Brasil

O instável triângulo Brasil-China-EUA: notas de uma crise diplomática

Crédito da imagem: Direito da Comunicação

Por Mateus de Paula Narciso Rocha*

O mais recente atrito diplomático entre Brasil e China decorreu da manifestação pública do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Em 18 de março de 2020, o filho do presidente culpabilizou a China pelo surgimento e pela disseminação do novo coronavírus, sugerindo que a pandemia decorreu da atuação do Partido Comunista Chinês e que apenas a liberalização política impediria a catástrofe: “A culpa é da China e liberdade seria a solução”.

O embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, reagiu ao comentário, manifestando publicamente sua insatisfação ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e ao ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, além de exigir desculpas formais de Eduardo Bolsonaro ao povo chinês. No dia seguinte, Eduardo publicou uma explicação, embora sem um pedido formal de desculpas. A embaixada chinesa continuou, por sua vez, a demandar as desculpas formais. Entrementes, o presidente Jair Bolsonaro se prontificou a ligar para o presidente da China e desfazer o mal-entendido. Xi Jinping se recusou, porém, a atendê-lo.

O agronegócio brasileiro, que tem a China como principal destino de vendas, assistiu horrorizado ao entrevero gratuito e teceu duras críticas a Eduardo Bolsonaro.

Em sua reação, a embaixada chinesa sugeriu que pode impor custos, se o alinhamento do Brasil aos Estados Unidos cruzar determinadas linhas. “Ao voltar de Miami, [Eduardo] contraiu, infelizmente, vírus mental, que está infectando as amizades entre os nossos povos”, declarou a embaixada.

A missão chinesa afirmou ainda que Eduardo Bolsonaro não é apenas um deputado, mas uma “figura pública especial”. Com isso, fazia referência não apenas aos laços de sangue de Eduardo com o presidente da República, como também à sua influência no núcleo decisório de política externa. De fato, o filho do presidente quase foi indicado para ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos e, certa vez, foi ele, e não o chanceler Araújo, que acompanhou Jair Bolsonaro em uma reunião oficial com Donald Trump, na Casa Branca. Em contraponto à sugestão do vice-presidente Mourão, a crise diplomática não decorreu apenas de um problema de sobrenome.

A reação da China visa a preservar sua imagem internacional. A manifestação de Eduardo Bolsonaro vai ao encontro da retórica de Donald Trump que classifica o “coronavírus” como o “vírus chinês”, o que é abominado por Pequim. Ao que parece, Trump busca um “bode expiatório eleitoral” para desviar as atenções da displicência, com que tratou inicialmente a crise do coronavírus, considerando-se ainda a provável recessão econômica global e o crescente número de infectados e de óbitos em decorrência do vírus nos Estados Unidos. Classificada como inimiga na eleição de 2016 e geralmente tratada como vilã em anos eleitorais, a China ressurge como o alvo adequado.

O que a postura da China significa

Essa crise não foi mero enfrentamento retórico, portanto. Decorre de processos maiores e apresenta sinalizações valiosas.

O alinhamento aos Estados Unidos, o menoscabo da imagem da China e a crítica direta ao Partido Comunista Chinês são elementos importantes para compreender a forte reação do embaixador Yang à manifestação de Eduardo Bolsonaro. Outras questões também devem ser consideradas, já que a China costuma agir de forma pragmática em suas relações internacionais, visando ao longo prazo. Não é usual a reação de um embaixador chinês.

A disputa geopolítica entre Estados Unidos e China e a rápida modificação na correlação de forças domésticas brasileiras são processos importantes que ajudam a compreender a crise diplomática. Esse episódio é uma clara sinalização de que Pequim monitora a aliança entre Brasil e Estados Unidos, bem como considera impor custos ao Brasil, ou ao governo, se determinados comportamentos forem seguidos. Essa sinalização ocorre, curiosamente, poucos dias após a coluna de Lauro Jardim no Jornal “O Globo” noticiar que o Itamaraty tentaria vetar a participação da empresa chinesa Huawei do leilão brasileiro do 5G.

Como se sabe, os Estados Unidos demandam de seus aliados medidas nesse sentido, enquanto a China mantém suas gestões diplomáticas para impedir tais vetos. Inevitavelmente, o Brasil terá de escolher a qual país irá desagradar, e o governo, qual grupo de apoio irá contrariar: se os olavistas, ou o agronegócio. Mais tensões no horizonte.

A correlação de forças no plano interno é um elemento-chave em matéria de política externa. Os estadistas chineses analisam cuidadosamente a correlação de forças domésticas do país-alvo antes de tomarem suas decisões. Desse modo, é importante considerar que, desde 15 de março de 2020 – quando Jair Bolsonaro deixou a quarentena para cumprimentar manifestantes favoráveis ao seu governo –, a correlação de forças domésticas na política brasileira sofreu uma mudança abrupta e ocorreu uma desidratação acelerada do apoio ao presidente.

Alguns que outrora o defendiam, não apenas passaram a criticá-lo, como a demandar sua saída imediata do cargo. Os duros editoriais dos jornais Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo passaram a ser acompanhados por críticas abertas de canais de televisão. A Rede Globo contestou reiteradamente no “Jornal Nacional“ a atuação de Jair Bolsonaro na crise do coronavírus. A Rede Bandeirantes lançou um pesado editorial em 20 de março, criticando a postura de Eduardo Bolsonaro e de Ernesto Araújo na crise diplomática com a China. Mesmo a Record TV, mais alinhada ao governo, fez uma entrevista atípica com Bolsonaro no “Domingo Espetacular”, em 22 de março, com perguntas incômodas ao presidente.

Nesse sentido, a reação do embaixador chinês e a recusa de Xi Jinping a atender Bolsonaro são indícios da gravidade com que Pequim tratou o episódio – mas não apenas isso. A recusa de Xi talvez já sinalize que Pequim considera Jair Bolsonaro quase uma “carta fora do baralho” (lame duck). Não seria novidade. Em 1968, o governo Lyndon Johnson, nas cordas em decorrência da Guerra do Vietnã, buscava se reaproximar da China para ganhar algum fôlego. Pequim disse que não tinha nada a tratar com o governo Johnson e deixou o náufrago afundar.

 

* Mateus de Paula Narciso Rocha é mestre em Relações Internacionais (PPGRI-UFU). Pesquisa a política externa dos EUA para a China após a Guerra Fria. Foi bolsista da CAPES e orientando do professor dr. Filipe Mendonça (UFU), membro do INCT-INEU e da equipe do Chutando a Escada Podcast.

** Recebido em 23 mar. 2020.

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