Guerra de preços pode encerrar o boom de petróleo estadunidense
por José Késsio Floro Lemos*
O mundo vive em apreensão. A Organização Mundial de Saúde já classifica o coronavírus como pandemia. Com o vírus conseguindo romper as fronteiras geográficas, a limitação na mobilidade de pessoas e produtos ao redor do mundo se tornou inevitável. As companhias aéreas estão cancelando voos. Trabalhadores estão sendo instruídos a trabalhar em casa e evitar eventos públicos.
Com isso, a diminuição no consumo de combustíveis tornou-se um fato. Com menor demanda, o preço cai. O valor internacional do barril tipo Brent (referência internacional), que chegou a beirar os US$ 70 no início de janeiro, despencou para cerca de US$ 50 no início de março. Na lógica do mercado a única maneira de compensar a queda na demanda é realizando cortes na oferta.
Nesse sentido, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo, mais especificamente a OPEP+ (formada por países da OPEP e aliados, incluindo a Rússia) se reuniu em Viena, no último final de semana, com objetivo de traçar diretrizes para estabilizar o preço e evitar o pior. A Rússia, no entanto, recusou a já esperada orientação da Arábia Saudita por cortes mais profundos na produção, o que desencadeou uma verdadeira guerra de preços entre Moscou e Riad. Na prática, a recusa russa não só evitaria novos cortes na produção, como também determinou que as restrições já existentes expirassem no final deste trimestre.
Neste contexto, Riad reagiu, e reagiu com tônus. Em poucas horas, anunciou a redução no preço de venda de petróleo para a China, que passou a ser vendido com descontos de até US$ 7 por barril. Além disso, elevou sua produção diária em 2 milhões de barris. O mercado internacional ficou encharcado.
Em consequência, o mundo presenciou no domingo (8) a maior queda no preço do petróleo desde a Guerra do Golfo em 1991 (30%). Fato trouxe pânico às bolsas de valores internacionais e incertezas à economia global. Neste caótico cenário, algumas importantes perguntas efervescem: quais são as razões que levaram o Kremlin a rejeitar um novo corte na produção de petróleo determinado por Riad e pela OPEP? Qual é o alcance e o objetivo da resposta saudita? Quais são os impactos que essa guerra de preços pode trazer sobre os Estados Unidos e sua indústria de petróleo?
Objetivo estratégico
Ao que parece, a confusão iniciada por Moscou, que estimulou uma contundente reação saudita, tem um objetivo estratégico. O movimento seria uma reação às recentes sanções impostas pelos EUA contra as empresas associadas à construção de um importante projeto energético de Moscou – o Nord Stream 2. A inciativa, que é liderada pela Gazprom, pretende enviar gás natural à Alemanha sob o Mar Báltico, contornando a Ucrânia e dobrando a capacidade atual de envio. Para além do aumento da capacidade de exportação, o projeto russo é estratégico pois elimina a influência ucraniana sobre suas exportações de gás para a Europa – já que a Ucrânia tem sido considerada uma pedra no sapato dos interesses geopolíticos de Moscou.
Não obstante a isso, um novo corte na produção de petróleo da Rússia e da OPEP abriria espaço de mercado para a atuação da indústria de xisto norte-americana, responsável por reconduzir o país ao topo do ranking dos maiores produtores de petróleo do planeta, e que tem capacidade de aumentar sua produção diária de petróleo em até 1 milhão de barris. No entanto, a produção do chamado petróleo não convencional extraído pela indústria do xisto tem um elevado valor de produção. E Moscou sabe bem disso.
Estima-se que o custo de produção do petróleo de xisto americano varie entre US$ 40 e US$ 90 o barril. A Arábia Saudita consegue produzir a US$ 3, enquanto a Rússia a US$ 30. Ou seja, manter o preço internacional do barril em menos de US$ 40 pode até ferir as economias da Arábia saudita e da Rússia, mas tem poder de quebrar a já endividada indústria de xisto estadunidense.
O setor de petróleo e gás dos EUA tem cerca de US$ 86 bilhões em dívida classificada para os próximos quatro anos, segundo a Moody’s. A imprevisibilidade da atual guerra de preços pode forçar os líderes do setor americano a cortar custos e produção em um curto espaço de tempo. A estimativa é que, a menos que a produção diária dos EUA caia em alguns milhões de barris, rapidamente o petróleo poderá alcançar a faixa dos US$ 20, o que esmagaria o valor das reservas terrestres que servem de garantia para as dívidas do setor. À medida que os preços do petróleo caem e os mercados de crédito diminuem, muitas empresas podem não conseguir refinanciar suas dívidas ou estender os vencimentos. Assim, vários produtores de médio porte podem simplesmente quebrar. Se isso acontecer, o oil boom estadunidense pode estar comprometido.
Em resumo, os preços mais baixos do petróleo podem até beneficiar os consumidores e diminuir os custos de transporte para as empresas americanas. Porém, correm o risco de ser um pesadelo para os produtores de petróleo dos EUA. Estados como Texas e Dakota do Norte, onde a extração de combustíveis fósseis é uma fatia importante da economia, talvez enfrentem tempos difíceis. O impacto também pode ser nacional. Se os preços permanecerem baixos por meses ou anos, haverá possíveis falências e fusões no setor. O que pode trazer impactos importantes sobre Produto Interno Bruto (PIB) americano, bem como sobre o mercado de ações em Wall Street.
Crise Duradoura?
Até onde a Rússia e o reino saudita podem sustentar a atual guerra de preços? Difícil dizer. A resposta de Riad à Rússia tem como principal objetivo manter os preços baixos, garantir uma maior participação de mercado, principalmente sobre clientes russos e, assim, dar um forte recado para Moscou. Como já vimos, o custo de produção saudita é de cerca de US$ 3 por barril. O da Rússia, US$ 30. Acontece que o ponto de equilíbrio orçamentário de Riad, não o da produção em si, é alcançado com o barril custando cerca de US$ 80. Isto é, o valor que não compromete as receitas e o bom funcionamento da economia saudita. A queda nos preços significa menos dinheiro para atividades sociais e outros programas usados pelo governo para reforçar o apoio social.
Já para Moscou, este mesmo ponto de equilíbrio é estimado em US$ 49. A vantagem defensiva da Rússia é um fundo de estabilização estimado em US$ 150 bilhões, que pode ser utilizado para compensar a queda dos preços e reforçar o poder do rublo. Essas reservas são suficientes, segundo o Ministério das Finanças russo, para cobrir a perda de receita por até 10 anos, com preços de petróleo entre US $25 e US$ 30 por barril.
Nos Estados Unidos, a reposta governamental parece ser mais limitada. Afinal, é difícil coordenar ações com mais de 9 mil produtores, muitos deles independentes. Pelo menos no discurso, o governo Trump tem respondido com veemência aos acontecimentos. Na segunda-feira, o Departamento de Energia dos Estados Unidos denunciou o que chamou de “tentativas de atores estatais de manipular e chocar os mercados de petróleo”. A nota também é enfática ao afirmar que os Estados Unidos continuarão sendo o maior produtor de energia do mundo e que a sua economia está mais resistente do que nunca. O tempo confirmará ou não essas afirmações. Por hora, como dito por Brian Sullivan ao site CNBC, “em algum lugar, Vladimir Putin está olhando para o mapa do Texas e sorrindo”.
*Doutorando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Pesquisador Fapesp.