
Depois do caos daqueles primeiros dias no começo do mês, seguiu-se uma certa calmaria, onde o aparente silêncio das salas de aula nos prédios das universidades escondia um agito frenético no mundo virtual: seus milhões de alunos agora interagem digitalmente com colegas e docentes. E assim um feito inédito começava a tomar forma: o maior sistema de ensino superior do mundo se transformava para se adaptar ao funcionamento remoto, para servir a seus estudantes presos em suas próprias casas.
Dificuldades imensas foram colocadas diante destes gestores, que tiveram de agir rapidamente para encontrar soluções, entre elas: oferecer recursos emergenciais para estudantes que não podem mais pagar matrícula e outras taxas, em um sistema que é principalmente público, porém não é gratuito; oferecer ajuda financeira para que os estudantes voltassem para suas cidades e estados de origem, diante do fechamento das residências universitárias; realizar treinamento e testes antes de entrar no modo remoto; proteger os cerca de 300 mil estudantes chineses matriculados nas universidades americanas diante do crescimento das agressões xenofóbicas; lidar com estudantes que enfrentam limitação no acesso à Internet.
Nas universidades estaduais do Arizona (Arizona University, Southern Arizona University e Northern Arizona University), por exemplo, as decisões são centralizadas em uma força-tarefa, que promove testes com a comunidade nos diferentes campi em preparação à migração para o funcionamento on-line.
Outro exemplo: em Connecticut, a Asnuntuck Community College oferece suporte 24 horas por dia aos alunos que enfrentam dificuldade de acesso on-line. Em sua página institucional, o estabelecimento informa que disponibiliza a transcrição e a gravação de todo o conteúdo das aulas em dispositivos de memória (pendrives) para entrega na residência dos alunos que assim solicitarem. Em até 24 horas.
As community colleges são uma modalidade de ensino superior americana, com dois anos de duração, geralmente voltada para uma população de mais baixa renda.
Como está funcionando a universidade americana on-line na prática?
Um rápido passeio pelos sites de diferentes instituições traz uma amostra da disciplina e organização do sistema de educação superior do país. Quase sempre se destacam na página principal as últimas medidas tomadas sobre a crise, assim como a multiplicação de eventos on-line, o que mostra que não são apenas as aulas que estão se movendo para o ambiente virtual. Mas o que a universidade oferece por lá passa longe do que poderíamos imaginar em um primeiro momento, algo ostentatório em termos de recursos tecnológicos. Não, não há nada parecido com um cenário futurista, muito menos hologramas de docentes, invadindo os lares americanos.
Os EUA são um país rico, porém muito desigual, com uma infraestrutura física em seu parque universitário muitas vezes superior à nossa, certamente, mas sujeito a enormes obstáculos quando se trata de fazer adaptações de improviso como nesta crise. Para dar conta desta emergência, as instituições têm preferido adotar uma postura humilde.
Por isso talvez chegam a soar demasiadamente básicas as últimas recomendações da Universidade de Princeton aos seus alunos – logo ela, tão reputada por já ter uma cultura instituída em ensino a distância – sobre como garantir a eficácia do remote learning lá adotada, em plataforma semelhante ao modesto Moodle, bastante difundido por aqui: ser pontual nas aulas on-line; manter o foco no conteúdo ministrado; não descuidar da organização de seu espaço de trabalho, onde o aluno se conectará; escolher o lugar da casa com a melhor conexão de Internet; usar as ferramentas de bate-papo com mensagens de texto e participar mais ativamente das aulas; preparar-se para a aula, fazer sua lição de casa previamente; interagir virtualmente, participar de grupos com alunos.
No Brasil, onde o contágio chegou um pouco mais tarde, podemos agir com este tempo adicional ao nosso lado, e aprender, graças a estes poucos dias de dianteira, com a experiência dos outros países, como China, Itália e EUA. Infelizmente, aqui a guerra não é apenas contra o vírus: a elite política também conspira contra a universidade pública. Mas as crises abrem oportunidades, e é quando os intelectuais são chamados a agir.
O que teria sido do mundo não fosse a quarentena de 1665, quando o medo do contágio pela praga fez o rei da Inglaterra decretar medidas de isolamento social, incluindo o fechamento da Trinity College, em Cambridge? Trancado em sua propriedade em plena quarentena, um certo Isaac Newton, então estudante de 20 anos, passeava pelo seu jardim quando decidiu repousar embaixo de uma macieira, após cumprir uma agenda cheia de estudos.
Bem, o resto da história nós já conhecemos… Para que ela possa se repetir hoje, e novos talentos não fiquem alijados pela interrupção repentina da educação presencial, a universidade não pode parar. Dela depende a garantia de um direito humanitário essencial: o de continuarmos pensando.
* Pedro Chadarevian é professor associado da Universidade Federal de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC. É membro do INCT-INEU.
** Recebido em 26 mar. 2020.
[1] Veja o depoimento do estudante brasileiro que permaneceu em Wuhan durante todo período de confinamento decretado pelo governo chinês: Higor Carvalho, “No coração do medo”, Revista Piauí, n. 162, mar. 2020.